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Urna eletrônica | Foto: Shutterstock
Edição 240

A piada das urnas

Enquanto não se discutir com boa-fé a reforma do presente sistema de urnas eletrônicas, continuará em aberto um processo envenenado de descrédito em relação à limpeza das eleições

J. R. Guzzo
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Estabeleceu-se no Brasil, entre o primeiro e o segundo turno da eleição municipal, uma conclusão definitiva a respeito de duas coisas. A primeira é que o resultado da votação deve ser “lido” como o exato contrário do que mostram os números. Pela análise dos cientistas políticos, o grande perdedor foi Jair Bolsonaro, por dar apoio a um excesso de vencedores. A grande perdedora foi a direita, que ganhou mas está dividida, porque teve candidatos demais. A segunda é que as eleições provaram que as urnas do TSE são infalíveis; se não fossem, Lula e o PT teriam vencido.

A primeira doutrina tem a mesma importância dos analistas que a criaram — alguma coisa entre o zero e o zero absoluto. Com a segunda já é outra história. A mensagem, aí, é que continua proibido, mais do que nunca, pensar em qualquer modificação nas atuais urnas eletrônicas da “justiça eleitoral”. Os cidadãos, por este entendimento da realidade, são obrigados a respeitar, sob risco de processo penal, a determinação do STF pela qual desconfiar das urnas é uma agressão ao “Estado Democrático de Direito”.

Funcionário do Tribunal Regional Eleitoral conserta urna eletrônica brasileira para eleições na cidade de Eunápolis, na Bahia (29/9/2008) | Foto: Joa Souza/Shutterstock

O STF, a esquerda nacional e a maior parte da mídia exigem que você acredite numa impossibilidade física: a de que a ciência, a tecnologia e o espírito humano consigam fazer alguma melhoria mecânica para o sistema eleitoral brasileiro, daqui até o fim dos tempos. Também criaram um mandamento que não existe na Constituição Federal — o de que o Congresso Nacional não tem direito de discutir ou aprovar nenhuma lei a respeito da ordenação dos processos de voto e de apuração. Por fim, aboliram os fundamentos lógicos do sufrágio universal.

O Brasil não vai ter o mínimo de paz indispensável para a sua vida política enquanto não encarar com honestidade a questão das urnas. Não se trata apenas do mecanismo, e da ideia desconexa de que o TSE atingiu um tal estado de perfeição com os seus métodos de votação e de contagem dos votos que nenhum aprimoramento é mais possível. O que estão achando? Que as propostas de comprovante material para o voto vão levar a uma fraude gigante em favor da “direita”? Ou seria o contrário disso?

O veneno fundamental das encíclicas do STF sobre o tema, na verdade, é a contradição insolúvel entre o que eles acham e o que são, realmente, as democracias. É como se estivessem olhando para um pedaço de arame farpado, por exemplo, e dizendo como se deve fazer uma limonada. Nunca houve por parte dos ministros, desde o começo dessa história, qualquer sinal de compreensão a respeito do verdadeiro significado do conceito de voto popular — e do seu papel como instrumento da vontade da maioria.

Manifestação pelo voto impresso auditável na Avenida Paulista, em São Paulo (1º/8/2021) | Foto: Shutterstock

O pecado original, aí, é a recusa do STF em admitir que uma democracia, para ser democracia, é um sistema de convívio social claramente governado pelas decisões da maior parte de seus cidadãos — e que isso tem de estar obrigatoriamente comprovado, o tempo todo. “Sem registros concretos que permitam rastreio no mundo exterior, a vontade manifesta pelos cidadãos jamais será conhecida”, escreve o procurador Felipe Gimenez, um jurista especializado na área eleitoral. É aí que está o coração do problema.

Tornou-se oficialmente “retrógrado”, no Brasil de hoje, declarar que você precisa ter uma evidência física, por mínima que seja, de que o seu voto foi registrado para o candidato que você efetivamente escolheu no teclado da urna eletrônica. Mas é essa garantia, justamente, que dá sentido ao ato de votar. Não há como haver democracia sem haver o processo concreto da deliberação coletiva — e este processo depende essencialmente do sufrágio universal, ou seja, da manifestação da vontade popular sob o fragor e a luz da praça pública.

No sistema eleitoral brasileiro não há esse fragor e nem essa luz. “Não há relação mútua”, diz Gimenez. “Não há reciprocidade. Não há universo. Não há sufrágio.” Há apenas a praça digital. “O indivíduo trava um monólogo com a urna virtual”, afirma o procurador. “Resta-lhe apenas a esperança de que será ouvido.” Não se trata, obviamente, de fazer eleição no meio da rua, nem de votar com cédula de papel e no bico de pena — isso é o que o STF diz, e é mentira. Trata-se, unicamente, de fornecer ao eleitor um comprovante material do seu voto.

Cabine de votação com urna eletrônica modelo 2020, usado nas eleições presidenciais de 2022, no Rio de Janeiro (29/9/2022) | Foto: Shutterstock

O que poderia haver de errado com isso? Como o comprovante objetivo do voto poderia favorecer um candidato e prejudicar outro? De que maneira isso seria um ataque à democracia? Matéria é matéria. Onde estaria o problema de registrar a sua existência? É o exato contrário do que diz o STF — a possibilidade de verificar se o seu voto foi corretamente registrado está na essência do sistema eleitoral numa democracia de verdade. “A garantia constitucional não é apenas o direito de votar, mas de compor o sufrágio”, escreve Gimenez. Também é o que diz o artigo 14 da Constituição Federal.

“Participar do escrutínio e da sua fiscalização é inerente ao sufrágio”, afirma o procurador. “É direito de cidadania inalienável. Não pertence ao serviço eleitoral, mas ao cidadão. A urna virtual, por seu escrutínio secreto, impede o sufrágio universal.” Este é o começo, o meio e o fim do problema. O cidadão tem a obrigação de votar, mas não tem o direito de verificar para quem foi o seu voto. A “justiça eleitoral” cassou essa prerrogativa — deu a si a exclusividade do escrutínio.

Felipe Gimenez, procurador especializado na área eleitoral | Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O STF diz que não é assim, mas é exatamente assim. Alguém acredita que um cidadão brasileiro consiga, na vida real, conferir o voto que deu? É óbvio que o sistema eleitoral não pode ficar aberto 24 horas por dia para dar satisfação a todo e qualquer indivíduo que cisme que o seu voto foi roubado. Ninguém, por sinal, jamais pediu nada parecido — a verificação do voto tem de ser feita através de um sistema. O problema é que não há sistema nenhum — ou melhor, pode até haver, mas é um perigo recorrer a ele.

Perguntem ao ex-deputado Valdemar Costa Neto, presidente do PL, o que acontece com quem quer verificar o seu voto. Ele solicitou, pelos meios legais, uma recontagem de votos na eleição de 2022. Não houve nem a aparência de um julgamento legal: seu partido foi multado automaticamente em R$ 22 milhões e pronto. Escrutínio público? Sufrágio universal? Vontade da maioria? O STF transformou isso tudo numa piada gigante. Alega, como um fato indiscutível, a possibilidade jamais testada de que um comprovante impresso comprometa o sigilo do voto. É apenas a negação de um direito.

A questão fundamental, que não vai embora nunca, é que as eleições no Brasil se tornaram um exercício que o eleitor não entende e, sobretudo, no qual não confia. O resultado é que, enquanto não se discutir com boa-fé a reforma do presente sistema de urnas eletrônicas, continuará em aberto um processo envenenado de descrédito em relação à limpeza das eleições. O ministro Gilmar Mendes, em sua última manifestação sobre o assunto, disse que a “justiça eleitoral” é “uma invenção brasileira que deu certo”. É uma invenção brasileira, com certeza, mesmo porque não há nada parecido em qualquer democracia séria — é coisa típica de Venezuela. Mas a cada dia fica mais claro que deu errado.

Manifestação pelo voto impresso e auditável, na Avenida Paulista, em São Paulo (1º/8/2021) | Foto: Shutterstock

PS. Quanto ao procurador Felipe Gimenez: se você está achando que as suas opiniões lhe trouxeram problemas sérios, acertou. Há uma representação criminal contra ele na Procuradoria-Geral da República, por “afirmações golpistas”. Não apenas querem que ele confesse um crime que não cometeu. Querem que ele reconheça um tipo penal que não existe.

Leia também “O agente da CIA”

17 comentários
  1. MNJM
    MNJM

    Quando se demonstra tanta Resistência para implantar melhorias, algo muito estranho, a insegurança é normal em relação ao produto (urnas). Onde está o crime? É um direito do cidadão, assegurado pela Constituição.

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Que as eleições são fraudadas é evidente. A eleição tem que ser igual a da França e o stablichment público tem que ir pra cadeia por crime de lesa-pátria e crime contra a soberania nacional

  3. Manoel Bertozzi Mesquita de Oliveira
    Manoel Bertozzi Mesquita de Oliveira

    Tema absolutamente fundamental que precede todo e qualquer outro tema. Fácil de resolver, de custo baixíssimo e implementação rápida! Nada justifica a ausência do comprovante de votação em papel!

  4. Carlos Alberto de Oliveira
    Carlos Alberto de Oliveira

    Que triste destino teve essa nação!

  5. Luiz Buonaduce Filho
    Luiz Buonaduce Filho

    Eleições kkkkkkk ganha quem o STE e o STF quer, até quando o povo brasileiro criar vergonha na cara

  6. Luiz Buonaduce Filho
    Luiz Buonaduce Filho

    Eleições kkkkkkk ganha quem o STE e o STF quer, até quando o povo brasileiro criar vergonha na cara

  7. Luiz Buonaduce Filho
    Luiz Buonaduce Filho

    Eleições kkkkkkk ganha quem o STE e o STF quer, até quando o povo brasileiro criar vergonha na cara

  8. ELIAS
    ELIAS

    Os iluministros do consórcio STF/TSE consideram talvez que ao realizar um deposito de determinada importância em sua conta corrente através de um terminal eletrônico, seja crime a emissão de um comprovante.

  9. Brian
    Brian

    As urnas são tão perfeitas que um ladrão teve 60 milhões de votos, segundo o TSE, e não tem povo. Não tem público. Não pode sair as ruas. Não pode fazer nada sem um exército de seguranças e público selecionado. É isto aí.

  10. Antonio Daniel Cavalcante Guimarães
    Antonio Daniel Cavalcante Guimarães

    Tudo muito suspeito!!!!

  11. Renato Rodrigues Dos Santos
    Renato Rodrigues Dos Santos

    Triste saber que o povo brasileiro é enganado diariamente e não para o país até que sua vontade e seus direitos sejam atendidos na questão eleitoral.

  12. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    Se alguém pressiona o botão do elevador para ir ao 14 andar, espera que alguma luzinha se acenda indicando que sua solicitação foi registrada. Se alguém está no saguão de um prédio, e pressiona o botão do elevador e nada acontece, essa pessoa fica pressionando várias vezes porque está desconfiada que o sistema não registrou o seu comando. É isso mesmo. Sair da “cabine indevassável” da urna sem saber o que aconteceu, é frustrante como encarar a eventual necessidade de subir 14 andares a pé.

  13. Miriam Gimenez
    Miriam Gimenez

    Os trechos transcritos estão na obra “Sereis como deuses” capítulo 4.

  14. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    pouco se fala no supercomputador do TSE. Lá é que está a minha da discussão… E o código fonte desapareceu como também as imagens do 8 de janeiro que o Dino tinha obrigação de guardar. Afinal, infelizmente, temos que comprar o STF com grupo terrorista que pretende exterminar um povo inteiro e não adiante debater com eles.

  15. Amílcar Brunazo Filho
    Amílcar Brunazo Filho

    Denúncia apresentada em 1999 no Simpósio de Segurança em Informática no ITA:
    “Além do Estado da Arte
    O Brasil informatizou o voto em todas as etapas de uma eleição mas isto não indica que estamos na linha de frente no domínio desta tecnologia e sim que ultrapassamos esta linha de forma imprudente e precipitada.
    É chegada a hora da sociedade civil brasileira debater o voto eletrônico, sob pena de deixarmos para nossos filhos um arremedo de democracia onde a Inviolabilidade do Voto não é garantida, o eleitor não pode verificar para quem foi dado o seu voto e não se permite fiscalizar a apuração … como já está ocorrendo agora!”
    http://www.brunazo.eng.br/voto-e/analise.htm#resumo

  16. Joel Luiz Oliveira Rios
    Joel Luiz Oliveira Rios

    A nobre arturidade da boca de veludo que anunciou, “eleição não se ganha, se toma”, ainda terá que confessar diante de Deus e dos homens, tamanha falta de responsabilidade para com a nação e o povo brasileiro, e, ao seu tempo, será devidamente excluído do meio daqueles que são verdadeiras autoridades e que a exercem com decoro e caráter dígnos de uma verdadeira autoridade que honre este nome e o poder ao qual pertence. O povo e a nação brasileira, sobretudo Deus, estamos de olho nisso tudo. Chegará o dia do acerto de contas. Disso não temos dúvida.

  17. Amaury G Feitosa
    Amaury G Feitosa

    Longa vida às urnas indevassáveis do DR. VERBOSO aquele que numa bravata cínica e inoportuna a seus puxa-sacos disse em alto e bom tom “eleição não se ganha, se toma” .. não serei eu jamais duvida da palavra de tão nobre autiridade.

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