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Illustração: Revista Oeste/Shutterstock
Edição 239

O declínio da agenda woke

Cidadãos jogam para escanteio as pautas identitárias e obrigam universidades e grandes empresas a rever práticas militantes

Loriane Comeli
Uiliam Grizafis
Uiliam Grizafis
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Pesquisas recentes mostram que os meios culturais dos Estados Unidos reduziram significativamente a militância em torno de pautas identitárias nos últimos anos. As universidades, por exemplo, têm deixado de levar em consideração critérios de “minoria” para admitir estudantes. Já a imprensa tem citado menos chavões “progressistas”, como “privilégio branco” e “transfobia”. Além disso, nas últimas semanas, uma dúzia de tradicionais empresas norte-americanas — que empregam mais de 1 milhão de funcionários — anunciou publicamente que está abandonando as políticas de diversidade, equidade e inclusão, conhecidas pela sigla DEI. É o declínio da agenda woke, ao menos nos Estados Unidos.

As pautas identitárias floresceram nas últimas décadas e tiveram seu auge entre 2019 e 2020, especialmente depois da morte de George Floyd. Instituições e empresas foram sistematicamente pressionadas a criar cotas para contratar negros, principalmente pelo movimento racial extremista Black Lives Matter. Muitas companhias também aderiram a cotas para mulheres, homossexuais e transexuais, pressionados por ONGs ligadas a pautas da comunidade LGTB, como Human Rights Campaign (HRC).

Movimento Black Lives Matter, que literalmente incendiou o país em protestos violentos | Foto: Shutterstock

Atualmente, contudo, pesquisas mostram que há menos entusiasmo da população norte-americana por temas raciais e sexuais. Uma sondagem recente da consultoria Gallup revela que, no começo deste ano, 35% das pessoas disseram que se preocupam muito com as relações raciais. Em 2021, esse índice era de quase 50%.

Pesquisas sobre discriminação sexual mostram um padrão semelhante, de queda nos últimos anos. A parcela de norte-americanos que considera o “sexismo” um problema muito ou moderadamente grande atingiu o pico de 70%, em 2018, depois do #MeToo — movimento criado para combater o assédio sexual e a agressão sexual, impulsionado por artistas de Hollywood. De acordo com uma pesquisa do centro de estudos Pew, esse número caiu para 57% em 2019.

Mídia e universidades

Recentemente, o jornal The Economist publicou um estudo sobre a frequência com que a mídia tem usado termos woke, como “microagressão”, “opressão”, “privilégio branco” e “transfobia”. A tendência também é de queda. O estudo verificou a frequência de 154 dessas palavras em publicações de seis jornais — Los Angeles Times, New York Times, New York Post, Wall Street Journal, Washington Post e Washington Times — entre 1970 e 2023. Em todos, exceto no Los Angeles Times, a frequência desses termos atingiu o pico entre 2019 e 2021 e caiu de lá para cá. “Privilégio branco”, por exemplo, apareceu cerca de 2,5 vezes para cada 1 milhão de palavras no New York Times, em 2020, mas em 2023 caiu para apenas 0,4 menções para cada 1 milhão de palavras.

Outro dado que chama atenção vem do jornal norte-americano Chronicle of Higher Education: 86 projetos de lei em 28 Estados dos EUA foram apresentados para coibir iniciativas de DEI nas universidades no ano passado. Ao todo, 14 se tornaram lei. “Em parte, o recuo das universidades foi ordenado por lei”, lembra o jornal, referindo-se à decisão de julho deste ano que considerou inconstitucional a política de cotas para negros em universidades norte-americanas. “A Suprema Corte proibiu ações afirmativas com base em raça no ano passado.”

As cotas ferem a igualdade prevista na 14ª Emenda à Constituição, decidiram os juízes do tribunal, por maioria, ao julgarem as políticas de cotas de Harvard e da Universidade da Carolina do Norte.

Go woke, go broke

Assim como no meio cultural, o setor empresarial, aos poucos, vai pondo fim à agenda woke. Aparentemente dispostas a enfrentar pressão dos patrulheiros do “politicamente correto”, companhias bilionárias anunciaram, desde agosto, que vão deixar de investir em ações contrárias ao que seu público-alvo deseja. Compõem essa lista a centenária Ford, com patrimônio líquido de US$ 42,8 bilhões; a fabricante de maquinário agrícola John Deere (US$ 19,5 bilhões); a fabricante de motocicletas Harley-Davidson (US$ 3,5 bilhões); e a longeva destilaria Jack Daniel’s, do grupo Brown-Forman, com patrimônio líquido de US$ 4 bilhões. Para tanto, esses conglomerados receberam um “empurrãozinho” de Robby Starbuck, cineasta conservador e influenciador do Tennessee. Por meio das redes sociais, o influencer começou uma campanha para expor integralmente as políticas de diversidade das empresas, de modo a mostrar para os consumidores e para os acionistas suas reais intenções.

Dois casos emblemáticos de 2023 serviram de lição para os entusiastas da agenda woke: a derrocada da Bud Light, que perdeu a liderança de 20 anos no mercado norte-americano de cervejas depois de exibir um comercial com a ativista trans radical Dylan Mulvaney, e o fracasso da agenda “progressista” da varejista Target.

Foto: Montagem Revista Oeste/Lana Sham/Shutterstock

E não para aí. Outras empresas de grande porte anunciaram publicamente o fim das políticas de diversidade, como a Polaris, gigante das motos de neve e veículos comerciais, com patrimônio líquido de US$ 1,2 bilhão; a fabricante de cerveja Coors (US$ 29 bilhões); a Stanley Black & Decker (US$ 9 bilhões); a Tractor Supply (US$ 2,15 bilhões); e a Indian Motorcycle (US$ 15,1 bilhões).

As companhias afirmam que não vão mais destinar dinheiro a eventos com a temática homossexual nem transexual. Além disso, pretendem destituir as equipes especializadas em contratar funcionários com base nas políticas de cotas. O que chama mais atenção, contudo, é o rompimento dessas empresas com o Índice de Igualdade Corporativa da Human Rights Campaign (HRC). Trata-se de uma pesquisa anual, usada para prestigiar as empresas que avançaram na agenda woke.

Um levantamento da HRC concedeu a 545 empresas a pontuação máxima no índice (100 pontos). A lista dos condecorados inclui a Ford, a Lowe’s e a Brown-Forman. A Tractor Supply e a John Deere, também agraciadas, fizeram 95 pontos.

Agora, as grandes corporações parecem menos dispostas a se arriscar no “go woke, go broke”, ou o popular “quem lacra não lucra”.

O que dizem as companhias

Há pouco tempo, algumas companhias mergulharam de cabeça na política de inclusão e diversidade. A John Deere, segundo o influenciador Starbuck, chegou a financiar um evento de orgulho LGBT para crianças de até 3 anos. Além disso, a empresa teria pedido que os funcionários listassem seus “pronomes preferidos” em todos os comunicados internos.

Imagem: Reprodução/X

Outra empresa que “voltou à sanidade”, nas palavras de Starbuck, foi a Jack Daniel’s. No fim de agosto, a Brown-Forman, controladora da destilaria, anunciou que colocaria fim às políticas de diversidade e inclusão e aos patrocínios à causa LGBT. “O que a Brown-Forman estava fazendo era muito profundo”, disse Starbuck à Fox News. A controladora do Jack Daniel’s justificou que, desde 2019, quando aderiu à estratégia de diversidade e inclusão, “o mundo evoluiu, nossos negócios mudaram e o cenário legal e externo mudou drasticamente, principalmente nos Estados Unidos”.

A Harley-Davidson também adotou a mesma postura em agosto, depois que Starbuck informou publicamente que a companhia estava patrocinando shows de drag queens e promovendo as pautas de identidade de gênero. Algumas companhias, como a Lowe’s, justificaram o fim das políticas de inclusão com a decisão da Suprema Corte que considerou inconstitucional a política de cotas para negros nas universidades.

Imagem: Reprodução/X

‘Não é cancelamento; é capitalismo’

“Extraímos as maiores concessões na história dos boicotes”, comemorou Starbuck, em agosto, quando as companhias começaram a anunciar publicamente o fim das políticas de diversidade. Já a Human Rights Campaign, que tinha um patrocínio vultoso da Tractor Supply, criticou a varejista por bajular “extremistas de extrema direita”.

“Isso não é tudo o que queremos, mas é um ótimo começo”, escreveu Starbuck, ao falar sobre os casos da Ford e da Lowe’s. “Agora, estamos forçando organizações multibilionárias a mudar suas políticas sem nem mesmo postar, apenas pelo medo de serem a próxima empresa que exporemos. Estamos vencendo e, um por um, vamos trazer a sanidade de volta à América corporativa.”

Para o influenciador, não se trata de cancelamento de empresas, mas de capitalismo. “A cultura do cancelamento ataca os indivíduos e destrói sua vida por causa de suas crenças”, escreveu Starbuck, no Twitter/X, no começo de agosto. “Não faço isso. Estou expondo corporações que usam nosso dinheiro para financiar uma ideologia contrária aos nossos valores. Não gastarmos mais nossos dólares lá não é cultura de cancelamento, é capitalismo.”

Imagem: Reprodução/X

Em maio, antes da debandada registrada em agosto e setembro, um texto da articulista Emily Stewart no site Business Insider alertava para a mudança de posicionamento das empresas. “Elas estão sendo extremamente cautelosas ao opinar sobre os debates sociais e políticos do dia”, escreveu, na ocasião.

Philip Mirvis, psicólogo organizacional e pesquisador do Laboratório de Inovação Social da faculdade de empreendedorismo Babson College, disse que essa iniciativa visa a coibir a agenda woke. “Certamente, para as empresas, trata-se de ganhar dinheiro”, observou. “E, na lógica convencional, todas essas questões representam riscos.”

A cientista política Júlia Lucy, especialista em marketing e comunicação, pensa da mesma forma. Para ela, o abandono desse tipo de política ocorre justamente porque é incompatível com a finalidade das empresas, que é gerar dinheiro e riqueza. “O resultado financeiro se impõe sempre”, afirmou.

Segundo a especialista, o preenchimento de vagas por cotas raciais e de gênero leva a contratações erradas. “Muitas vezes, a pessoa não tinha o perfil para o cargo, não tinha as habilidades requeridas, mas acabou sendo contratada para cumprir a cota”, disse Júlia, ao argumentar que profissionais incapazes irão fracassar de qualquer maneira. “Percebeu-se que a pura diversidade não traz resultados, ao contrário do que os defensores desse tipo de política sempre repetiram.”

Júlia Lucy, cientista política especialista em marketing e comunicação | Foto: Divulgação

Outro problema, acrescenta Júlia, é a própria percepção que o cotista tem de si mesmo. “Quando o funcionário chega muito com essa perspectiva de grupo, ele não se reconhece como um indivíduo e tem menor disposição a colaborar com pessoas de outros grupos”, observou. “Porque essa rivalidade não vai diminuir no ambiente de trabalho. Não existe cultura organizacional que consiga reverter isso.”

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1 comentário
  1. Hélio Loureiro Serafino
    Hélio Loureiro Serafino

    Como disse Starbuck, parece estar havendo uma volta ao bom e velho critério da competência e do mérito para tratar funcionários e candidatos a.

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