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Antonio Risério | Foto: Reprodução/Redes Sociais
Edição 237

Antonio Risério, o socialista odiado pela esquerda

Em seu novo livro, Identitarismo, Risério chama a 'nova esquerda' de 'cracolândia mental' e denuncia seu racismo

Pedro Henrique Alves
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O novo livro de Antonio Risério, Identitarismo, pode expressar quase toda a visão do autor sobre esse problema e a bizarra adesão da esquerda clássica ao progressismo acéfalo.

Tive a honra de editar Risério nesse livro. Havia uma demanda editorial que eu julgava urgente: um livro de um autor nacional referenciado, que situasse o tal “identitarismo” em nosso contexto social próprio. O autor também deveria transitar entre a direita e a esquerda — seja pelo amor, seja pelo ódio comum —, e deveria ser um notável estudioso do tema, é claro.

A mais nova obra de Antonio Risério, Identitarismo | Foto: Divulgação

Identitarismo é, hoje, um dos livros mais completos sobre a temática no país, uma análise que mescla — no tempero certo — história e análise, crítica e exposição de fatos, tudo sob um arcabouço literário de dar inveja a obras europeias e norte-americanas.

Qual é o problema com a dita ‘nova esquerda’ identitária?

Tudo o que rola nessa cracolândia mental é pseudo. Uma pseudoesquerda pseudodemocrática e pseudoprogressista. Enquanto a esquerda sempre foi universalista, o identitarismo é o contrário disso: cultua o tribalismo. É uma espécie de apartheid, uma usina de criação de guetos, de tapumes segregacionistas, lutando para impedir trocas de experiências, vivências, práticas e ideias.

Quais são as diferenças da esquerda tradicional para a esquerda identitária?

Enquanto a esquerda sempre colocou as questões sociais e econômicas no centro de suas atenções, o identitarismo dá as costas a isso: cultua um grupocentrismo fundado basicamente em termos de raça e sexo. Ora, se você é tribalista e fecha os olhos ao social e ao econômico, você pode ser qualquer coisa, mas de esquerda você não é. E, já que esse identitarismo sexista e racialista insiste irrazoavelmente em se proclamar “de esquerda”, somos então obrigados a denunciá-lo como uma pseudoesquerda. Do mesmo modo, eles falam de democracia, mas é da boca para fora. Quem pratica o “cancelamento” e faz de tudo para calar seus críticos, apelando inclusive para ameaças de morte e agressões físicas, pode ser qualquer coisa, menos um democrata. Por fim, tiram onda de “progressistas”, mas cultuam a paralisia, apontam para o passado, aprisionam as pessoas em função da cor da pele e da organização genital do seu corpo.

O que o senhor pensa de intelectuais identitários?

O identitarismo, além de tudo isso, é o reino da ignorância e do estelionato mental. Falsifica a história da aventura humana sobre a superfície terrestre e ataca violentamente as democracias ocidentais, enquanto aplaude e apoia ditaduras e obscurantismos religiosos e culturais nos mundos árabe, negroafricano e asiático. E ainda: o identitarismo é racista. Posa de antirracista, mas cultua o racismo antibranco e antimestiço. Quem aplaude o racismo contra brancos pode ser qualquer coisa, menos antirracista.

No livro Identitarismo, o senhor argumenta que parte da esquerda mundial trocou as pautas sociais por teses acadêmicas de identidade. Por que a esquerda brasileira acatou tão facilmente tal mudança?

A esquerda mundial já vinha vivendo forte crise interna desde o fim da década de 1960, em consequência do movimento da contracultura, irradiando-se a partir dos Estados Unidos, e do “maio de 1968”, na França e em outros países europeus, como a Alemanha. Mas a porrada central e decisiva veio depois, com as revoluções pacíficas do Leste Europeu, a queda do Muro de Berlim e o colapso e desintegração do império soviético. Marx acreditava ter provado cientificamente, com o seu “materialismo histórico”, que era inevitável que os países capitalistas, em seu avanço tecnológico, se convertessem em países socialistas. Mas o que realmente ocorreu, ao apagar das luzes de 1980, no Leste Europeu, foi o contrário: países socialistas se converteram ao capitalismo e à democracia.

A esquerda mundial já vinha vivendo forte crise interna desde o fim da década de 1960 | Foto: Shutterstock

Nesse momento, as teses identitárias ganharam espaço?

Foi aí que o multicultural-identitarismo, gerado pela esquerda acadêmica norte-americana, apareceu como uma espécie de tábua de salvação, à qual a esquerda, em seu desespero e desorientação, se agarrou. E, para isso, trocou as classes sociais pelos movimentos de “oprimidos”, definidos principalmente em termos de raça e sexo. No caso brasileiro, temos ainda a nossa especificidade. Além do que foi dito, devemos lembrar que o tal do sistema universitário brasileiro é essencialmente colonizado e vive na pindaíba. Entraram em cena, vitoriosamente, os “copistas”, como Euclides da Cunha os chamava. Um Silvio Almeida plagiário, copiando a “tese” norte-americana do “racismo estrutural”, por exemplo.

Como o senhor vê o jornalismo atual?

Com mais desprezo ainda. Essa gente não sabe sequer escrever, não passa sem o seu erro de português de cada dia, como vemos no UOL, na Folha de S.Paulo, nos noticiários da CNN e da GloboNews. Morro de rir com os sucessivos erros de português daquelas legendas dos noticiários televisuais. Mas também me irrito com os absurdos, com os equívocos grotescos que esses jornalistas emitem, especialmente quando falam de coisas brasileiras. É uma legião de semiletrados igualmente boçais. Decoraram umas duas ou três bobagens sobre o Brasil, que ouviram na faculdade, e ficam repetindo solenemente essas suas asneiras favoritas.

No livro, o senhor focaliza seu olhar crítico no movimento negro.

Claro. A coisa, para os movimentos identitaristas, e para os movimentos negros, em especial, é muito simples. Quando os fatos confirmam a teoria, o que é muito raro, louvam-se os fatos. Quando os fatos desmentem a teoria, que é o que acontece em mais de 90% dos casos, descartam-se os fatos. Essa gente não tem o menor pudor em falsificar a realidade, manipulando informações, adulterando números. Porque, aqui, o que interessa não é a história em si, mas a história como ferramenta de justificação de atos injustificáveis e instrumento de intimidação ideológica. O passado nacional tem de ser descrito como a coisa mais execrável do mundo, a fim de assim dar sustentação a pedidos de “reparação”.

O senhor acredita que o identitarismo, no afã de ‘progredir’ ideologicamente, está colaborando com a direita?

Diversos observadores já assinalaram esse fato. O analista social Mark Lilla escreveu textos sobre o assunto. Deu várias entrevistas dizendo que o identitarismo tinha contribuído decisivamente para a derrota da democrata Hillary Clinton e a vitória do republicano Donald Trump. As pessoas entenderam isso. Veja, hoje, o caso de Kamala Harris. Ela sempre foi identitarista. Mas agora, enquanto candidata a presidente dos Estados Unidos, ela deu uma tremenda guinada no seu discurso, desidentificando-se publicamente do identitarismo. Porque ela sabe que identitarismo não ganha eleição. Aqui, no Brasil, Lula sabe muito bem disso. Ele posa de identitarista e faz discursos identitaristas para firmar uma imagem positiva, avançada, no exterior. Aqui dentro, o lance é outro: ele só tira onda de identitarista em ocasiões festivas, em feriados e comemorações.

Por que o mercado no Ocidente parece ter se dobrado tão facilmente a essa ideologia?

O mercado não se dobrou a nada. A burguesia — o capitalismo financeiro, em especial — sequestrou um discurso que seria originalmente subversivo e o submeteu aos seus propósitos. É o que vemos nas democracias ricas do Atlântico Norte e também aqui à nossa volta, com a performance do Itaú-Unibanco, da família Moreira Salles, da Natura, dos donos das grandes empresas midiáticas. E eles contratam marqueteiros e agências para fazer a maquiagem dessa postura, posando de burguesia salvacionista, preocupada com os destinos do planeta e dos “oprimidos”.

Agora os identitários passaram a ‘cancelar’ até autores consagrados. Como o senhor vê essa questão?

De certa forma, isso já está acontecendo. Não só pelo “cancelamento” de grandes pensadores, como pela interdição de campos da pesquisa científica. Isso é bem evidente nos ramos da pesquisa biológica, por exemplo. Diversos setores da biologia estão empacados, interditados, nos Estados Unidos, desde que o governo deixou de financiar pesquisas que ofendam a sensibilidade neurótica do identitarismo. Revistas especializadas passaram a se recusar a veicular textos científicos sobre os novos tabus recém-demarcados. Hoje, a biologia norte-americana está simplesmente proibida de sustentar a verdade básica de que o sexo é binário — nos humanos, nas plantas, em todos os animais. É um escândalo. Pior do que o acontecido nos tempos de Galileu Galilei.

Há também, na direita contemporânea, algo que podemos nomear como ‘identitarismo’?

Originalmente, o identitarismo é um discurso da direita. Sua expressão mais poderosa aconteceu justamente com a ascensão do nazismo na Alemanha. A diferença essencial é que o identitarismo de esquerda é grupocêntrico. Concentra-se neste ou naquele grupo de “oprimidos”. Diversamente, o identitarismo de direita não se volta para minorias. Fala de identidade em termos coletivos, maiores. Como em identidade nacional, por exemplo — tema que jamais terá a atenção dos identitarismos esquerdistas. Trump, com o movimento MAGA, e Bolsonaro, aqui no Brasil, são exemplos do identitarismo de direita. Mas são, ambos, muito toscos.

O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro participa de um protesto contra o Supremo Tribunal Federal, no Dia da Independência, na Avenida Paulista (7/9/2024) | Foto: Reuters/Carla Carniel

A seu ver, a união de uma direita democrática com uma esquerda também democrática é altamente improvável. Por que pensa assim?

Isso já aconteceu entre nós e mesmo bem recentemente, em termos históricos. O processo de democratização do país, favorecido pela política de distensão gradual levada à prática pelos generais Geisel e Golbery, foi tocado por uma aliança entre direita democrática, centro e esquerda democrática. Ali estavam políticos como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Fernando Henrique, Mário Covas e Leonel Brizola. Quer dizer, o espectro se estendia da direita democrática à esquerda também democrática, com quase todo mundo abrigado no antigo MDB, e não nessa porcaria atual. Hoje, acho cada vez mais difícil isso acontecer. De cara, a polarização atrapalha. Mas não é só.

Quais seriam os obstáculos para essa união?

Um tremendo obstáculo está no identitarismo. Se a esquerda identitarista continuar a dar as cartas e a crescer, essa aliança estará inviabilizada. Antes de qualquer coisa, pelo simples fato de que a direita democrática é nacionalista — e a esquerda identitarista pretende nada menos do que desmantelar a nação. Não há como pensar em aliança entre um segmento nacionalista e um segmento antinacional. E isso para não falar na radicalização identitarista da chamada “pauta de costumes”, com essas coisas de transgenerismo, aborto, casamento gay, liberação do consumo de drogas etc., que afastam não só o eleitorado conservador, mas também setores políticos democráticos da direita, como a gente vê no âmbito católico.

Qual é o grau de relacionamento e de troca de ideias entre o senhor, os conservadores e os liberais brasileiros?

Ao longo de minha vida — e vou, no próximo novembro, completar 71 anos de luta, prazer, sofrimentos e alegrias —, aprendi muito tanto com a direita quanto com a esquerda, tanto com comunistas quanto com conservadores. Outro dia, num bar daqui da Ilha de Itaparica, onde moro, dividi uma mesa onde estavam o poeta e artista plástico Almandrade, eleitor de Bolsonaro, e o jornalista Tibério Canuto, militante clandestino de esquerda, que passou quatro anos na prisão, sob a ditadura militar. E foi uma conversa rica e agradável. Penso que talvez o segredo dessa convivência esteja não só no cultivo da tolerância civilizada, mas também no fato de que, embora a gente possa discutir qualquer assunto, ninguém pretende converter ninguém. Ninguém precisa “ter razão”. O proselitismo é um fantasma que não frequenta minhas rodas de conversa e amizade.

Leia também “A democracia brasileira vive uma crise de legitimidade”

2 comentários
  1. tania angarani
    tania angarani

    Risério é o intectual brasileiro mais lúcido e honesto. É gratificante tê-lo entre nós.

  2. Maq C0
    Maq C0

    Parabéns pela matéria. Eu pensava que ele era completamente de esquerda. Lí livro dele há uns 30 anos, o “Carnaval Ijexá”. Se não fosse essa matéria talvez nunca mais iria ler nenhuma obra dele mas me interessei por essa nova.

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