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Ilustração: Revista Oeste/Shutterstock
Edição 235

Além da censura

Punição conjunta do X e da Starlink é ilegal e tem potencial para afetar a economia brasileira

Amanda Sampaio
anderson scardoelli
Anderson Scardoelli
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O início da madrugada de 31 de agosto marcou uma derrota à liberdade de expressão no Brasil. Naquele momento, o país passou a figurar na lista de nações que bloqueiam o X (antigo Twitter), ao lado de China, Coreia do Norte, Irã, Rússia e Venezuela. Por aqui, a suspensão da rede social se deu a partir de uma determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Para o magistrado, a plataforma deveria sair do ar por causa do “não cumprimento” de decisões judiciais.

Notícia publicada na Revista Oeste (31/8/2024) | Foto: Reprodução/Oeste

A liberdade de expressão não foi a única vítima da decisão monocrática. Além de protagonizar o bloqueio da rede social, Moraes ordenou o bloqueio das contas da plataforma no Brasil. Impôs que o mesmo ocorresse com a Starlink, sob a alegação de que pertenceria ao mesmo “grupo econômico”.

Não é verdade. O X tem realmente como proprietário o norte-americano Elon Musk. Mas Musk não é o “dono” da Starlink. Ele é apenas um dos mais de 270 investidores da empresa que atua no segmento de conexão à internet via satélite. Não chega a ter nem a metade das ações da companhia — o empresário detém 40% dos ativos, sendo que Google, fundos de investimento e outras empresas são responsáveis pela outra fatia.

O bloqueio das contas do X e da Starlink fez com que pelo menos uma das lideranças do Poder Legislativo levantasse a voz contra Moraes. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), externou preocupação com a medida. “A gente tem que ter a preocupação de separar a pessoa jurídica ‘A’ da pessoa jurídica ‘B’”, afirmou. Deu como exemplo um caso de rombo bilionário. “Se no escândalo da Americanas fôssemos bloquear a conta da Ambev, não seria justo.”

‘Violação ao processo legal’

Apesar da crítica, Lira afirmou que decisão da Justiça não se comenta, apenas se cumpre. No entanto, o advogado Alexander Coelho, sócio do escritório Godke Advogados e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados, foi direto: para ele, o bloqueio das contas do X e da Starlink no Brasil é ilegal. Simples assim.

elon musk em israel
O empresário Elon Musk é dono da rede social X, mas não da Starlink | Foto: Avi Ohion/Via Fotos Públicas

“Houve, sem dúvida nenhuma, a violação ao processo legal”, afirma Coelho. “O STF determinou a transferência desses recursos sem respeitar o rito processual adequado. Isso traz o risco de uma insegurança jurídica muito grande para o nosso país, o que acaba afastando as empresas e o investimento de grandes conglomerados internacionais.”

Em um caso como esse, o rito processual adequado deveria envolver uma série de etapas: 1) Notificação (o X e a Starlink deveriam ser formalmente notificados sobre as alegações contra eles); 2) Ampla defesa (as empresas deveriam ter o direito de refutar as acusações e, se necessário, apresentar provas da sua inocência); 3) Instrução do processo (uma vez apresentada a defesa, são analisadas as provas de ambos os lados. A partir daí, o juiz ou ministro responsável deve avaliar as evidências e ouvir os argumentos das partes); 4) Decisão judicial (somente depois desse trâmite é que uma decisão judicial pode ser tomada).

Os “recursos” mencionados pelo advogado são os R$ 18 milhões que foram confiscados, a mando de Moraes, dos caixas da rede social e da provedora de internet. Esse é o valor da multa que o ministro impôs ao X por, segundo ele, ter descumprido ordens judiciais, como deixar de ter representante legal no Brasil. Em 17 de agosto, Musk anunciou o fechamento do escritório da plataforma no país sob a alegação de que os funcionários poderiam ser punidos pelo magistrado, inclusive com ordem de prisão.

No último dia 11, depois de bloquear as contas das duas empresas, Moraes transferiu para os cofres da União quase R$ 7,3 milhões do X no Brasil. O mesmo ocorreu com mais de R$ 11 milhões da Starlink Brazil Serviços de Internet, que nem ao menos era parte do processo. No mesmo dia, as contas foram desbloqueadas — mas o dinheiro não foi devolvido.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, durante a solenidade comemorativa ao Dia do Soldado, no Quartel-General do Exército, em Brasília — 22/8/2024
Ministro Alexandre de Moraes, do STF: decisões criticadas no Brasil e nos Estados Unidos | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O corporativismo do STF

Na visão do advogado Antonio Celso Baeta Minhoto, doutor em Direito Público e Constitucional, será difícil para a Starlink reaver o dinheiro confiscado. Segundo Minhoto, esse é um dos efeitos colaterais de contar com uma Suprema Corte que se propõe a “fazer tudo”. 

“Quando o STF toma uma decisão, você recorre a quem?”, indaga Minhoto, que é professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e da Fundação Santo André. “Ao próprio Supremo? Isso tem uma série de implicações. Tem, inclusive, um espírito de corporativismo que não pode nos deixar cegos: a tendência de um ministro prestigiar a decisão de outro ministro é imensa.”

Até pouco tempo atrás, o X era representado em processos no Supremo pelo escritório de advocacia Pinheiro Neto, um dos principais do Brasil. A empresa ainda não anunciou o substituto. A Starlink, por sua vez, parece orientar a equipe de advocacia que atende seus casos no Brasil a não se manifestar. “Por uma questão de sigilo profissional, o Demarest não comenta assuntos relacionados a clientes”, limitou-se a responder o escritório.

‘Uma forma de liberdade de expressão’

O deputado federal Rodrigo Valadares (União-SE) propôs a imposição de entraves para que o Judiciário confisque o dinheiro de companhias que não são parte de determinada ação. No Projeto de Lei nº 3.408/2024, ele registra o interesse em proibir esse tipo de medida.

“A ideia é garantir a segurança jurídica de empreendedores e investidores que escolhem o Brasil para investir”, afirma o parlamentar, em trecho do projeto apresentado no dia 2 de setembro. “Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal realizou o bloqueio das contas bancárias do serviço de internet via satélite Starlink, alegando que existia vínculo econômico entre a empresa e a plataforma X (antigo Twitter) para o pagamento de multas em processos judiciais e obrigar a plataforma a indicar um representante em território nacional. Tal medida incentiva a fuga de capitais e pode aumentar os índices de desemprego em nosso país.”

A observação de Valadares encontra respaldo entre autoridades dos Estados Unidos. O chefe da agência de comunicação norte-americana Brenda Carr havia afirmado no início do mês que X e Starlink são alvo de ilegalidades. Em carta direcionada à presidência da Agência Nacional de Telecomunicações, ressaltou justamente o que o deputado brasileiro alertou no projeto de lei. “Os líderes empresariais dos EUA agora estão questionando abertamente se o Brasil está a caminho de se tornar um mercado não investível.”

Sem entrar no mérito do confisco, a Casa Branca se manifestou, nesta semana, de forma objetiva contra o bloqueio do X no Brasil. “Temos deixado bem claro que achamos que as pessoas devem ter acesso à mídia social”, disse a porta-voz do governo norte-americano, Karine Jean-Pierre, ao responder à pergunta feita pela jornalista Raquel Krähenbühl, correspondente do Grupo Globo em Washington. “É uma forma de liberdade de expressão.”

Publicado por @raquelkrahenbuhl
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Risco à economia

O economista Paulo Rabello de Castro, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), exemplificou em cifras o impacto negativo que a suspensão do X pode ter sobre a economia brasileira. Segundo ele, o prejuízo deverá ser de aproximadamente R$ 18 bilhões no decorrer dos próximos cinco anos.

Para chegar ao número, Castro levou em consideração a máxima de que “tempo é dinheiro”. Com o dado de que o tempo médio diário de um internauta na rede era de 30 minutos, ele definiu que cada usuário brasileiro “gastava” R$ 8 ao dia na plataforma.

Para o cálculo, o economista fez um cálculo conservador. Ele excluiu a parcela de robôs e da audiência que usava o X apenas para se entreter, e estimou que o Brasil tinha 3,5 milhões de pessoas que consumiam informação por meio da plataforma.

“Multiplicando os R$ 8 pelos 3,5 milhões de usuários, temos R$ 28 milhões por dia”, explica Castro. “E multiplicando por 365 dias, chegamos à perda anual de R$ 10,2 bilhões, em razão do que eu chamo de ‘informação bloqueada’. Isso só no primeiro ano da suspensão do X.”

De acordo com o ex-presidente do BNDES, os outros R$ 7,8 bilhões seriam diluídos nos quatro anos seguintes ao bloqueio da rede no país. Para ele, esse seria o período necessário para que os 3,5 milhões de antigos usuários do X encontrassem outras plataformas para consumir informação.

YouTube video

O presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), Flávio Roscoe, diz que a suspensão do X no Brasil “compromete as atividades de inúmeras empresas que consideram o ambiente digital uma parte fundamental de suas operações”. Para ele, várias corporações já perderam “sua fonte de sustento”.

Apesar dessas ponderações, Alexandre de Moraes segue firme em sua decisão de manter o X fora do ar no Brasil (por “falha no bloqueio”, a rede chegou a voltar ao ar no dia 18 de setembro, mas ficou novamente inoperante horas depois). Em seu parecer, o ministro ressaltou que a plataforma estaria obstruindo “investigações de organização criminosa”. Uma justificativa tão verossímil quanto a usada para fundamentar a prisão de aposentados, professoras, cabeleireiras e moradores de rua por tentativa de golpe de Estado.

Leia também “Insensatez jurídica vezes X”

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