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Ministro Luís Roberto Barroso | Foto: Andressa Anholete/SCO/STF
Edição 237

Parlamentar de toga

Presidente do Supremo volta a falar demais e expõe a arrogância da Corte, que deixou suas atribuições de lado para fazer política e apagar a Lava Jato

Silvio Navarro
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Quando se imaginava ter ouvido todo tipo de arroubo verbal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso afirmou, nesta semana, que a nova missão da Corte é “recivilizar” o Brasil. Esqueça a guarda intransigente da Constituição ou o papel do STF como última instância recursal do Judiciário. A frase de Barroso foi exatamente esta, sem rodeios, em entrevista ao jornal Valor Econômico: “O legado institucional que eu queria deixar é a total recivilização do país”.

Barroso cruzou a metade do seu percurso na presidência do STF. Ele segue na cadeira até setembro do ano que vem, quando será substituído por Edson Fachin. A menos que ele dê um cavalo de pau completo nas suas convicções, o que não é raro na história recente da Corte, sua gestão deixará marcas completamente diferentes. O Supremo vive hoje a era mais escura, movido pelo autoritarismo e pela censura, acumula decisões inconstitucionais, passeios injustificáveis de ministros ao exterior e uma frente ampla de anistia a corruptos.

Soma-se a essa lista incômoda o ativismo dos ministros, que não escondem mais o desejo de fazer política no tribunal. Nessa seara, Barroso parece despontar como uma espécie de parlamentar de toga, num falatório desenfreado sobre temas dos quais deveria manter distância — afinal, ele acaba antecipando votos sobre determinado assunto.

Luís Roberto Barroso afirmou, nesta semana, que a nova missão da Corte é “recivilizar” o Brasil | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

No auge desse ativismo, foi Barroso quem subiu no palanque da União Nacional dos Estudantes (UNE), braço do PCdoB, em julho do ano passado, para uma fala apoteótica. Com o microfone em punho, afrouxou a gravata e discursou: “Nós derrotamos o ‘bolsonarismo'”. Ele foi o primeiro ministro do STF a participar de um evento político-partidário da entidade desde os anos 1960. Até hoje, não explicou o uso do pronome pessoal naquele dia.

A oposição no Senado apresentou um pedido de impeachment, fundamentado na Lei nº 1.079/50, que proíbe sua presença nesse tipo de assembleia. O pedido, porém, teve o mesmo destino de todos os outros e ficou esquecido na gaveta do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente da Casa. Tampouco foi a única vez que o ministro extrapolou limites da moderação que se espera de um juiz da Suprema Corte: logo depois das eleições, ele reagiu à crítica de um brasileiro numa calçada de Nova York com o famoso “Perdeu, mané! Não amola”.

O acervo, aliás, é vasto. Foram deles expressões como “cabe ao STF empurrar a história”, “a serviço da causa da humanidade”, ditas durante uma aula magna, em 2017. Ou ainda “nós somos o bem”, durante evento com jornalistas no exterior, ou quando discorreu sobre o “papel iluminista” do Supremo, num artigo, em 2018.

As declarações recentes foram tema de editoriais da imprensa tradicional nesta semana. O jornal O Estado de S. Paulo disse que as falas expõem “o grau de alheamento da realidade e de afetação intelectual, quando não autoritária, que tem comprometido a legitimidade” das decisões do STF. “Com notável arrogância, Barroso desdenhou da necessidade de um código de conduta para ele e seus pares”, diz o texto.

Notícia publicada no Estadão (1º/10/2024) | Foto: Reprodução/Estadão
Notícia publicada na Folha de S.Paulo (1º/10/2024) | Foto: Reprodução/Folha de S.Paulo

Tanto o Estadão quanto a Folha de S.Paulo, ambos em editorial, citaram as decisões semanais do colega Dias Toffoli sobre a Lava Jato, que têm repercutido no exterior. Isso porque Barroso era conhecido como um dos ministros “lava-jatistas” da Corte, mas até agora não convocou o plenário para analisar as decisões individuais de Toffoli, responsável por livrar no atacado todos os corruptos do Petrolão.

A anulação de penas mais recente foi a do empresário Leo Pinheiro, da OAS, que delatou o presidente Lula da Silva. Ele foi condenado a 30 anos de prisão por corrupção. A canetada foi similar ao perdão de dívidas milionárias de todas as empresas que confessaram a participação no propinoduto, assim como seus antigos donos. O caso mais emblemático é o de Marcelo Odebrecht, que tratava Toffoli como “o amigo do amigo de meu pai”, para muitos o embrião do Inquérito nº 4.781, instalado de ofício pelo próprio Toffoli em 2019, e até hoje conduzido por Alexandre de Moraes.

“Espera-se em especial do presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, que o plenário do Supremo se reúna sem mais tardar para decidir se abona o festival da impunidade patrocinado por um membro solitário do colegiado”, diz a Folha. “Na hipótese benigna, a maioria, embora seja contra as atitudes de Toffoli, peca por omissão. Na pior, deixa o colega atuar solto porque, no fundo, concorda com ele.”

Numa democracia constitucional bem-arranjada e harmoniosa, a gestão de um ministro da Suprema Corte seria analisada pela celeridade processual, pelo fim de burocracias e pela redução de gastos excessivos. No Brasil, não. Barroso entende que seu legado é conduzir o tribunal com mão política e não incomodar os pares de toga — unidos num corporativismo inédito. Por exemplo, por que Barroso nunca questionou a legitimidade das decisões monocráticas de Dias Toffoli para apagar a Lava Jato? Por que permite que Alexandre de Moraes exclua o direito à ampla defesa — presencialmente — de advogados dos réus do tumulto do 8 de janeiro? E os gastos sigilosos dos ministros em viagens ao exterior, como a segurança prestada a Dias Toffoli para assistir à final da Champions League, num camarote em Londres?

Questionado sobre a transparência e a criação de um código de conduta para os ministros, Barroso afirma que as transmissões da TV Justiça cumprem o papel fiscalizador. “Qualquer pessoa pode ver o que a gente está fazendo, falando e julgando. Nos Estados Unidos, os julgamentos não passam na televisão”, disse. Então, qual é o motivo para não convocar o plenário da Corte sobre temas espinhosos, como a borracha de Toffoli nas condenações da Lava Jato? Mais: quando o assunto é TV, vale lembrar que os ministros são frequentadores de estúdios, mas sempre em entrevistas amistosas.

O empresário Alberto Leite e o ministro Dias Toffoli, na final da Champions League (1º/6/2024) | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Sobre a Lava Jato, uma resposta possível ouvida em Brasília é que Barroso abandonou o barco porque comprou a ideia da guerra contra o “bolsonarismo”. Foi levado pela corrente majoritária construída pelo decano, Gilmar Mendes, segundo a qual a operação anticorrupção catapultou a eleição de Jair Bolsonaro e a ascensão da “extrema direita” no país. A partir daí, Mendes formou uma frente, que tem como pilar os inquéritos de Alexandre de Moraes para perseguir a direita. O grupo tem o apoio de Cármen Lúcia e Edson Fachin, além dos recém-chegados Flávio Dino e Cristiano Zanin. Dias Toffoli herdou as tarefas sobre o Petrolão depois da aposentadoria de Ricardo Lewandowski.

Outro ponto em que os entrevistadores não questionam os ministros é como a Lava Jato foi desconstruída na Corte. O Supremo aceitou como prova um combo de mensagens trocadas pelo ex-juiz Sergio Moro e pelos procuradores de Curitiba — eles dizem que os diálogos são falsos. Essas conversas foram obtidas por meio de crime: um hacker admitiu tê-las roubado. Foi aí que Toffoli permitiu que os condenados usassem esse material para desmontar as sentenças e rasgar multas. Com exceção da recente volta para a cadeia do ex-diretor da Petrobras Renato Duque, apontado como operador do PT no esquema, ninguém mais está preso — a maioria voltou para a política ou retomou suas empresas.

Num dado momento da entrevista ao Valor Econômico, ao tratar de eventos particulares de ministros, Luís Roberto Barroso esbarrou na realidade: “Hoje, a gente não pode mais sair na rua” — na sua visão, porque as ruas estão repletas de bárbaros que precisam ser civilizados. Talvez o “iluminismo” dos ministros os impeça de enxergar que o problema está da porta para dentro.

Leia também “O Brasil no fundo do poço”

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