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Colheita de grãos de soja | Foto: Shutterstock
Edição 239

Na roleta, os alimentos

Fome e insegurança alimentar se combatem com desenvolvimento econômico, geração de empregos e renda

Evaristo de Miranda
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No Brasil, o único risco que você não corre,
é o de morrer de tédio.
(José Eduardo Andrade Vieira,
ex-ministro da Agricultura)

Foram necessários uns 6 mil anos no planeta Terra para a população urbana ultrapassar numericamente a rural. Isso ocorreu em 2007, há 17 anos. Quem muda do campo para a cidade deixa de produzir batatas, cereais, hortaliças, frutas e de criar porcos e galinhas. A família rural modifica seu padrão alimentar nas cidades. Com mais urbanização, maior a demanda por comida e menos gente para produzir no campo.

É um caminho sem volta: o crescimento urbano prossegue, enquanto declina a população rural. Cabe ao mundo rural alimentar uma parcela cada vez maior da humanidade, exigente e urbana. Com tecnologias e inovações, o crescimento da produção agropecuária havia sido superior ao da população mundial desde o século passado até 2019. Agora, a insegurança alimentar aumentou.

O crescimento da agricultura sempre foi a base do processo civilizatório. As primeiras cidades se consolidaram no período Neolítico, entre 4000 e 3000 a.C., na Mesopotâmia, no atual Iraque. Se pequenas vilas já haviam surgido desde 9000 a.C., como atestado na Anatólia Central (Turquia), o processo de urbanização, contínuo, se consolidou entre os Rios Tigre e Eufrates. Isso ocorreu graças ao florescimento e à geração de excedentes na agricultura. E, com eles, o aumento da população até os dias de hoje.

Em 2023, a população da Índia ultrapassou a da China e segue crescendo. Os dois países reúnem 3 bilhões de pessoas. Nos próximos 20 anos, nove países (Índia, Paquistão, Indonésia, Estados Unidos, Nigéria, Uganda, Tanzânia, Congo e Etiópia) trarão um acréscimo populacional de mais 2 bilhões de pessoas, mesmo com o declínio das populações em mais de 150 países. O mundo urbano precisará de um fluxo de bilhões e bilhões de toneladas de alimentos diversificados, de qualidade, a baixo preço e, se possível, entregues e disponíveis em supermercados próximos às residências. Isso não se produz em hortas comunitárias ou jardins urbanos. Demanda muita terra, mecanização, investimentos e tecnologia.

Maquinário agrícola em plantação de soja | Foto: Shutterstock

Desde a Segunda Grande Guerra, a produção agropecuária teve um crescimento extraordinário, o clima ajudando ou não. Isso deveu-se à revolução verde e à incorporação constante de inovações tecnológicas ao processo produtivo e às indústrias de transformação agroalimentares. O preço dos alimentos caiu de forma constante. Isso foi particularmente verdadeiro no Brasil. A primeira ruptura global nesse processo ocorreu em 2019, por causa da pandemia de covid-19. Esse vírus surgiu e saiu da China, e causou a morte de 15 milhões de pessoas. Foi a terceira maior causa de mortalidade no mundo em 2020 e a segunda em 2021.

Logo no início da pandemia, a ONU já identificou o vírus chinês como a causa de uma crise sanitária e também de segurança alimentar e nutricional. Os sistemas alimentares mundiais entraram em crise com a redução e desorganização da produção, da logística e da comercialização. Apenas agora os níveis de produção e consumo retomaram valores próximos aos existentes antes da covid-19. E ainda com perturbações como a guerra na Ucrânia, a crise energética na Europa, as adversidades climáticas, as revoltas de produtores, e por aí vai. A produção mundial de cereais em 2024 ficará ligeiramente abaixo da obtida em 2023, cerca de 2,9 bilhões de toneladas.

A pandemia de covid-19 reverteu a tendência de aumento constante na expectativa de vida ao nascer e na expectativa de vida saudável. O vírus chinês eliminou quase uma década de progresso na melhoria da expectativa de vida em apenas dois anos. Entre 2019 e 2021, a expectativa de vida global caiu 1,8 ano, para 71,4 anos (voltando ao nível de 2012). A expectativa de vida saudável global caiu 1,5 ano, para 61,9 anos em 2021 (voltando ao nível de 2012).

A fome mundial cresceu com a covid-19, num nível superior ao existente antes da pandemia. Afetou cerca de 9,2% da população mundial em 2022, em comparação com 7,9% em 2019, antes da pandemia. A pandemia levou a África subsaariana à sua primeira recessão em 25 anos. A covid-19 magnificou o tema da alimentação em escala mundial. Países do Golfo sofreram problemas de abastecimento em decorrência do coronavírus e da queda simultânea dos preços do petróleo. Muitos fundos soberanos, como os de Catar e Dubai, se deram conta do óbvio: não se pode comer dólares. Ainda falta “o pão nosso de cada dia” para muitas pessoas.

Plantação de laranjas no Brasil | Foto: Shutterstock

Em 16 de outubro comemora-se o Dia Mundial do Pão. O pão é um dos alimentos mais antigos, apreciados e consumidos no mundo. E tem faltado. A data foi instituída em 2000, em Nova York, pela União dos Padeiros e Confeiteiros. Eles ancoraram a data no Dia Mundial da Alimentação, instituído pela ONU em 1981, no âmbito da 20ª Conferência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A FAO foi criada em 16 de outubro de 1945, em Quebec, no Canadá. Com sede em Roma, na Itália, a FAO ajudou a enfrentar os desafios alimentares e agrícolas do mundo pós-Segunda Guerra Mundial. Em seu lema está escrito: Fiat Panis (“Haja pão”). Hoje, a FAO é pouco efetiva, anacrônica e muito questionada, como o conjunto da ONU, sobretudo quanto à eficiência de sua cara e pesada estrutura.

O Brasil não tem problemas de insegurança ou insuficiência de produção de alimentos para atender sua demanda interna, como ocorre com China, Japão, Mongólia, Coreia do Sul, Índia, países árabes e em quase toda a África. O Brasil é exportador, e não importador de alimentos, como havia sido até a década de 1970. A produção agropecuária brasileira atual é muito diversificada e suficiente para alimentar mais de quatro vezes a população nacional. E contribui para a alimentação de mais de 1 bilhão de pessoas no planeta. Durante a pandemia, o agro não parou e seguiu crescendo. O Brasil foi um dos poucos países a aumentar sua exportação de alimentos durante a pandemia, diversificando ao mesmo tempo a sua pauta de exportações.

Ao Brasil não falta disponibilidade de alimentos, com qualidade, diversidade e preços competitivos. Faltam, sim, a muitos brasileiros, condições de acesso financeiro a todos eles, dada a situação econômica na qual se encontram. Esse é um desafio a ser estudado e debatido com argumentos e dados, e não com meras convicções ideológicas. Não pode a mais alta autoridade falar ora em 12 milhões de brasileiros passando fome, logo em 19 milhões, depois em 33 milhões, logo em 24 milhões ou, ainda, como disse a ministra Marina: “No meu país tem 120 milhões de pessoas passando fome”. Um paradoxo: para o IBGE, 55% dos brasileiros têm excesso de peso (IMC igual ou superior a 25) e 20% são obesos.

É difícil saber quantos brasileiros não se alimentam adequadamente por razões econômicas ou sociais. E quais são os efeitos e as necessidades reais, e não para fazer uso político-eleitoral, da distribuição de ajudas financeiras, como no caso do programa Bolsa Família, para combater a fome e a desnutrição.

Foto: Shutterstock

Um documento do Banco Central demonstrou recentemente: só no mês de agosto de 2024, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família enviaram R$ 3 bilhões às bets via Pix. E 70% deles eram chefes de família. Com o crescimento das apostas esportivas, as bets lucraram até R$ 20 bilhões, enquanto os brasileiros perderam R$ 23 bilhões por ano com apostas, segundo relatório do Itaú BBA.

Boa parte dos recursos dos programas sociais está indo parar na roleta das casas de apostas, e não nos supermercados. E o Banco Central só contabilizou apostas via Pix, e não outros meios de pagamento, como cartões de débito e de crédito e transferência eletrônica direta (TED). Além dos jogos de azar, parte do dinheiro das ditas “políticas sociais e afirmativas” também vai para outros ralos tenebrosos. Quer apostar?

Eis uma nova dimensão a ser considerada na insegurança alimentar: as relações entre as políticas de combate à fome e o crescimento das apostas em jogos de azar. Essa Josué de Castro nunca imaginou. O tema é mesmo complexo. Parte de quem mais deveria economizar despende. Prodigaliza o orçamento familiar em “entretenimentos”. Não há nada sobre jogos de azar e combate à fome em documentos da FAO e do Fida. Quem sabe, em breve alguma ONG ou banco lançará a campanha: “Segunda-feira sem apostas e com pão”.

Sobre o tema, Fernando Haddad, ministro da Fazenda, comportou-se como um médico sanitarista. Pediu ajuda ao Ministério da Saúde. Para o ministro, o país enfrenta uma pandemia de apostas on-line. Uma questão de saúde pública. Pandemia? Nem bem o Brasil saiu de uma, e já entrou em outra? Sem falar da pandemia de taxação e aumento de impostos. Haja pandemias. Felizmente, para estas últimas existe uma vacina: o voto. E, em matéria de votos, o minoritário mundo rural brasileiro conta e aposta no bom senso da majoritária população urbana, consumidora de alimentos.

Algo simples deve ser repetido e refletido na Semana Mundial do Pão e da Alimentação: fome e insegurança alimentar se combatem com desenvolvimento econômico, geração de empregos e renda. Já dizia o adágio latino: Sine labore non erit panis in ore (“Sem trabalho, não haverá pão em sua boca”). Ou melhor ainda: Sine labore et agricola, panis in ore tuo non erit.

Fazendeiro trabalhando em plantação de café | Foto: Shutterstock

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