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Foto: Revista Oeste/Freepik/IA
Edição 236

Pequenas prefeituras, grandes orçamentos

No extremo oeste paulista, Borá é uma entre muitas cidades do país que não têm dinheiro para pagar as contas

Artur Piva
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Ao meio-dia de uma segunda-feira, as portas do prédio da prefeitura de Borá estão destrancadas. Uma placa com os dizeres “ar-condicionado funcionando” orienta: “Empurre para entrar”. Não há, entretanto, um único funcionário no pequeno sobrado, sede do Poder Executivo local. É hora do almoço, e todos estão em suas casas, localizadas a no máximo três quarteirões de distância. As ruas parecem um deserto. Nem mesmo cachorros e gatos transitam por elas. A prefeitura da cidade do interior paulista tem uma das maiores verbas por habitante, sendo uma das mais dependentes de repasses tanto da União quanto do governo estadual.

Com pouco menos de mil habitantes, o orçamento local é de cerca de R$ 20 milhões em 2024. Desse total, apenas R$ 500 mil são arrecadados por meio de impostos e taxas municipais. O valor não paga nem mesmo os salários dos servidores públicos. O restante é proveniente dos repasses — e essa situação está longe de ser uma exceção no país.

A porta do prédio da prefeitura de Borá não foi trancada no horário de almoço | Foto: Artur Piva/Revisa Oeste

Assim como nesse pequeno lugar, 30% dos municípios brasileiros arrecadam menos que o equivalente à folha de pagamento de seus funcionários públicos, de acordo com um levantamento da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro. Além disso, 48% das prefeituras dependem das transferências de recursos para bancar 90% das dívidas correntes — como são chamadas as contas do dia a dia, como gastos com combustível ou com o giz usado nas escolas municipais.

São Paulo, a cidade mais desenvolvida do Brasil, pode gastar R$ 112 bilhões em 2024, o correspondente a cerca de R$ 10 mil por habitante — e isso apesar de ser o terceiro cofre mais rico do país, atrás apenas do governo federal e do Estado de São Paulo. Os R$ 20 milhões de Borá correspondem a R$ 20 mil por morador. 

Exército de políticos

Nas eleições de 2024, Borá deve eleger 11 políticos — o prefeito, seu vice e nove vereadores. É um político para cada 82 habitantes. Já os 12 milhões de paulistanos elegerão 55 vereadores, além do prefeito e do vice. Sendo assim, os 57 políticos eleitos da capital equivalem a um para cada 210 mil moradores.

O piso e o teto do número de vagas foram determinados pela Constituição Federal de 1988. Cidades com até 15 mil moradores podem eleger nove vereadores. Com até 30 mil, elegem 13. O número aumenta paulatinamente até atingir o máximo de 55 vereadores, no caso de municípios com mais de 8 milhões de habitantes — no Brasil, só São Paulo tem esse tamanho.

Na prática, a regra cria um exército de políticos em lugares com pouca população. Ao todo, existem cerca de 58 mil vagas para vereadores no Brasil — metade delas em locais com menos de 15 mil habitantes. A maior entre as menores é Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná — onde o candidato eleito com o menor número de eleitores teve 243 votos em 2020.

Ao mesmo tempo, na capital São Paulo, o vereador de menor eleitorado contabilizou quase 14 mil votos. É mais que todos os 12,3 mil eleitores que existem em Bela Vista do Paraná e muito mais que os mil eleitores de Borá — uma das cerca de 830 cidades brasileiras que têm mais eleitores que moradores.

Enquanto o IBGE calcula 926 boraenses, a Justiça registra 1.094 eleitores. A diferença ocorre porque parte dessas pessoas se mudou, mas não transferiu o local de votação.

Além disso, também há mais trabalhadores que habitantes na cidade: 1.375 com carteira assinada, de acordo com o governo federal. O grande motor de empregos é uma usina que produz álcool e açúcar. Essa distorção acontece porque muitos empregados da empresa moram em outras cidades da região. A maior parte dos impostos arrecadados ali também não fica no município — vai para a União (IPI) e para o Estado (ICMS).

O número de empregos superior ao de residentes, contudo, é uma exceção entre os pequenos municípios. Em Mairi, no interior da Bahia, por exemplo, menos de 5% dos 18 mil moradores têm um emprego. Dentre os empregados, quase 600 trabalham na prefeitura. 

A mistura de desemprego, remuneração ínfima e falta de perspectiva empurra a maior parte da população para a dependência de programas sociais, especialmente o Bolsa Família. Atualmente, Mairi tem 4,5 mil famílias dependentes de benefícios federais. Pelas estimativas do governo, 10 mil moradores (56% dos habitantes) precisam do auxílio.

Cada vereador mairiense ganha R$ 8 mil por mês, enquanto o prefeito recebe R$ 18 mil. Em Borá, os salários são de R$ 1,8 mil e R$ 10 mil, respectivamente.

Com pouco menos de mil habitantes, o orçamento de Borá é de cerca de R$ 20 milhões em 2024 | Foto: Reprodução

Mais gente trabalhando do que morando em Borá

No caso dos trabalhadores de Borá, pouca gente quer se prender ao município, em vista das opções com mais estrutura nas proximidades.

A “vizinha pujante” é Paraguaçu Paulista, que tem cerca de 22 mil habitantes — e duas agências bancárias, sendo uma da Caixa Econômica Federal. A preferência, contudo, não ocorre apenas por causa dos bancos.

Embora exista uma Unidade Básica de Saúde em Borá, depois do meio-dia apenas enfermeiras trabalham no local — alguns dias é possível encontrar também dentistas e uma nutricionista. A partir das 17 horas, quando o estabelecimento fecha, nem isso. Apenas as ambulâncias (seis ao todo) ficam de prontidão para alguma emergência.

A dependência em relação à vizinha Paraguaçu Paulista é tão grande que existe uma linha de ônibus gratuita para transportar passageiros entre as duas cidades. Paulo Paiva, de 32 anos, supervisor-geral da prefeitura, apresenta números que mostram o tamanho do vínculo.

“O comércio daqui é de produtos de subsistência”, explica. “Itens como leite, pão e carne. O valor que gira é muito pequeno. Um exemplo que mostra isso é o nosso cartão de vale-alimentação. Pagamos cerca de R$ 100 mil por mês, somando todos os servidores, e menos de R$ 5 mil são consumidos no município. O restante vai para Paraguaçu Paulista.”

A lotérica é o mais próximo de uma agência bancária em Borá | Foto: Artur Piva/Revista Oeste

Quando tem não falta nada

O único açougue de Borá, localizado em um imóvel da prefeitura, tem apenas um funcionário — o dono. A única farmácia particular funciona com dois empregados no pequeno barracão geminado, ao lado. Há ainda um supermercado nas imediações. Seu nome é São Paulo, mas a variedade de produtos é menor que a de uma mercearia de bairro na capital. O horário de funcionamento também é mais restrito — fecha para o almoço e ao pôr do sol, e não abre aos sábados e domingos.

Aliás, almoçar ali é um desafio para os forasteiros, já que não há restaurantes. Para comer fora de casa, é possível optar entre os salgados da Padaria Artesanal ou do Vegas, uma espécie de loja de conveniência. 

O único açougue de Borá, localizado em um imóvel da prefeitura, tem apenas um funcionário | Foto: Artur Piva/Revisa Oeste

Também não há nenhum banco. Até três meses atrás, havia uma pequena unidade do Santander. Agora, o mais próximo disso é a lotérica, com muito pouco dinheiro no caixa e somente uma funcionária: Maria Vitória Alves da Costa, de 25 anos.

“No começo do mês, tem algum dinheiro no caixa”, conta. “Mas do meio do mês em diante é mais parado. Com o Pix, o dinheiro físico está sumindo.”

Apesar de trabalhar na única lotérica do lugar, Maria Vitória se formou em fotografia. Ela não exerce a profissão por falta de público e agora pensa em fazer pedagogia para se empregar como professora e ganhar o mundo.

Os professores, aliás, são parte considerável da folha de pagamento dos 140 servidores municipais — consomem quase 33% de toda a despesa com salários.

Com poucos alunos, as salas de aula se revezam entre eles. Pela manhã, ensino médio. Na parte da tarde, ensinos básico e fundamental. Começou até mesmo a sobrarem vagas na creche, e uma turma foi cortada por falta de crianças.

Procuram-se políticos

Também faltam políticos. O prefeito boraense está em uma eleição de candidatura única. “Ninguém quis disputar com quem tem a máquina nas mãos”, disse um eleitor que preferiu não se identificar, apesar de dizer que a gestão atual não é ruim.

Flávio Henrique Luz, de 50 anos, dono de uma fazenda no município, resume: “É uma cidade pequena com muito recurso. É fácil de administrar”.

A menor eleição de todas

Com a situação confortável graças ao cofre municipal cheio, o prefeito Luiz (único nome que usa na urna) precisa apenas de um voto para se reeleger ao cargo — o dele mesmo. E não é somente ele que pode ficar otimista com as chances de se manter no cargo. Pelos números das eleições de 2020, para se eleger ou reeleger um vereador não é preciso mais que o apoio da família, caso ela seja numerosa.

A concorrência pelas vagas no Legislativo é tão baixa que, em 2020, Cristiano, o vereador com o menor número de eleitores, teve 29 votos. Na outra ponta, Cecília e Paulinho lideraram a preferência nas urnas, com 70 votos cada. A maioria entra na disputa apenas com o nome — não é necessário o sobrenome.

Dos nove vereadores eleitos em 2020, apenas dois usaram o sobrenome na campanha: Artur Caldas e Wilson Canato. Para o restante, no máximo a identificação da profissão, como fez Paulo Mecânico, João do Posto e João Enfermeiro. Nas eleições deste ano, há até quem aposte no uso de apenas uma sílaba. É o caso de Du, funcionário público do município, que tenta se eleger vereador.

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