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O Cerrado brasileiro é uma savana rica em biodiversidade, com árvores retorcidas e vegetação resistente, cobrindo grande parte do centro do Brasil | Foto: Shutterstock
Edição 238

A salvação na lavoura

Com a modernização agrícola, o crescimento econômico chegará a milhares de produtores rurais pobres no Cerrado no Maranhão, Tocantins, Piauí e Minas Gerais

Evaristo de Miranda
-

Something is rotten in the state of Denmark.”
[“Algo vai mal no reino da Dinamarca”]
(Hamlet, ato I, cena IV)

A produção de alimentos e fibras pelo agronegócio no Cerrado é uma das mais sustentáveis do planeta. E atrai o interesse de países europeus e africanos. No dia 4 de outubro, Mary Elizabeth Donaldson, consorte da Dinamarca (monarquia com mais de mil anos de história) e primeira australiana a tornar-se rainha na Europa, visitou a Embrapa Cerrados para conhecer as bases desse sucesso do agro. Já por aqui, esse sucesso ambiental e tecnológico é objeto de ataques constantes de ONGs “verdes”, autoridades ambientais e boa parte da mídia. Hvorfor?

O chefe-geral da Embrapa Cerrados, Sebastião Pedro, e sua equipe apresentaram à rainha da Dinamarca as tecnologias desenvolvidas, sua contribuição ao estabelecimento e ao futuro da agricultura sustentável no Cerrado. Países africanos, com savanas semelhantes ao Cerrado, pedem e sonham com a transferência de tecnologias brasileiras para sua agricultura.

O Brasil é o único país a considerar a dimensão ambiental, pelo recorte geográfico dos biomas, no planejamento, na gestão e na legislação territorial. O país foi dividido em seis biomas: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa. O termo foi criado pelo botânico norte-americano Frederic Edward Clements, em 1916. Pergunte a um norte-americano: “Quais são os biomas dos EUA?”. “No idea.” Pergunte a um europeu se a Comissão Econômica em Bruxelas considera biomas em suas políticas. As chances são de 120% de eles nunca terem ouvido falar nisso. Como parte das exigências do Código Florestal, muitas aplicações dos biomas são como as saborosas jabuticabas. Só existem no Brasil.

Biomas no Brasil, mapa de seis ecossistemas com vegetação natural: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal | Mapa: Embrapa

O Cerrado é o segundo bioma em extensão territorial. Com 203.644.800 hectares ou mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, ele está presente em 12 Estados e no Distrito Federal. É quase um quarto do Brasil (23,9%). Mato Grosso, Minas Gerais e Goiás reúnem mais de 50% do Cerrado. Tocantins, Goiás e Distrito Federal têm mais de 90% de suas áreas no Cerrado. Ele abriga afluentes de oito bacias hidrográficas brasileiras. E Brasília, a capital federal, reina no centro do bioma.

Ao atacarem o agronegócio no Cerrado, a mídia, ONGs ou tudólogos (especialistas em covid, Ucrânia, Amazônia, desmatamento, mercado de carbono, incêndios, reforma tributária etc.) sugerem medidas repressivas e ações simplistas para barrar a agricultura. Eles o imaginam do tamanho de uma chácara de fim de semana. O Cerrado é complexo, diverso e dinâmico. Não admite simplismos. Pero que los hay, hay…

Para ter uma ideia da sua complexidade, as chuvas no Cerrado variam de cerca de 550 milímetros no Vale do Rio São Francisco na Bahia até mais de 2,5 mil milímetros no oeste de Mato Grosso. Temperaturas médias anuais variam de 16 graus no Paraná e nas montanhas de Minas Gerais a até quase 28 graus no Maranhão. A altimetria vai de regiões próximas ao nível do mar no Tocantins e no Maranhão até outras a mais de 1,6 mil metros em Minas Gerais. A mesma diversidade é encontrada em dezenas de classes de solos. Da combinação desses fatores ambientais resultam dezenas de tipos de vegetação ou fitofisionomias: desde florestas pluviais densas até campos limpos e rupestres, passando por savanas parques, arbustivas etc. São paisagens em transformação há milênios pelo uso do fogo por caçadores-coletores, pela introdução da pecuária no século 17, até a dinâmica agrícola viabilizada pelas tecnologias da Embrapa no século 20.

O Cerrado está preservado. O mapeamento do uso e da ocupação das terras no Cerrado realizado pelo Projeto TerraClass, por instituições como Inpe, Embrapa e Universidade Federal de Goiás, entre outras, aponta para um bioma preservado: 52,2% de vegetação nativa em 2022; 30% com pastagens; 3,9% com florestas plantadas e cultivos perenes; e 12% com cultivos anuais (soja, milho, algodão, arroz, feijão, hortaliças…).

safra soja Brasil
O mapeamento do Cerrado realizado pelo Projeto TerraClass indica: 52,2% do bioma estava com vegetação nativa em 2022, enquanto 30% era usado para pastagens e 12% para cultivos anuais | Foto: Cleverson Beje/AEN

O Cerrado é protegido e atribuído. Ali, decretadas e implantadas pelo poder público, existem 366 unidades de conservação integral (parques nacionais, estações ecológicas etc.), num total de 16.795.934 hectares de terras públicas. E, também, 106 terras indígenas demarcadas, num total de 9.550.555 hectares. Descontadas as sobreposições, são 26.240.203 hectares de terras protegidas. Além disso, o Estado desapropriou e/ou atribuiu terras para 1.679 assentamentos de reforma agrária, num total de 6.385.750 hectares, além de mais 646.155 hectares para 71 comunidades quilombolas. Por fim, duas áreas militares, equivalentes a 164.980 hectares, completam o quadro de terras atribuídas.

Mapa da vegetação nativa preservado no cerrado | Mapa: Embrapa

O Cerrado queima. De 1º de janeiro a 6 de outubro foram detectadas 70.798 queimadas e incêndios no bioma, um recorde histórico e um crescimento de 82% em relação ao ano passado (38.710), convergente com o aumento do fogo em todo o país em 2024 (80%). A concentração do fogo em terras públicas foi enorme (parques, terras indígenas, assentamentos agrários…). Como em outras partes do país, há um caos administrativo. A demonstração da incapacidade do Estado de gerir adequadamente mais de 33 milhões de hectares de terras públicas no Cerrado é evidente. Como cuidar de 2.224 áreas em cinco categorias tão distintas (meio ambiente, índios, reforma agrária…) e combater o fogo? Essa responsabilidade envolve pelo menos seis ministérios no atual governo, com propostas diferentes e, em parte, com objetivos divergentes no Cerrado.

A ausência de coordenação e arbitragem interministerial é mais grave ainda na criação de novas áreas federalizadas: sobreposições, amputação de territórios municipais e estaduais, desconhecimento da realidade local etc. Em primeiro lugar, o governo deveria demonstrar alguma capacidade de cuidar das terras públicas, e aplicar a si mesmo multas, acusações e sanções tão generosamente distribuídas no mundo rural.

Pesquisa da Embrapa, baseada em dados oficiais, públicos e abertos, permitiu avançar no conhecimento do mundo rural e de sua contribuição à preservação ambiental do Cerrado. A Embrapa trabalhou dados de 807.808 estabelecimentos agropecuários do Censo Agropecuário do IBGE e de 1.240.688 imóveis rurais registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Todos no bioma Cerrado.

A análise estatística e geocodificada das coordenadas geográficas de cada estabelecimento agropecuário do IBGE e dos polígonos dos imóveis rurais detectou 204.394 estabelecimentos não registrados no CAR. Disso resultou um conjunto identificado de 1.445.082 unidades rurais no Cerrado. A maioria são propriedades, com matrículas registradas no Incra. Há, também, outras unidades rurais em diferentes condições legais (posseiros, arrendatários, assentados…). No total, elas ocupam 184.176.233 hectares, ou 91% do bioma. Nem toda terra ocupada pode ser utilizada.

O bioma Cerrado ocupa mais de 200 milhões de hectares em 12 Estados, 24% do território brasileiro | Mapa: Embrapa

O Código Florestal obriga destinar à preservação da vegetação nativa áreas de reserva legal e de preservação permanente. Além disso, existe vegetação excedente (acima dos 20% exigidos por lei, por exemplo) em muitas unidades rurais. O uso das terras (lavouras e pastos) alcança de 106 milhões de hectares, 57% das terras ocupadas e 52% do bioma. Na média, o produtor rural destina 43% de seu imóvel à preservação da vegetação nativa no Cerrado, muito acima do exigido pelo Código Florestal.

As unidades rurais dedicam à preservação da vegetação nativa 78 milhões de hectares (38,6% do Cerrado). Agregados os 6,4% das pastagens nativas, chega-se a 45% da vegetação do Cerrado preservada pelo mundo rural. Bem acima da média nacional (33,2%). Com os 7% de áreas protegidas, totalizam-se 52% de vegetação nativa no Cerrado, valor convergente com o obtido por outros métodos no Projeto TerraClass: 52,2%.

Com os preços da terra em cada município, a Embrapa Territorial calculou o valor fundiário imobilizado pelos produtores em áreas dedicadas à vegetação nativa. Há vários cenários no estudo. Em valor fundiário pleno, os produtores imobilizam no Cerrado cerca de R$ 2 trilhões de seu patrimônio em prol do meio ambiente, sem qualquer compensação. Não há uma só categoria profissional no Cerrado (advogados, juízes, jornalistas, médicos, engenheiros…) a dedicar tanto de seus recursos privados à preservação.

No Cerrado, parte dos 12% com cultivos anuais produz de forma intensiva. E muito. Em 8,7% pratica-se mais de um cultivo por ano. Em 2022, o Cerrado produziu 55% da soja brasileira, 50% do milho, 53% do café arábica e 49% da cana-de-açúcar. Dos 1.103 municípios no bioma, 13 garantem 25% da produção de soja, e oito, 25% do milho. Do algodão brasileiro, 86% são produzidos no Cerrado. Três municípios reúnem 25% da produção. Com mais cinco, chega-se a 50%. Ou seja, 0,7% dos municípios do Cerrado concentram metade da produção da fibra. Em 2022, 43 municípios (3,9% do total) garantiram 50% da produção de soja, milho e algodão. O Cerrado reúne 34% do efetivo bovino do país, 25% em 48 municípios. Seus suínos e aves reúnem 20% do plantel nacional: 25% em sete municípios nos suínos e em oito nas aves.

Gado rústico guzerá, criado no Cerrado. O bioma abriga 34% do rebanho bovino e 20% da produção de suínos e aves |
Foto: Wenderson Araujo/Sistema CNA/Senar

Em 794 municípios do Cerrado (72%), a produção agropecuária ainda é extensiva e pouco significativa. O potencial de crescimento do agro é muito grande. O consórcio de interesses antinacionais com movimentos do atraso e do colonialismo impede o desenvolvimento sustentável da agropecuária na Amazônia. Agora volta-se contra o agro no Cerrado, a bola da vez.

Grande parte da expansão recente da agricultura moderna no Cerrado ocorreu em locais já desmatados. Prosseguirá em pastagens e áreas antropizadas com topografia favorável à produção intensiva de alimentos. Tecnologias existem. Empreendedorismo, também. É possível triplicar a produção atual. Com a modernização agrícola, o crescimento econômico chegará a milhares de produtores rurais pobres no Cerrado no Maranhão, Tocantins, Piauí e Minas Gerais. Para alguns brasileiros, “isso seria um crime” [sic]. Something is rotten in the state of Denmark.

Seja qual for o cenário futuro, áreas agrícolas e produtores cumprem e cumprirão o mais relevante papel na preservação do Cerrado: tanto pela extensão já preservada nos imóveis (muito superior à existente em áreas protegidas) como pela conexão ecológica viabilizada por sua ampla repartição espacial nas terras agrícolas entre os blocos isolados de áreas protegidas. E cumprirão seu papel na alimentação saudável e barata dos brasileiros e da humanidade. A salvação do Cerrado está na lavoura.

Leia também “O tabaco é agro”

8 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Doutor Evaristo sempre esclarecedor em seus artigos.
    O problemas das ONGs é que esse povo não consegue diferenciar um pé de laranja de outro de jabuticaba e ficam vomitando um besteirol que acaba virando “notícia”.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Como de praxe, informações de qualidade. Obrigado Evaristo.

  3. Eládio Torret Rocha
    Eládio Torret Rocha

    Eu me considero uma pessoa razoavelmente bem informada. Mas, infelizmente,
    só fiquei sabendo da visita da Rainha da Dinamarca do Brasil, ao ler este
    riquíssimo artigo. Então, pergunto: Professor Evaristo, por que será que a imprensa
    brasileira calou a respeito dessa relevante visita da Rainha ao nosso País, e,
    especialmente, à Embrapa?

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Nada melhor do que o conhecimento para desmontar, desfazer e desmentir os tudólogos.

  5. Jaime Moreira Filho
    Jaime Moreira Filho

    Este artigo está maravilhoso. De uma profundidade de uma aula de pós na Luis de Queiroz ou um seminário da Embrapa tão explicativo, detalhista e abrangedor no assunto que trata. Maravilhoso. Evaristo de Miranda não deixou escapar nada. Nota 1000.

  6. RCB
    RCB

    Espero que a visita da Rainha da Dinamarca tenha efeitos em outro país nórdico que no Brasil doa recursos para ONGs desenvolverem ações contrárias a milhares de produtores rurais brasileiros e suas famílias que labutam no Cerrado com tecnologia, responsabilidade e amor.

  7. José Menezes
    José Menezes

    O verdadeiro e competente pesquisador se destaca nesse artigo. Mestre Evaristo nos dá uma aula em que destaca inéditas informações. A conclusão final é indisputável!
    Parabéns Prof. Evaristo e Revista Oeste.

  8. Luiz Marins
    Luiz Marins

    Este artigo de Evaristo Miranda precisava ser material obrigatório em todas as escolas brasileiras. Sem falar dos cursos técnicos e superiores na área agrícola.
    Parabéns, mais uma vez, à revista Oeste e ao autor. Valeu!

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