Pular para o conteúdo
publicidade
Foto: Revista Oeste/IA
Edição 239

Três injustiças supremas

A absolvição de moradores de rua presos pelo 8 de janeiro escancara o mais desmoralizante abuso judicial protagonizado pelo STF

Cristyan Costa
-

“Moraes absolve preso pelo 8 de janeiro”, anunciou uma emissora, em 11 de outubro. A manchete lacônica publicada duas horas depois da decisão, e reproduzida com algumas variações em pouquíssimos veículos da imprensa estatizada, sonegou ao público a informação de que se trata de um morador de rua chamado Vitor Manoel de Jesus, de 24 anos. Também não foi noticiado que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ao votar, admitiu “não haver provas” da participação do homem na quebradeira na Praça dos Três Poderes, em Brasília, durante o protesto, ainda que sempre tenha chamado todos os envolvidos, desde o primeiro dia, de “golpistas” e “terroristas”. Tampouco se soube que Jesus passou mais de oito meses encarcerado na Papuda. Muito menos se falou que, embora inocente, ele deixou a cadeia preso a uma tornozeleira eletrônica.

O tormento começou quando a polícia prendeu Jesus no interior do Senado, onde ele havia entrado para se refugiar das bombas de efeito moral. Ele saíra do acampamento em frente ao Quartel-General do Exército (QGEx) rumo à Praça dos Três Poderes, porque muita gente estava fazendo isso. O morador de rua frequentava o QG meramente para ter abrigo e comida gratuita, a despeito de qualquer pretensão político-ideológica. Ele chegou ao local depois de desembarcar do ônibus que havia partido de São Paulo com manifestantes que estavam acampados em frente ao Comando da 2ª Região Militar do Exército Brasileiro, no bairro do Ibirapuera, onde também recebia alimento. Ainda na capital paulista, Jesus recebeu um convite para o ato contra o governo em Brasília. Como tinha vontade de conhecer a cidade e tentar uma vida diferente no Distrito Federal, aproveitou a carona.

Enjaulado após o ato, ficou um bom tempo sem contato com a família, até ser representado pela Defensoria Pública da União (DPU). Em várias petições, a DPU chamou a atenção de Moraes para a vulnerabilidade social do jovem. “Trata-se de uma pessoa em situação de rua, proveniente de orfanato, que pernoitava no Centro Temporário de Acolhida da Vila Mariana (SP) e, durante o dia, dirigia-se ao QG do Ibirapuera para se alimentar”, observou a DPU, em uma das peças. “Frequentava também a Igreja Comunidade Cristã nos Jardins, onde recebia um amparo social dos fiéis.” Só em agosto de 2023 é que Moraes mandou soltar Jesus, em virtude de um parecer favorável da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Reprodução/STF
Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Reprodução/STF

Depois de conseguir falar com parentes, Jesus mudou-se para Itapecerica da Serra (SP), onde hoje vive com a mãe afetiva. A mulher o orientou a sair das ruas e arrumou para ele um trabalho informal à noite, em uma feira na cidade. Dessa forma, ele passou a ter um endereço e um local para recarregar o equipamento. No decorrer da temporada no purgatório dos inocentes, Moraes endureceu as limitações e obrigou Jesus a voltar para casa, às 19 horas, sob ameaça de retornar para a cadeia. Por isso, o homem precisou largar seu único ganha-pão. Sem dinheiro, não tinha como ir ao fórum, semanalmente, mostrar à Justiça que estava cumprindo as determinações de Moraes, pois faltavam recursos para pagar a condução até o Poder Judiciário local, visto que mora longe do centro da cidade. Com a absolvição chancelada pelos demais ministros do STF, Jesus aguarda, agora, o prazo ainda indefinido para remover a tornozeleira eletrônica.

Alexandre de Moraes admite não haver provas

Como a imprensa não dá tanta visibilidade ao 8 de janeiro, poucos sabem que Jesus é o terceiro morador de rua absolvido pelo STF. Antes dele, a Corte encerrou a ação penal de Wagner de Oliveira, de 50 anos, no início de setembro, também por falta de provas. Oliveira frequentava assiduamente um abrigo em Brasília meses antes dos apoiadores de Bolsonaro cogitarem erguer a primeira barraca do acampamento em frente ao QG. O morador de rua passou a ir ao quartel quando soube da doação de comida. Por isso, esteve durante um mês entre os manifestantes, onde dormiu por algumas noites. Oliveira tinha a esperança de viajar para outros Estados, nos ônibus fretados, tão logo as tendas fossem desfeitas. O sonho virou pesadelo quando resolveu descer até a Praça dos Três Poderes. Ao chegar, testemunhou cenas de vandalismo. Com as bombas de efeito moral disparadas de helicópteros, correu para dentro do Palácio do Planalto com centenas de pessoas, sem saber exatamente onde estava, e ficou por lá.

Imagem da manifestação do 8 de janeiro, em Brasília | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Palácio do Planalto, durante os atos do dia 8 de janeiro de 2023 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Oliveira passou pouco mais de uma semana na Papuda. Desde que saiu, ainda em janeiro, teve dificuldades para recarregar a tornozeleira, pois, até então, não tinha endereço fixo. Nos primeiros dias, usou uma tomada do lado de fora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Posteriormente, contou com a ajuda de estabelecimentos que se solidarizavam com a situação. Por ser uma pessoa simples e sem instrução, Oliveira tem alguns registros de descumprimento de cautelares, seja pela tornozeleira desligada, seja por ter saído dos limites estabelecidos por Moraes. Nesse período de meia liberdade, Oliveira começou a fazer bicos catando latinhas e passeando com cachorros. Em outubro de 2023, conseguiu trabalho na área de limpeza de um supermercado da capital federal, mas o ordenado não é suficiente.

Com a nova renda, alugou um pequeno imóvel onde mora sozinho. Em virtude da despreocupação com tecnologia, usa pouco o celular. Sendo assim, a DPU não sabe se a tornozeleira já foi retirada. “Wagner é bem humilde”, disse a defensora pública Geovana Scatolino, que cuidou do caso. “Portador de nanismo, é também um pouco afeminado, o que faz dele alvo de muito preconceito. Na audiência, pude comprovar que é um homem pequeno, com tom de voz infantil. Sinceramente, não acredito que ele tinha total consciência do real motivo daquelas manifestações.”

Tormento prolongado

A simplicidade e falta de conhecimento também levaram Geraldo Silva à Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro. Ele foi o primeiro absolvido por Moraes, em fevereiro, depois de ficar 11 meses no presídio. Seu envolvimento com o protesto começou depois de ele ter jantado mais cedo no Centro Pop, de acolhimento para desabrigados, perto da Esplanada dos Ministérios. O morador de rua de 27 anos ficou curioso ao ver a procissão de gente de verde e amarelo que caminhava na direção dos ministérios. Quando chegou perto do Congresso, viu bombas de efeito moral explodindo e pessoas correndo. Decidiu voltar, mas acabou barrado por manifestantes raivosos que o confundiram com um possível “infiltrado petista” no protesto. Os policiais militares interromperam os socos e pontapés, mas não pouparam Silva de ser levado para a cadeia com os outros.

A DPU, que cuidou de Silva em um primeiro momento, comunicou ao STF sobre a condição de mendigo do homem e o contexto no qual foi preso. A advogada Taniéli Telles, que assumiu a defesa posteriormente, reiterou as justificativas ignoradas por quase um ano. Apenas em novembro de 2023, a PGR reconheceu “o erro” após inúmeros pedidos da defesa e solicitou a liberdade de Silva. Moraes atendeu à solicitação, todavia, acorrentou o mendigo a uma tornozeleira. “Fomos surpreendidos”, disse Telles. “Geraldo não tem endereço fixo, onde poderia carregar a tornozeleira, e vive na rua. Portanto, ele anda para cima e para baixo. Não à toa, quase voltou a ser preso, por ter desrespeitado a decisão, pela falta de conhecimento.”

Geraldo Silva, morador de rua preso de forma injusta durante os atos de 8 de janeiro | Foto: Reprodução

Dessa forma, a defesa conseguiu a ajuda da mãe de um manifestante, que ofereceu a Silva uma kitnet. Assim, o mendigo teria onde carregar o equipamento, além de um local para dormir. A Polícia Federal (PF) determinou o retorno ao endereço às 22 horas, diariamente, com possibilidade de saída a partir das 5 horas. A defesa obteve doações de móveis, roupas e um celular para Silva. Ele permaneceu por pouco tempo no local. Rapidamente, o homem vendeu a maioria dos móveis em janeiro e voltou a perambular pela capital federal, carregando um colchão, até que, em maio, obteve a ajuda de parentes e voltou para Fortaleza, mas quis ficar na rua. Silva tirou a tornozeleira eletrônica em março, quase um mês depois da absolvição.

Um familiar de Silva contou que ele tem problemas psicológicos, o que justifica falas desconexas com a realidade, e não descartou a possibilidade de envolvimento do homem com drogas. Não é raro ouvi-lo dizer que é “monitorado” por satélites ou drones. Por esse histórico problemático, a ex-mulher com quem teve um filho, agora com 7 anos, quer distância dele. Silva já foi serralheiro em Pernambuco, onde nasceu, mas deixou a função ao se mudar para o Distrito Federal, em 2022. Até hoje, o morador de rua também não sabe por que foi preso. “A cadeia mexeu bastante com a cabeça dele”, constatou a advogada. “O que era ruim ficou pior, e outros devem estar assim.”

Segundo os dados mais recentes, divulgados em setembro deste ano, cerca de 200 pessoas estão atrás das grades, condenadas a até 17 anos de cadeia por envolvimento no 8 de janeiro. Outras 400 cederam a um “acordo de não persecução penal” abusivo para tentar se livrar do STF. E centenas continuam presas a uma tornozeleira eletrônica. Assim como Vitor, Wagner e Geraldo, a grande maioria delas não cometeu crime algum.

Leia também “Liberdade algemada”

0 comentários
Nenhum comentário para este artigo, seja o primeiro.
Anterior:
Nas asas da corrupção
Próximo:
O declínio da agenda woke
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.