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A novidade em energia renovável é a produção pela agricultura de um biocombustível específico para aviação: o SAF | Foto: Revista Oeste/IA
Edição 234

Aviões movidos a mostarda

A agricultura brasileira possui várias rotas e diversas plantas oleaginosas para produzir biocombustíveis de aviação

Evaristo de Miranda
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O agro brasileiro é um grande produtor de energia limpa. Fornece alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas e é o maior exportador de fibras de algodão e celulose. A novidade em energia renovável é a produção pela agricultura de um biocombustível específico para aviação: o sustainable aviation fuel (SAF). Pela fotossíntese, a agropecuária transforma energia solar em combustíveis sólidos (lenha e carvão vegetal), líquidos (etanol e biodiesel), gasosos (biometano) e “energéticos” (bioeletricidade). Agora, abastecerá os aviões. Com mostarda.

A aviação internacional contribui com 2% a 3% das emissões totais de CO2 no planeta. Para a Agência Internacional de Energias Renováveis (Irena), a aviação produziu 915 milhões de toneladas de CO2 em 2019, cerca de 2% do total das emissões globais. O setor aéreo é o meio de transporte com maior crescimento no mundo. Esse valor deve dobrar até 2050. Hoje, já anda próximo de 3%, uma contribuição superior à do Brasil como país.

Biocombustível específico para aviação: o sustainable aviation fuel (SAF) | Foto: Shutterstock

Em 2021, na 77ª Reunião Anual da International Air Transport Association (IATA), em Boston, nos Estados Unidos, uma resolução foi aprovada pelo setor aéreo: o Fly Net Zero, que prevê zerar suas emissões de carbono até 2050. Boa parte dessa audaciosa meta será atingida pelo uso do SAF, combustível sustentável e alternativo de aviação, fabricado a partir de biomassa vegetal renovável: óleos, algas e resíduos. O SAF é a única alternativa viável para voos mais longos, os mais poluentes: 6,2% deles geram 52% das emissões.

A quantidade de CO2 emitida por um avião movido a combustível fóssil ou por um movido a SAF é praticamente a mesma. A diferença está no recurso de base (renovável no SAF) e no processo de fabricação. Em seu ciclo de vida, o SAF pode representar uma redução de até 80% nas emissões de CO2, além de um impacto menos negativo na qualidade do ar. E o SAF é compatível com os motores atuais. Hoje, os biocombustíveis são geralmente misturados com o querosene tradicional, num máximo de 50%, e que poderia ser 100%.

Grandes companhias aéreas no Brasil já assumiram compromissos em usar o SAF e se tornarem Fly Net Zero: Latam até 2050, Azul até 2045 e Embraer até 2040. Em 2012, na Rio+20, ocorreu o primeiro voo pela Gol com bioquerosene e foi lançada a Plataforma Brasileira de Bioquerosene pela União Brasileira de Biodiesel e Bioquerosene. Em 2013, a Resolução ANP nº 20 permitiu voos comerciais com SAF.

A alternativa dos combustíveis de síntese (eletrocombustíveis, ou e-fuels) ainda é uma aposta. Serão fabricados pela combinação de hidrogênio (produzido a partir de energia renovável ou nuclear) e de CO₂ captado do ar ou pela indústria. Eletricidade renovável e hidrogênio não estão facilmente disponíveis globalmente e estarão apenas no médio e no longo prazos. As baterias elétricas apresentam muitos limites para uso na aviação comercial. Os e-fuels exigem novas técnicas de produção, infraestruturas específicas de distribuição e servirão para distâncias curtas. Essas alternativas não resolveriam a questão da aviação internacional de longa distância.

O SAF pode representar uma redução de até 80% nas emissões de CO2 | Foto: Shutterstock

Os EUA adotaram a legislação do Sustainable Aviation Fuel Grand Challenge para incentivar a produção de SAF e atender a 100% da demanda até 2050. A União Europeia impôs às companhias aéreas obrigações de incorporação progressiva do SAF. Pela regulação, a partir de 2025, o abastecimento de combustível nos aeroportos da UE deverá conter pelo menos 2% de SAF. A porcentagem aumentará todos os anos, com mandatos de 6% até 2030; 20% até 2035; e de 63% a 70% do carburante até 2050, dos quais 28% serão eletrocarburantes. Esses requisitos serão aplicados a todos os voos com origem na UE, independentemente do destino.

O SAF ainda é uma ínfima parte do combustível utilizado na aviação. Em 2023, sua produção dobrou em relação a 2022 e chegou a 600 milhões de litros, menos de 0,5% da demanda mundial por combustível de aviação. A IATA estima uma demanda anual de 450 bilhões de litros de SAF em 2050. Seu objetivo intermediário é de 30 bilhões de litros em 2030, ante os 300 milhões produzidos em 2022.

Para 2024, a produção mundial de SAF triplicará em relação a 2023: previsão de 1,9 bilhão de litros. No horizonte de 2030, a única tecnologia ou rota de produção de SAF comercializável é a dos ésteres e ácidos graxos hidrotratados, ou hydroprocessed esters and fat acids (HEFA), fabricados a partir de óleos vegetais, gorduras animais ou óleos de cozinha usados. Ou seja, produtos da agropecuária.

A agricultura brasileira possui várias rotas e diversas plantas oleaginosas para produzir biocombustíveis de aviação. Em particular, um tipo de mostarda: a carinata, em expansão no Sul, Sudeste, Mato Grosso do Sul e Goiás. Ela pode ser um vetor de diversificação de produção, melhoramento da gestão do solo e ampliação da renda do agricultor.

A carinata (Brassica carinata L.) é da família das mostardas, como a mostarda negra (Brassica nigra L.), a mostarda castanha (Brassica juncea L.), a mostarda branca (Brassica alba L.), couves e repolhos (Brassica oleracea L.), colza (Brassica napus L.) e canola. O gênero Brassica dá nome à família botânica Brassicaceae, chamada antigamente de crucíferas, termo ainda bastante utilizado. É fácil reconhecê-la pelas flores com quatro pétalas em forma de cruz.

É fácil reconhecer a família botânica Brassicaceae pelas flores com quatro pétalas em forma de cruz | Foto: Shutterstock

A palavra “mostarda” significa “mosto ardente”. Deriva dos termos latinos mustum + ardens. Ao mosto da vinificação se misturava a pasta ardens da moagem de sementes de mostarda (sinapis). A receita desse molho está no De Re Coquinaria, um compêndio de receitas culinárias da Roma Antiga, de autoria do gastrônomo Marcus Gavius Apicius (25 a.C.-37 d.C.).

A carinata é plantada no Brasil no outono, na mesma janela de cultivo do trigo e de outros grãos de inverno, entre a rotação das principais culturas. Nesse período, os campos podem ficar vazios, expostos à erosão e à perda de carbono. Seu ciclo é de 110 a 130 dias. Utilizam-se 2,5 quilos de sementes por hectare e o mesmo espaçamento, máquinas e equipamentos da soja, com ajustes na semeadura e na colheita. Oleaginosa, a carinata é chamada, por analogia, de soja-de-inverno.

Sua floração dourada, característica das mostardas, abundante em pleno inverno, fornece excelente alimento às abelhas e as ajuda num momento de ausência de flores na vegetação nativa. A ação de abelhas em mostardas é complexa e pode até adiantar a floração. A apicultura seria renda adicional.

Como ocorre com parte da soja, os grãos da carinata são exportados para a França. Após a moagem, o óleo é destinado à produção de biocombustível, sobretudo na Alemanha, e o farelo restante é utilizado como ração de ruminantes

Suas “vagens”, ou síliquas, são idênticas às da colza e das mostardas. Os grãos são pequenos. Mil grãos pesam de 4 a 6 gramas. Lembram Jesus associando o poder da fé às mostardas: “Se tiverem fé do tamanho de um grão de mostarda, dirão a este monte: ‘Vá daqui para lá’, e ele irá. Nada será impossível a vocês” (Mt 17,20). E fé não falta aos produtores rurais.

O grão da carinata não é comestível. Tem alto teor de óleo (48%), do qual se produz bioquerosene ou biodiesel de aviação. Esse óleo de baixo carbono tem um ponto de congelamento bem inferior ao da soja. Como ocorre com parte da soja, os grãos da carinata são exportados para a França. Após a moagem, o óleo é destinado à produção de biocombustível, sobretudo na Alemanha, e o farelo restante é utilizado como ração de ruminantes.

A carinata é um arbusto. Produz em solos de média e baixa fertilidade. Sua altura chega a 1,6 metro e a mais de 2 metros quando irrigada. A raiz pivotante é da mesma magnitude. Esse enraizamento profundo recupera nutrientes do solo lixiviados pela água para fora do alcance das raízes da soja ou do trigo, por exemplo. Ao trazê-los de volta, na estrutura da planta, contribui para a reciclagem dos nutrientes e para uma efetividade maior no uso dos fertilizantes. As raízes da carinata produzem substâncias (exsudatos) com propriedades nematicidas e contribuem para o controle de nematoides do solo.

A carinata é um arbusto que produz em solos de média e baixa fertilidade. Sua altura chega a 1,6 metro e a mais de 2 metros com irrigação | Foto: Shutterstock

O vigor da parte subterrânea (6 toneladas de matéria orgânica por hectare) e aérea (8 toneladas de matéria orgânica por hectare) enriquece os solos, favorece a microbiologia, amplia a porosidade, protege a terra de intempéries e reduz a erosão. Seu intenso recobrimento dos solos (fechamento) e suas propriedades fitoquímicas (alelopatia) ajudam a controlar ervas daninhas. Ao final do cultivo, essa matéria orgânica se degrada rapidamente (baixa relação C/N), e fica um campo limpo para uma nova cultura.

Por ser uma cadeia produtiva ainda incipiente, o plantio de carinata se faz por contrato. A empresa fornece a semente e compra a produção ao preço de balcão da soja na ocasião. O mercado é ilimitado. A produtividade é da ordem de 2 toneladas por hectare, metade da soja. Aumentará com inovações e ajustes nos sistemas de produção. Com irrigação, chega a 5 toneladas por hectare. A carinata já ocupa áreas significativas no oeste do Paraná, embeleza a paisagem rural com os tons de verde diferenciados de sua folhagem e o dourado vivo de sua floração.

Mesmo no futuro, será difícil o SAF atingir preços nos níveis do querosene de petróleo. Haverá um sobrecusto. Hoje, o SAF custa mais de duas vezes o valor do querosene fóssil. Resta definir quem assumirá esse custo adicional: companhias aéreas, passageiros ou subvenções públicas?

O Reino de Deus é como um grão de mostarda que alguém pegou e semeou no seu jardim: cresceu, tornou-se um arbusto, e os pássaros do céu foram fazer ninhos nos seus ramos (Lc 13,18-21). Coisa certa: não faltará empenho dos produtores rurais em ajudar o reino do setor aéreo a crescer e manter o voo de seus “pássaros do céu”, por várias rotas vegetais renováveis.

Leia também “Amor não deixa feliz e cheio de energia. O nome disso é açaí”

5 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente conteúdo.

  2. Leandro Guimarães Faria Corcete Dutra
    Leandro Guimarães Faria Corcete Dutra

    Se não é econômico, não é sustentável. Só modismo. No final, melhor continuar com os fósseis até que apareça algo mais econômico. A área em tese cultivada para isso ficará ou para alimentos ou para a natureza.

  3. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Excelente artigo.
    Nos mostra mais uma vez a imensurável capacidade do agro em participar das nossas vidas.
    Ate quando os governantes irão com essa ignorância em atacar o agro brasileiro.
    Temos que ser como graos de mostarda e perseverar

  4. Eládio Torret Rocha
    Eládio Torret Rocha

    Uma vez mais, com prazer, aplaudo o artigo do Dr. Evaristo, sobretudo porque, para mim, novidadeiro no tema, além de escrito com inegável estilo e arguta criatividade.

  5. Giovani Santos Quintana
    Giovani Santos Quintana

    A ciência mais uma vez fazendo com que as profecias bíblicas se cumpram ao pé da letra, coisa linda.

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