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Presidente Joe Biden e Evan Gershkovich libertado da Rússia | Foto: Shutterstock
Edição 235

O espião que não era

A libertação do jornalista Evan Gershkovich revela muito sobre a Rússia de Vladimir Putin

Dagomir Marquezi
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Às 11h20 da sexta-feira 2 de agosto, um avião Tupolev Tu-204-300 pousou no Aeroporto de Ankara, a capital da Turquia. Um grupo de 16 prisioneiros da Rússia havia sido trocado por oito cidadãos russos que estavam presos em países ocidentais. Os russos seguiram para o Tupolev e decolaram rumo a Moscou.

Os ocidentais libertados entraram num ônibus e embarcaram em outro avião — um Bombardier Global 7500 prateado, prefixo N7584G. Atravessaram o Atlântico Norte e pousaram na base de Andrews, próxima a Washington, às 23h37 da mesma sexta-feira. 

O rosto mais esperado na escada de desembarque era o de um jovem jornalista (32 anos) do Wall Street Journal, Evan Gershkovich. Evan foi a figura que mobilizou os Estados Unidos a dar uma resposta àquela situação. A troca envolveu os governos da Alemanha, Noruega, Eslovênia e Bielorússia, além dos EUA e Rússia.

Gershkovich desceu as escadas do Bombardier com sorrisos e bom humor. Foi recebido por seus familiares, pelo presidente Joe Biden, pela vice Kamala Harris e pela editora-chefe do Wall Street Journal, Emma Tucker. Aos repórteres, as primeiras palavras de Gershkovich foram um pedido para que não esquecessem os muitos prisioneiros políticos e estrangeiros inocentes que permanecem nas prisões da Federação Russa.

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As paredes do Kremlin

Evan Gershkovich começou seu martírio na manhã de uma quarta feira, 29 de março de 2023. Ele pousou no aeroporto da cidade de Yekaterinburg, 1,4 mil quilômetros a leste de Moscou. A intenção do repórter era fazer um bate e volta e retornar a Moscou no mesmo dia.

Evan combinou de encontrar uma fonte para conversar sobre a movimentação de tanques russos para a guerra na Ucrânia. Marcaram de se encontrar no Bukowski Grill, na Avenida Lenin. Agentes da FSB, o Serviço Federal de Segurança russo, entraram no restaurante e prenderam Evan. 

Em Nova York, às 13h12 do dia seguinte, o pessoal do Wall Street Journal ligou o alerta. Eles sabiam que o regime de Putin estava cada vez mais repressivo. Gershkovich andava sendo seguido, suas fontes estavam sendo presas, e seus amigos russos haviam sumido. E, depois que chegou a Yekaterinburg, ele não deu mais sinal de vida.

O staff do jornal ligou para a mãe de Evan, Ella, avisando que seu filho estava desaparecido. Passado o choque inicial, a própria mãe descobriu na internet que Evan estava sendo acusado de trabalhar para a CIA “coletando informações de um empreiteiro da área de segurança”.

Até as paredes do Kremlin sabiam que a acusação era falsa. Fazia parte de um jogo cruel iniciado 16 anos antes.

Presidente Joe Biden e Evan Gershkovich, libertado da Rússia | Foto: Shutterstock

As duas fotos de Vladimir Putin

Esse jogo, que parecia encerrado com o fim da guerra fria, voltou de outra forma a partir de 2008, segundo matéria do WSJ

Nesse ano, agentes da DEA, órgão americano destinado ao controle de drogas e armas ilegais dentro e fora dos EUA, prenderam o traficante russo de armas pesadas Viktor Bout. Dois anos depois, a mesma DEA prendeu o ex-piloto da força aérea russa Konstantin Yaroshenko, que estava envolvido no tráfico de cocaína.

Para os EUA, Bout e Yaroshenko eram bandidos perigosos. Mas para Vladimir Putin eram cidadãos russos sendo perseguidos. Ele exigiu a libertação dos dois. Como não foi atendido, passou a prender americanos meio ao acaso para trocar por seus compatriotas. Agora, em 2024, Putin tinha em seu poder um correspondente de um dos mais importantes jornais do mundo. Era uma peça e tanto no seu jogo de xadrez.

Evan Gershkovich, preso para servir como refém, foi levado direto do restaurante para a prisão de Lefortovo, nas cercanias de Moscou. Passava 23 horas por dia isolado numa cela solitária de 2,7 por 3,6 metros. Sabia que naquelas mesmas celas os carrascos de Josef Stalin haviam torturado e assassinado milhares de “inimigos do Estado”. O presídio foi desenhado para que os prisioneiros não conseguissem ver ou ouvir uns aos outros, e vivessem em profunda solidão.

Segundo a matéria do WSJ, quando não estava na solitária, Evan estava na sala do investigador-chefe da FSB, Alexei Khizhnyak. O repórter era interrogado diante de um pôster de Che Guevara e de uma foto do fundador dos serviços soviéticos de segurança, Felix Dzerzhinsky. Para completar o clima, dois retratos de Vladimir Putin na parede ficavam de olho no jovem repórter. Para aliviar um pouco a tensão, interrogado e inquisidor acabaram encontrando um interesse em comum: a Premier League do futebol inglês. (Gershkovich torce para o Arsenal, e Khizhnyak, para o rival Liverpool).

Evan Gershkovich, preso para servir como refém, foi levado direto do restaurante para a prisão de Lefortovo, nas cercanias de Moscou | Foto: Wikimedia Commons

A ‘nova ordem pirata’

Em 14 de dezembro de 2023, Putin disse à imprensa que estava negociando a libertação de Evan para que o acordo fosse “mutuamente benéfico”. Em 8 de fevereiro de 2024, declarou em entrevista a Tucker Carlson que desejava trocar o repórter por um russo que estava preso na Alemanha, mas não informou seu nome. 

Uma complexa operação de troca de prisioneiros foi planejada para negociar a libertação de Evan Gershkovich, do militar Paul Whelan e até de Alexei Navalny, o advogado que desafiou Putin na eleição para presidente. A morte de Navalny oito dias depois complicou as negociações.

Em 13 de junho deste ano, o governo russo resolveu endurecer o jogo. Evan foi devolvido à cidade de Yekaterinburg (onde havia sido preso) para um julgamento de farsa. Durou apenas três dias, já que não havia qualquer acusação baseada em fatos reais contra o jornalista. Do nada, Evan Gershkovich foi condenado a 16 anos de prisão. 

Mas Evan cumpriu apenas duas semanas de sua nova pena e foi solto no dia 1º de agosto como parte do acordo. No total, passou 491 dias preso. 

“[O caso] oferece evidências sérias da assimetria entre os EUA e a Rússia nessa nova ordem pirata”, publicou o Wall Street Journal no dia da libertação de Gershkovich. “Putin pode ordenar que estrangeiros sejam retirados de restaurantes e hotéis e que recebam longas sentenças de prisão por acusações espúrias — algo que um líder americano não pode fazer.”

Presidente russo Vladimir Putin | Foto: Sputnik/Kristina Kormilitsyna/Reuters

Mister Bean de férias

O ex-militar Paul Whelan também foi incluído na negociação. Como Evan, Paul Whelan tinha ligações sentimentais com a Rússia. Sua mulher era uma russa chamada Yula. Paul tinha grandes amigos por lá, incluindo policiais e oficiais da inteligência. 

Um desses amigos, membro da toda-poderosa FSB, entregou a Whelan um pen drive dizendo que eram fotos de suas férias. Mas eram nomes de estudantes ligados à FSB. No dia 22 de dezembro de 2018, enquanto fazia a barba no hotel, o americano foi preso, acusado de ter a intenção de entregar o pen drive para a inteligência americana.

Na van, um dos homens que o levaram para a prisão de Lefortovo não escondeu o objetivo da operação: “Você será trocado”. Whelan definiu assim sua situação: “A Rússia diz que apanhou James Bond numa operação de espionagem. Na realidade, raptaram o Mister Bean de férias”.

Whelan ficou encarcerado na colônia penal IK-17, a quase 500 quilômetros de Moscou. Uma etiqueta foi costurada em seu uniforme com a data de sua prevista libertação: “27 de dezembro de 2034”. Na sua cela de 2,7 por 3,6 metros, a luz ficava ligada o dia inteiro, e os guardas faziam com que brilhasse ainda mais à noite.

A mensagem oculta

No lado dos russos que foram libertados na negociação, o mais famoso é o ex-militar Vadim Krasikov. Em 2019, Krasikov se aproximou de bicicleta de um líder rebelde checheno, num parque de Berlim, e o fuzilou em plena luz do dia. É o “prisioneiro dos alemães”, a quem Vladimir Putin se referiu na entrevista a Carlson como sua prioridade.

Para o jornalista Bojan Pancevski, do WSJ, o recado é claro: “O Kremlin caçará seus inimigos, mesmo que eles fujam para o Ocidente, e não abandonará aqueles que permanecerem leais ao seu governo”. Libertado pelos alemães, Krasikov foi recebido por Vladimir Putin em pessoa no Aeroporto Vnukovo, em Moscou, com direito a tapete vermelho e honras militares.

Entre os russos libertados também estão o hacker Vladislav Klyushin, conhecido pelas suas sólidas ligações com o gabinete de Putin, e Roman Seleznev, filho de um parlamentar russo, condenado em 2016 por ser “um dos mais ativos ladrões de cartões de crédito da história”. 

@harryjack804 SInce Ine The United States and RUssia have Completed their biggest prisoner swap in post-Soviet history. The deal saw two dozen people freed. The leaders met the prisoners as they returned home in an emotional reunion. #joebiden #putin #russia #usa #prison #free #evangershkovich #president #moscow #kamalaharris #fyp #viral #trending #foryou ♬ The Champion – Lux-Inspira

O espião ‘brasileiro’

Um caso especialmente curioso para nós é o do russo Mikhail Mikushin, professor visitante na Universidade de Tromso, na Noruega. Mikushin foi preso em 2022, acusado de trabalhar para o serviço de inteligência militar russo GRU. Ele nunca negou. 

Mikushin se fazia passar por um acadêmico brasileiro chamado José Assis Giammaria. Segundo o site The Insider, ele deixou pistas claras para ser preso. Usava uma senha com seu próprio nome mal disfarçado (“mcushin”). 

Dois de seus endereços de e-mail misturavam o Brasil com a Rússia, dando pistas da farsa. Um dos endereços homenageava uma série cômica da Rede Globo ([email protected]). O outro era ainda mais evidente: [email protected]. “Mika” é um apelido de Mikhail. Por que ele dava essa bandeira toda? Por enquanto é um mistério.

Mikushin, segundo o Insider, frequentou a Faculdade Um da Academia Militar Diplomática da GRU, no número 52 da Rua Narodnogo Opolcheniya, em Moscou. Na Academia, fez o curso para ser agente russo no exterior. Um pré-requisito era falar uma língua estrangeira, e Mika sabia falar português.

Em 2011, Mikushin alegou ter uma mãe brasileira. Conseguiu um passaporte do Brasil e virou o professor José Assis Giammaria. Deixou pistas de suas pesquisas envolvendo segredos militares. Fez coisas muito estranhas para um espião: publicou um blog e fez campanha política no Canadá, além de visitar a Rússia regularmente. Como “professor”, ele servia no extremo norte da costa ártica da Noruega. Não por acaso, um local vitalmente estratégico para a Rússia.

Como Mikushin conseguiu seu passaporte brasileiro aparentemente com tanta facilidade? O site Brussel Signal diz que existe a suspeita de que cartórios brasileiros estejam envolvidos com tráfico de identidades falsas para agentes russos.

Russo Mikhail Mikushin, espião que se passava por professor brasileiro | Foto: Reprodução/Redes Sociais

A Rússia de Vladimir Putin não troca espiões capturados. Ela sequestra cidadãos inocentes que são feitos de refém para serem trocados por criminosos russos

A ponte dos espiões

Em 2015, o diretor Steven Spielberg lançou um longa de suspense chamado Ponte dos Espiões (“Bridge of Spies”). O filme conta a história de uma famosa troca de prisioneiros. O agente soviético Rudolf Abel foi trocado por um piloto americano, Francis Gary Powers, derrubado sobre a URSS. A troca aconteceu no dia 10 de fevereiro de 1962, na Ponte Glienicke, que ligava a Berlim Ocidental com a Oriental, sob ocupação soviética.

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Mais de 60 anos depois, a situação é muito diferente. Em 1962, dois espiões de verdade foram trocados numa época em que a atividade comportava até gestos de cavalheirismo entre os Estados Unidos e a União Soviética.

A Rússia de Vladimir Putin não troca espiões capturados. Ela sequestra cidadãos inocentes que são feitos de refém para serem trocados por criminosos russos — e, eventualmente, por algum espião se apresentando como um professor brasileiro.


@dagomir
dagomirmarquezi.com

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