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Flávio Dino e Lula, e incêndio florestal em uma área da Floresta Nacional de Brasília (4/9/2024) | Foto: Montagem Revista Oeste/Ricardo Stuckert/PR/Adriano Machado/Reuters
Edição 235

Um puxadinho do STF

A realidade dos incêndios pelo país está incinerando o arcabouço fiscal, a segurança jurídica, a credibilidade das instituições e o que ainda nos resta da separação dos Poderes

Adalberto Piotto
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Nesta última semana, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, decidiu liberar o governo Lula, do qual fez parte até outro dia, para abrir um crédito extraordinário de R$ 514 milhões no Orçamento para o combate emergencial aos incêndios que queimam o país, a economia de empresas, a saúde das pessoas e qualquer vestígio de credibilidade e competência da gestão federal.

Ninguém em sã consciência se oporia a combater as chamas em um momento crítico como este, tampouco a usar os recursos necessários. Aliás, ninguém está se opondo. Ao contrário, reclama-se da omissão e ineficiência governamental diante da tragédia há meses. As questões que nos afligem é como esse combate vai se dar, se o recurso vai ser gasto com responsabilidade e, claro, por que só agora?

Reportagem publicada recentemente pelo jornal digital Poder360 mostra que o fogo aumenta desde junho, quando atingiu a marca de 12.432 queimadas pelo país, dobrando o número de casos do mês anterior. O aumento em mais de 10 mil focos de incêndio no mês seguinte, em julho, só viria a confirmar o prenúncio da tragédia de 68.645 queimadas em agosto, o pior mês até agora. E em pleno mês de setembro já são quase 60 mil focos registrados. A Confederação Nacional dos Municípios estima em mais de R$ 1 bilhão o prejuízo econômico — numa conta bem conservadora — e em 11 milhões o número de pessoas atingidas diretamente.

Fumaça de incêndios florestais cobre a Eplanada dos Ministérios, em Brasília (25/8/2024) | Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

É caso de negligência governamental grotesca. No primeiro semestre deste ano, o próprio Supremo Tribunal Federal havia determinado que o governo federal tomasse medidas para prevenir ou mitigar a catástrofe que hoje se espraia pelo país. Até porque a seca é uma realidade brasileira nesta época do ano, e os modelos climáticos já previam uma estiagem mais severa, assim como a atuação de fenômenos meteorológicos. Ou seja, o governo sabia.

Diante do vácuo gerado pela inação do Palácio do Planalto, o STF apareceu e tomou decisões especificamente sobre o combate aos incêndios que assolavam, até então, o Centro-Oeste. Em julgamento de ações de descumprimento de preceitos fundamentais, nas ADPFs nº 743, 746 e 857, o plenário determinou ao governo federal que elaborasse um “plano de prevenção e combate a incêndios no Pantanal, com monitoramento e metas, para garantir a preservação dessa região”. Desde então, o fogo só fez avançar pelo território nacional, comprometendo a produção de lavouras inteiras e a qualidade de vida no campo e nas cidades.

Bombeiros trabalham para extinguir um incêndio florestal em uma área do Parque Burle Marx, em Brasília (17/9/2024) | Foto: Adriano Machado/Reuters

O comportamento do Supremo de se meter em assuntos do Executivo se aprofunda por crônica falta de governança de Lula e de um Congresso que se apequena sob a gestão de Pacheco e Lira

O Brasil arder em chamas há tanto tempo mostra ou que nada foi feito, ou que a incompetência da gestão de Lula 3 prevaleceu uma vez mais. Mas o mais grave e institucionalmente temerário é que ministros do STF, de forma individual ou colegiada, tomem a frente de decisões que deveriam ser do governo federal, por meio de ministérios como os do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Defesa, da Integração e do Desenvolvimento Regional, e da Fazenda. Onde esteve ou está o governo?

Mais que o descalabro da omissão que literalmente aumenta a temperatura no Brasil, o desvirtuamento institucional se estabelece como regra. O comportamento do Supremo de se meter em assuntos do Executivo, que enfrentou resistência dura do governo Bolsonaro, agora se aprofunda sem constrangimentos por crônica falta de governança de Lula e de um Congresso que se apequena sob a gestão de Rodrigo Pacheco e Arthur Lira. De tempos em tempos, temos a heresia à democracia representativa de um ministro do STF ocupar de fato a cadeira da Presidência da República com decisões praticamente executivas. É quase uma presidência virtual, mas de ações práticas na base do “cumpra-se” sem debate social ou político.

Nessa intervenção sobre os incêndios descontrolados, antes mesmo de permitir ao governo liberar crédito extraordinário para a “emergência climática”, o ministro Flávio Dino já havia assumido protagonismo governamental.

Ministro Flávio Dino, em audiência do STF (19/9/2024) | Foto: Rosinei Coutinho/STF

“Estamos vivenciando uma autêntica pandemia de incêndios florestais”, disse ele, envolvido pela capa preta dos supremos. E, para justificar sua atuação executiva no caso, lembrou a “união” dos três Poderes no enfrentamento da pandemia de covid-19, propriamente dita, e também da tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul.

A exagerada e desproporcional comparação com a pandemia, para criar e justificar uma mobilização nacional de decisões de um homem só do STF, parece acobertar muita coisa da autoineficiência pública do governante da vez no Palácio do Planalto. Dos três casos, só a pandemia de covid-19 era imprevisível nas suas proporções e inevitável em sua abrangência. Daí a licença para gastar fora do Orçamento sem responder por crime fiscal, como fez o governo Bolsonaro e os governos do mundo inteiro, porque necessária e inadiável. Mas Bolsonaro recorreu ao Congresso para ser autorizado a gastar além das travas fiscais. Agora, é decisão de ministro do STF que já absolve por antecipação.

No caso do Rio Grande do Sul, a atuação do governo federal foi lenta e ineficiente, além da falta de trabalho de prevenção e de desassoreamento dos rios que fez aumentar de forma imensa o tamanho dos danos. No caso das queimadas de agora, a combinação de omissão e incompetência graves mostram que a ciência do clima foi negligenciada enquanto as evidências gritavam.

Cruzeiro do Sul, no Rio Grande do Sul, ficou devastado depois das enchentes; pessoas ficaram em abrigos
Enchentes destruíram diversas cidades do Rio Grande do Sul; atividades agropecuárias foram afetadas | Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Fato é que os R$ 514 milhões de crédito extraordinário para o tardio combate aos incêndios ficarão fora do cálculo do superávit primário, também por decisão monocrática. O governo Lula, com a economia sob gestão do ministro da Fazenda Fernando Haddad, tem a pretensão de zerar o déficit fiscal neste ano. Mas, só no primeiro semestre, já acumula R$ 69 bilhões de saldo negativo. A receita do governo para atingir o equilíbrio fiscal é retirar as despesas do cálculo com autorização do STF. A conta não fecha.

Fato é que está todo mundo vendo o que está acontecendo, como é feito e quem está fazendo. Enfim, a realidade está aí e não se esconde de ninguém. Além de prejudicar as florestas brasileiras, as plantações do competente agronegócio brasileiro e a saúde das pessoas, a realidade dos incêndios pelo país está incinerando o arcabouço fiscal, a segurança jurídica, a credibilidade das instituições e o que ainda nos resta da separação dos Poderes.

Leia também “Insensatez jurídica vezes X”

1 comentário
  1. Fabio Reiff Biraghi
    Fabio Reiff Biraghi

    Além de todo absurdo da ingerência do supremo em assuntos do executivo, ainda quecse lamentar a total inépcia do presidente e seus ministros no enfrentaremos do problema. Também gostaria de saber como foi feito o cálculo para determinar que o valor necessário é R$ 514 milhões?

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