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Área restrita do Aeroporto de Guarulhos | Foto: Yuri Curtulo/DPU
Edição 236

Multidão de esquecidos

Mais de 300 refugiados vivem amontoados numa sala no Aeroporto de Guarulhos, sem condições mínimas de saúde e higiene, esperando que o Brasil aceite recebê-los

Fábio Bouéri
Fabio Boueri
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Uma breve visita ao Terminal 3 do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, escancara o desleixo do governo brasileiro com os direitos humanos de estrangeiros que tentam ingressar no país como refugiados. Entre as principais irregularidades estão a retenção excessiva dos viajantes e a falta de assistência a necessidades básicas, como alimentação, cuidados médicos, condições de higiene pessoal e acesso a um mínimo de informações.

De acordo com um levantamento de instituições que acompanham o caso, mais de 360 pessoas seguem retidas no local como não admitidas, ou seja, sem condições legais de ingressar oficialmente em território brasileiro. A maioria é egressa de países asiáticos e africanos. Literalmente confinadas em uma sala de 200 metros quadrados, com capacidade para 20 pessoas, centenas de viajantes aguardam respostas e soluções que não têm data para chegar.

Enquanto isso, muitos adoecem ou têm agravado o seu estado de saúde. Neste mês, o jornal Folha de S.Paulo noticiou a morte de Evans Ossêi Ússu, ganês de 39 anos que teria passado mal e, por falta de atendimento, acabou morrendo no dia 13 de agosto. A família do rapaz culpa o Brasil por negligência e promete processar o Estado por sepultar o imigrante sem consentimento. Quase um mês depois do ocorrido, a Secretaria Nacional de Justiça pediu à Polícia Federal que investigue o caso.

Evans Ossêi Ússu, ganês de 39 anos que teria passado mal e, por falta de atendimento, acabou morrendo no dia 13 de agosto | Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal

A falta de estrutura

Conforme relatos de autoridades e especialistas que visitaram o local nos últimos meses, as condições oferecidas aos estrangeiros são precárias. No sanitário masculino, por exemplo, há apenas uma pia e dois vasos. O mesmo ocorre no sanitário feminino: existe apenas um chuveiro. E não para aí: as mulheres em período menstrual não recebem absorventes. Falta até creme dental.

O constrangimento só diminui em razão de doações de voluntários durante as inspeções das autoridades. “Quando cheguei lá, várias mulheres vieram pedir ajuda”, conta a senadora Mara Gabrilli (PSDB/SP), da Comissão Mista Permanente do Senado sobre Migrações Internacionais e Refugiados.

Outra situação que preocupa é a falta de cuidados médicos. Segundo Maria Aparecida Valença, gestora de uma entidade assistencial especializada no atendimento a refugiados com doenças e deficiências, há vários hipertensos e diabéticos no aeroporto. “É gente com casos crônicos que não está sendo observada”, denuncia.

Em uma das visitas, autoridades tiveram o apoio do infectologista do Hospital São Paulo Klinger Faíco. De acordo com a senadora Gabrilli, o médico ficou perplexo com o que viu, especialmente nos banheiros. Faíco, inclusive, diagnosticou casos de infecção pelo vírus da covid-19. 

Outro relato descreve um jovem que, por dias, reclamava de dor de cabeça e mostrava-se com os olhos bem avermelhados. “Um médico do aeroporto foi até lá e nada foi feito”, conta Aparecida. “Apenas disseram que ele sofria de ausência de sono.” O jovem segue com os mesmos problemas até hoje.

Risco permanente de agressão

Os voluntários lembram um episódio emblemático. Procedente da Somália, um jovem teve o pedido de refúgio negado. Ao saber do resultado, ficou completamente alterado. Exibia os dois braços mutilados e dizia ter sido torturado em seu país. Com dificuldades para falar, em razão do nervosismo e do idioma, o somali contou que perdeu o irmão na guerra e não suportaria voltar. “As pessoas ficam gratas em serem recebidas pelo Brasil, mas é uma gratidão com dor, fome, falta de higiene e um mínimo de conforto”, diz Mara Gabrilli.

No grupo de imigrantes são comuns muçulmanos em fuga de conflitos na Ásia e no Oriente Médio. Essas pessoas, por razões religiosas, não consomem alguns tipos de alimentos, como carne de porco. Contudo, essa particularidade é ignorada. A comida servida é a tradicional marmita, fornecida por companhias aéreas ou por voluntários. O cardápio normalmente reúne alimentos impróprios para os muçulmanos, que retiram do prato apenas o que lhes interessa e descartam o restante no próprio ambiente. A administração desconsidera a cultura muçulmana. “Estou aqui há quatro dias e não pude jejuar, pois não me deram comida durante a madrugada”, disse aos agentes uma das estrangeiras retidas por falta de documentação. Outro imigrante reclamou: “Só nos dão arroz frio”.

Uma fina manta para se proteger do frio

As diligências realizadas em vários períodos distintos e por diferentes grupos de especialistas e autoridades atestam o desconforto dos imigrantes. Para dormir, os estrangeiros usam finos colchões, que são colocados no chão ou amontoados em frestas sobre bancos.

Além de dor nas costas e dificuldade para dormir em razão do desconforto físico, as pessoas sofrem com o frio. Na madrugada de 27 de agosto deste ano, por exemplo, São Paulo registrou -1,7 ºC na zona sul da capital. Para se proteger de temperaturas que se aproximam do zero, os viajantes — sem agasalhos próprios — contam apenas como uma fina manta entregue pelas companhias aéreas.

Para dormir, os estrangeiros usam finos colchões que são colocados no chão ou amontoados em frestas sobre bancos | Foto: Yuri Curtulo/DPU

A barreira do idioma

Além de privados de condições básicas de higiene pessoal, assistência médica, alimentação adequada e conforto para dormir, os estrangeiros não têm acesso à informação. A maioria deles não fala inglês, e o serviço migratório não fornece material informativo adicional. A comunicação se limita ao preenchimento de formulários. A tentativa de disponibilizar voluntários para ajudar na comunicação esbarra na burocracia. 

Em síntese, os imigrantes não têm contato com o mundo exterior. Assim, seguem sem saber quando sairão e para onde vão. “Imaginei-me em um lugar estranho, sem saber da minha família”, disse a senadora Mara Gabrilli.

O alojamento onde ficam os estrangeiros retidos pela Polícia Federal (PF) está no chamado Conector — espaço dentro de uma área restrita, localizada no pavimento de desembarque do Terminal 3. Ali, o que se vê é apenas um paredão de vidro jateado com a marca da administradora e vários avisos de “área restrita”. No fundo, à esquerda do setor de desembarque, está a delegacia da Polícia Federal. É um local com aparência sombria, em cuja entrada se destacam duas placas, uma sobre a inauguração da repartição e outra com a advertência: “Proibido fotografar ou filmar”. 

Entre a privação e o luxo

Não há movimentação significativa além do vigiado entra e sai de funcionários do free shop — como são chamadas as lojas que ficam dentro de aeroportos internacionais ou em lugares próximos a fronteiras. No dia em que Oeste visitou o local, jornalistas de uma emissora de TV estavam ali para noticiar um caso de tráfico de drogas. 

Enquanto os estrangeiros retidos vivem em meio a uma série de privações, no pavimento imediatamente superior está o setor de embarque, com luxuosas salas vip, próximas de restaurantes com cardápios premiados e um hotel de primeira classe. 

Na parte frontal à área onde ficam os estrangeiros retidos pela PF está o saguão de desembarque internacional. Ali se vê um enorme painel superior indicando as chegadas de voos procedentes de todas as partes do mundo, inclusive dos países que estão na mira da PF. De lugares como Índia, Nepal e Vietnã vêm passageiros com potencial para gerar dor de cabeça aos agentes de imigração.

“Esses viajantes aproveitam a isenção do visto de trânsito para entrar aqui”, explica o delegado da PF que atua no aeroporto, Rodrigo Weber de Jesus. Segundo ele, o número de pessoas que pousam em Guarulhos e pedem refúgio cresceu mais de 6.000% nos últimos dez anos. “Saímos de 69 pedidos em 2013 para 4.239 até metade de 2024″, diz.

O tráfico de pessoas

Weber de Jesus reconhece o gargalo existente no serviço de imigração e aponta o tráfico de pessoas como o principal desafio. “O uso inadequado do refúgio por organizações de contrabando de imigrantes resulta principalmente na violação dos direitos humanos”, observa, ao explicar que alguns pedem refúgio para depois seguir outras rotas migratórias.

Mas o aumento do número de refugiados não é uma questão local, observa Eveline Brígido, professora de Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Estamos em uma onda migratória muito elevada e com tendência de crescimento”, observa.

De acordo com o defensor público federal Ed Willian Carvalho, o Aeroporto de Guarulhos é palco de reiteradas violações dos direitos humanos. “Faço visitas quinzenais e vejo que isso é um fenômeno recorrente e crescente no Brasil”, conta. Segundo ele, o país tem uma legislação de vanguarda, mas falha gravemente na questão estrutural. “É normal vermos gestantes, idosos e crianças retidas”, afirma. “É comum vê-los no chão, apenas com uma coberta da companhia aérea.”

O defensor público lembra que, no fim de 2023, encontrou vietnamitas retidos havia mais de três semanas. Ele conta que, na época, o espaço, para 20 pessoas, abrigava 480 estrangeiros. “Cobramos medidas imediatas dos órgãos governamentais e das companhias aéreas”, ressaltou, ao lamentar a falta de sucesso na empreitada. Uma das medidas cobradas é sobre isonomia no tratamento dispensado pelas companhias aéreas aos viajantes retidos. “Estado e empresas precisam explicar o porquê de determinados estrangeiros retidos poderem ficar em hotéis, enquanto outros permanecem no aeroporto”, diz Carvalho. Ele reforça que há uma violação maciça dos direitos humanos em Guarulhos. “Falamos de pessoas que passam dias ou até semanas em retenção indevida por deficiência estrutural do Estado”, lamenta.

O novo normal

O Ministério da Justiça reconhece a crise no sistema de imigração no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Não é para menos. A diretora do Departamento de Migração, Luana Medeiros, diz que a situação é complexa e envolve legislações nacionais e internacionais. A servidora explica que o aumento do número de pedidos de refúgio, combinado com o número de recusas por parte da autoridade migratória, resultou num cenário atípico. “O que era excepcional agora é uma emergência permanente”, observa.

Luana explica ainda que, nos anos anteriores, quando havia picos extraordinários nos fluxos migratórios, o governo fazia uma força-tarefa para solucionar o problema. “Os números atuais não baixam de uma média de 200 pessoas retidas”, diz. “Esse, agora, é o novo normal.”

O Ministério da Justiça reconhece haver uma crise no sistema de imigração no Aeroporto Internacional de Guarulhos | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Oeste procurou a GRU Airport, concessionária que administra o Aeroporto de Guarulhos. A empresa informou que não comenta o assunto por se tratar de um tema pertinente à esfera pública.

Segundo Paulo Costa, diretor legal e regulatório da associação que representa as companhias aéreas na América Latina, as empresas são vítimas da situação. “Assim como os passageiros, somos vítimas de uma falta de responsabilidade que pertence ao Estado”, afirma. Ele explica que as empresas, muitas vezes, recebem o passageiro em uma conexão sem ter como saber a intenção do viajante. “Não há como descobrir se o passageiro que se diz interessado em viajar ao Brasil quer seguir para a Bolívia ou para o Panamá”, argumenta.

A inércia do Estado

Uma comissão mista no Senado debateu, no último dia 14 de agosto, a crise em Guarulhos. Na discussão, os parlamentares mencionaram o caráter “vanguardista” da legislação brasileira. Contudo, nenhuma solução foi sugerida para o problema dos refugiados no maior aeroporto do país.

Enquanto o Brasil reforça o discurso de anfitrião de excelência, a área restrita do Aeroporto de Guarulhos segue com centenas de pessoas em sofrimento, correndo risco de morte pela falta de acolhimento adequado.

Segundo o advogado Carlos Nicodemos, presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ, o governo brasileiro está sujeito a sanções do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. “O Brasil poderá ser denunciado por omissão perante tratados internacionais”, sustenta, ao acrescentar que a administradora do aeroporto deve responder pelo que ocorre em seu ambiente. “Falamos de um capítulo que integra direitos humanos e empresas, retirando as empresas de uma posição omissa ante a violação de direitos humanos de imigrantes para que, efetivamente, atuem com responsabilidade.”

É preciso estabelecer limites

O procurador da República André de Carvalho Ramos reforça a visão do advogado Nicodemos. Segundo ele, o Brasil precisa respeitar os acordos internacionais. “O governo tem o dever de praticar inclusão dos imigrantes com dignidade”, adverte. “Optamos por estar em linha com os padrões interamericanos. Então, temos de cumprir a parte administrativa.”

De acordo com o procurador, o Brasil precisa estabelecer um limite no número de pedidos de refúgio e, ao mesmo tempo, estudar admissões excepcionais. “Precisamos tomar medidas concretas para desestressar o processo e acolher as pessoas, sem, no entanto, regredir no aspecto legal”, concluiu.

Enquanto isso, os imigrantes seguem à míngua no Aeroporto de Guarulhos.

Foto: Shutterstock

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