Crianças com os olhos vendados, levadas de carro e deixadas na floresta à noite. Nos Estados Unidos, chamamos isso de crime. Na Holanda? É chamado de dropping e considerado uma tradição adorada da infância.
“É um rito de passagem”, afirma Mark Pols, um investidor que vive no Vale do Silício mas que cresceu na Holanda. Quando era criança, diz Pols, os droppings (pronuncia-se “drope-ings”) sempre fizeram parte do escotismo — e ainda fazem. “Havia vários graus de desafio: o horário à noite, a distância onde você seria deixado, a pequena quantidade de pessoas com quem você seria deixado etc.”
O primeiro dropping de Pols foi aos 11 anos de idade, algo que parece comum. Ele fazia parte de um grupo de cinco ou seis crianças, todas vendadas e deixadas bem depois do pôr do sol, a uma determinada distância do acampamento de escoteiros. “No nosso caso, tínhamos um pequeno mapa rudimentar, e o objetivo era encontrar uma estrada e voltar”, conta Pols. “Foi muito emocionante, porque estava escuro e nos deram uma lanterna. Talvez tivéssemos que andar um quilômetro ou algo assim, mas pareceu muito longe e assustador.”
Em alguns acampamentos, na época e hoje em dia, os funcionários acompanham as crianças, mas ficam para trás para que os campistas precisem encontrar o caminho por conta própria. “Não ajudamos as crianças a achar a direção certa”, diz Birgit Hartkamp, representante de vendas em Utrecht, que cresceu indo a um acampamento de astronomia que promovia droppings e depois se tornou conselheira lá. “Em um dado momento, fiz as crianças andarem em círculo por cinco horas, e então elas perceberam que estavam a 200 metros de onde deveriam estar. Eu sabia disso o tempo todo.”
Parece que não importa qual seja o tema do acampamento — música, ciências, hipismo — um dropping costuma fazer parte da experiência na Holanda. As escolas também fazem droppings quando levam os alunos para acampar. Atualmente, alguns programas permitem que uma ou todas as crianças tenham um celular. Mas não importa como seja feito, o dropping é o ponto alto da viagem e ocorre no decorrer das atividades.
Hartkamp se lembra de uma ocasião em que um campista “não estava se entrosando e queria voltar para casa antes da hora”. Era sua primeira vez. Eu me sentei com ele e disse: “Por favor, não vá para casa. Se você realmente quiser, não vou impedir você. Mas, por favor, espere até domingo, porque sábado à noite vamos fazer o dropping”.
Ele decidiu ficar, e a atividade mudou tudo. “Naquela noite, ele fez muitos amigos”, diz Hartkamp.
O que acontece nessa estranha experiência que tem o poder de mudar uma criança tão rápido? Para mim, ela se parece muito com a terapia de exposição usada para tratar a ansiedade.
Nesse tipo de terapia, uma pessoa que tem medo de algo — por exemplo, gatos — é exposta primeiro a um gato no fim do corredor. Na sessão seguinte, ela pode ser colocada no mesmo cômodo que um gato. Por fim, ela acaricia o gato ou o pega no colo. A cada exposição, a falsa crença de que os gatos são uma ameaça vai se dissipando. O mesmo acontece com a crença de que interagir com um gato é algo muito difícil de suportar.
Substituir esse medo é confiança. Um novo estudo com adultos que tinham medo de duas coisas — altura e aranhas — revelou que, quando eles faziam tratamento para um medo, o outro medo também diminuía. Na linguagem da psicologia, sua confiança recém-descoberta “se generalizou”.
Como a maioria das crianças tem medo do escuro, da floresta e de se perder, um dropping parece ser o sonho de um terapeuta, condensando a terapia de exposição em uma noite intensa. O dropping pode ser um dos motivos pelos quais as crianças da Holanda estão entre as mais felizes do mundo.
“Eu me lembro de sentir medo, mas não a ponto de nunca mais participar”, diz Kimberly Humphreys, holandesa, mãe de três filhos, que hoje vive em Brisbane, na Austrália. Na verdade, ela continuou participando de droppings ano após ano, sempre “descobrindo que conseguia fazer coisas que achava não ser capaz de fazer”. Isso é o oposto da ansiedade.
Também é existencialmente reconfortante saber que as pessoas que mais amam você — seus pais — têm certeza de que você é capaz de lidar com essa experiência.
“Você vai ter que perguntar a eles — não sei muito sobre isso”, respondeu Christel Hartkamp-Bakker, cientista e educadora na Holanda, quando perguntaram sobre os droppings de que seus três filhos (incluindo Birgit) participaram. Por se tratar de algo pelo qual eles próprios passaram quando crianças, os pais parecem não pensar muito sobre isso. E, de certa forma, os droppings são uma espécie de “terapia de exposição” para os adultos também — exposição a abrir mão do controle.
Hartkamp-Bakker não hesitou em explicar que suas filhas não estavam correndo nenhum perigo real durante a viagem. A Holanda é extremamente segura. “E você não consegue se perder de fato aqui. Você está sempre ao alcance de casas ou de pessoas que moram em algum lugar”, diz Hartkamp-Bakker.
As crianças holandesas também crescem com mais independência no mundo real do que as crianças americanas, de modo que o dropping não é a primeira vez que saem sozinhas. As crianças holandesas vão de bicicleta para a escola a partir dos 5 ou 6 anos de idade, e não é incomum ver alunos da primeira série pegando o bonde local sem um adulto, conta Pols. À medida que elas ficam mais velhas, essa desenvoltura é simplesmente dada como certa. Em viagens escolares para outra cidade, pode-se esperar que as crianças se desloquem sozinhas de um museu até o hotel.
Será que está na hora de trazer essa tradição para os Estados Unidos? Os pais aqui sem dúvida precisariam de uma pequena ajuda para relaxar. Um estudo realizado no ano passado pela Universidade de Michigan/Hospital Infantil C.S. Mott revelou que a maioria dos pais americanos com filhos de 9 a 11 anos não os deixam fazer muitas coisas sem supervisão, inclusive brincar no parque com um amigo ou sair para pedir doces no Halloween. Apenas 50% deixariam os filhos ir até outro corredor de uma loja.
Talvez os escoteiros pudessem introduzir o dropping, por exemplo, como uma atividade que vale uma medalha de mérito?
“Meu Deus, não”, respondeu Carolyn Casey, chefe de escotismo da Tropa 1 de Nova York. “Se as crianças fossem deixadas na floresta e se machucassem ou se perdessem, haveria um monte de processos”, diz ela. Casey também não pareceu confiante nas habilidades dos escoteiros com mapas e bússolas. Além disso, ela observa que, ao contrário da Holanda, as florestas nos Estados Unidos são lindas, escuras, profundas e grandes.
Casey é líder de escotismo há 20 anos. Sobre esse tempo, ela comenta: “Vi a coisa se tornar mais cautelosa. Nas viagens, temos muitos pais acompanhando, muitas formas de proteção”.
É improvável que os droppings migrem da Holanda para os Estados Unidos. Pols, que já morou nos dois países, explicou o porquê na sua opinião: “Os Estados Unidos decidiram, de modo geral, em razão da forma como o sistema jurídico funciona, essencialmente não fazer nenhuma troca significativa e optar pelo menor risco possível”. Como resultado, as crianças aqui são constantemente supervisionadas.
Os resultados são mais assustadores do que qualquer floresta iluminada só pela lua.
Lenore Skenazy é presidente do Let Gros, uma organização sem fins lucrativos que promove independência e resiliência na infância, e fundadora do movimento Free-Range Kids.
Leia também “Você pode se alimentar melhor que o rei Henrique VIII”
Interessante.
os espartanos chamavam isso de Agoge……. solta no mundo com uma faca.. e boas…..
que coisa boa pras crianças !!
seria bom ter essa prática do droppings espalhada no mundo inteiro
Interessante. Pena que não dá pra imaginar fazer algo assim aqui no Brasil.
Bom. Algo tem de mudar. Um sistema produz adultos o outro produz covardes, feministos, trans….. etc.
civilização é outra coisa…imaginem pensar em fazer isso aqui no ‘braziu’…