“Sinto como se tivesse levado uma pancada na cabeça, e se, antes que a leve de fato, não gostaria, contudo, de me contentar em parecer tão sem fala quanto estou, obedeço à obrigação de prestar contas também sobre um fracasso, de dar explicações sobre a situação em que uma reviravolta tão completa no âmbito da língua alemã me lançou, sobre o abatimento pessoal diante do despertar de uma nação e da instauração de uma ditadura que hoje tudo domina exceto a língua.”
(Karl Kraus, A Terceira Noite de Walpurgis)
Nada me ocorre sobre Alexandre de Moraes — digo, parafraseando o que escreveu o judeu Karl Kraus sobre Hitler em 1933. Muitos foram os que interpretaram a frase do dramaturgo e ensaísta austríaco, que abre a sua A Terceira Noite de Walpurgis, uma interpretação literária e cultural do nacional-socialismo, como expressão de um atordoamento diante de um fenômeno político que ao autor soava terrificante e nauseabundo. Mas, se é verdade que Kraus mostrou-se de algum modo atordoado, também é verdade que, sempre insistindo no poder sagrado da palavra, Kraus não se deixaria calar nem mesmo pelo terror e pela náusea.
Com efeito, a frase com que Kraus abre o livro — “Nada me ocorre sobre Hitler” (“Mir fällt zu Hitler nichts ein”) — lembra a que, por ocasião do início da Grande Guerra, um outro judeu, Franz Kafka, registrou em 2 de agosto de 1914 no seu diário pessoal: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, piscina”. Ambas as frases traduzem um mesmo espírito, no qual se disfarça o desespero por detrás da ironia, sendo o cultivo à palavra tido por único meio de resistir a um regime de força. No caso de Kraus, a ironia é demasiado evidente quando lembramos que, depois de declarar a sua falta de assunto, produziu 300 páginas imortais sobre Hitler e o fenômeno nacional-socialista.
Como não sou Karl Kraus, no meu caso a frase é menos irônica, e a náusea, mais paralisante. E a náusea é menos pela figura tirânica em si mesma do que pela facilidade com que a sociedade permitiu o fenômeno, que hoje culmina nada menos do que no banimento do X, o maior fórum de debate político do país, algo que há alguns anos nos pareceria distópico.
Em si mesmo, Alexandre de Moraes é um burocrata medíocre, inculto e obscuro, levado a uma posição de poder quase absoluto menos por características pessoais do que por uma completa disfuncionalidade do sistema republicano brasileiro. E, sobretudo, por problemas de ordem cultural. Nota-se ao menos desde a pandemia — de certa maneira, de maneira globalizada — que a sociedade brasileira contemporânea foi contaminada por um estado generalizado de histeria coletiva produzida por um medo tecnicamente induzido. Uma sociedade histérica, como explica o psiquiatra polonês Andrew Łobaczewski, é aquela que “considera qualquer percepção de uma verdade desconfortável como um sinal de grosseria e falta de educação”. Resta que a histeria de ordem social acaba gerando uma demanda por aquilo que o mesmo autor chama de “psicopatas no poder” (patocracia). Nas palavras do autor:
“Se uma dada sociedade não consegue superar o estado de histerização sob circunstâncias políticas e etnológicas, o resultado pode então ser uma grande tragédia sangrenta. Uma variação de tal tragédia pode ser a patocracia.”
Em seu livro Ponerologia: Psicopatas no Poder, Łobaczewski analisa a presença de diversas psicopatologias na geração de anomia social e no surgimento de regimes políticos totalitários conduzidos por líderes psicopatas. Um dos nomes citados como exemplo bem documentado da influência de uma personalidade caracteropática numa escala macrossocial é o de Guilherme II, último imperador alemão. Alguns traços de seu caráter, notadamente o seu complexo de inferioridade, lembram os de Adolf Hitler, que também buscou na política uma forma de compensar suas fragilidades de caráter.
“Guilherme II desenvolveu uma personalidade com características infantis e com controle insuficiente sobre as suas emoções, e também um modo de certa forma paranoico de pensar, que facilmente o fazia colocar de lado o cerne de alguns assuntos importantes no processo de esquivar-se dos problemas. Poses militaristas e um uniforme de general foram uma compensação para os seus sentimentos de inferioridade e efetivamente ocultaram suas desvantagens.”
Um dos efeitos da histeria social é a adesão cada vez mais massiva a chavões e frases feitas, que servem para mascarar uma justa percepção da realidade. Daí que, mais do que por Hitler, a indignação de Kraus tivesse se voltado sobremaneira contra a imprensa de sua época, responsável, segundo ele, por contaminar a linguagem do debate público com a frase feita, debilitando o organismo cultural a ponto de o deixar totalmente vulnerável à patologia nacional-socialista. No fundo, Kraus acreditava que o nazismo fora uma criação da imprensa, que “provocou e promoveu a Guerra Mundial, saiu dela como a única vencedora e, com o crescimento incessante de sua força intelectual, conseguiu levar à realização do nacional-socialismo”.
A frase feita — “defesa da democracia”, “golpismo”, “combate às fake news” etc. — permitiu a técnica totalitária do uso político das armas (a jagunçagem) contra críticos e dissidentes
Segundo Kraus, os jornais germanófonos haviam proliferado a frase feita e, com isso, contribuído decisivamente para reduzir a capacidade crítica do leitor médio, que, gradativamente, desenvolveu uma dramática atrofia de sua imaginação moral. É justamente a essa falta de imaginação que Kraus atribui o entusiasmo belicista dos alemães pela Primeira Guerra e a incredulidade quanto às atrocidades nazistas noticiadas em 1933 e mesmo antes. Em suas palavras:
“O problema, reconhecido na Guerra Mundial, é a simultaneidade da frase feita e da arma, simultaneidade que, indo além de todo agrupamento de homens de Estado, produz a tríplice aliança entre tinta de impressão, técnica e morte [‘Tinte, Technik und Tod’].”
No Brasil, essa tríplice aliança manifestou-se de alguma forma, ainda que o primeiro termo já não fosse a tinta de impressão — uma vez que os jornais impressos são objetos praticamente extintos —, mas os caracteres de um editor de texto. A frase feita — “defesa da democracia”, “golpismo”, “combate às fake news”, “liberdade de expressão não é liberdade de agressão”, “internet não é terra sem lei” etc. — permitiu a técnica totalitária do uso político das armas (a jagunçagem) contra críticos e dissidentes. Afinal, Alexandre de Moraes não teria chegado aonde chegou e feito o que fez não fosse tratado como “a muralha” da democracia por boa parte dessa imprensa que ora começa a gemer sob o tacão da tirania.
Leia também “Ordem jaguncial não se cumpre”
Em minha opinião, a imprensa estatal só vai sofre correções de rumo. Assim sendo, continua no pacto. Como em máfia: uma vez dentro, só a morte liberta.
Alexandre de Moraes e seus camaradas de STF acreditam estarem acima das leis e cometem um crime por hora sob os holofotes e linhas do Pravda tupiniquim.
Não receberam um único voto de eleitor e não possuem o poder para legislar.
Devem ser removidos de seus assentos imediatamente para o bem da nação.
EXCELENTE ANALISE!!!!
O PODEER EMANA DO POVO – PORTANTO PRECISAMOS REATIVAR ESTE PODER E SAIR DESTA ARMADILHA IMPOSTA PELO SISTEMA E VELHA IMPRENSA.
Muito bem meu Caro Gordon. Ele não estaria lá não fossem os acordos políticos, os conchavos de quem sabidamente teria algum benefício seu.
Em consequência estamos todos metidos nessa enrascada “pela democracia”, pelo “Estado de direito” que nada mais são do que a própria ditadura, a falta de liberdade, a incapacidade de reagirmos a tal decisão.
Ainda há sim jeito, veremos.
A democracia não aceita tutela de quaisquer frases ou chavões feitos que pleiteiem a sua defesa!
A velha imprensa, sedente por dinheiro público, é cúmplice deste agente fora da lei chamado Alexandre de Moraes.
Excelente texto e precisei reler algumas vezes para entender. Ja compartilhei
Não adianta ficar tratando um ditador dentro da lei porque a lei perde a sua finalidade preceitual, obviamente não vale nada pra ele
Depois que a imunda imprensa, que domina o reles imaginário da maioria dos brasileiros nefelibatas, lançou a frase feita dirigida ao ladrão: “o senhor não deve nada à justiça” todas as outras frases que vieram, são como catalizadores da osmose nas cabecinhas ocas dessa gente que aceita como normal as atuais e nauseantes atrocidades verberadas pelos que se dizem responsáveis pela lei, justiça e democracia.
EXCELENTE, MEU CARO GORDON. COM O USO REPETIDO DE CLICHÊS, VAZIOS E SEM CONTEÚDO, PRINCIPALMENTE POR PARTE DE UMA IMPRENSA CORROMPIDA E ANALFABETA, CONSEGUIMOS DESTRUIR A DEMOCRACIA BRASILEIRA.
O baixinho usa saltos de sapato enormes para parecer alto; quando pode, compra carrões (ou seria carrãos, dona Audi?) Inversamente proporcionais ao seu tamanho. Quando a mente é pequena e o cidadão sem valores morais, a soberba domina e começam os desastres.
O bumerangue que a velha e moribunda i presa lançou está voltando na cabeça deles.
Que texto maravilhoso. Parabéns. Sorvendo em fontes como esta, Revista Oeste, é que vamos aprendendo cada vez mais.
A história sempre se repete, algumas tristes.
Muito bom este texto. Deveria ser leitura obrigatória no Senado.