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Luís Roberto Barroso, Arthur Lira e Fernando Haddad estão entre os passageiros mais frequentes da FABtur | Foto: Montagem Revista Oeste/Flickr STF/Agência Brasil/Flick FAB
Edição 240

Farra no céu

Os fregueses da FABtur decidem a hora do embarque e viajam de graça

Augusto Nunes
Branca Nunes
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A programação do fórum empresarial promovido em São Paulo neste 9 de outubro reservou 15 minutos à fala do chefe da Casa Civil da Presidência, Rui Costa. O orador discursou por uma hora e meia, os atrasos se acumularam e o ministro das Relações Exteriores da Itália, Antonio Tajani, que consultava o relógio com crescente aflição, só não perdeu o voo de volta por ter cancelado uma entrevista coletiva e rumado para o aeroporto num carro precedido por batedores da Polícia Militar convocados pela comissão organizadora. Como na vinda, Tajani embarcou num avião da Ita, antiga Alitalia — provavelmente sem saber que, se ocupasse o mesmo cargo no Brasil, jamais se preocuparia com atrasos. Aqui, um ministro de Estado se torna automaticamente freguês da FABtur, ramificação da Força Aérea Brasileira à disposição de passageiros especialmente ilustres. Esses é que decidem o momento do embarque no avião que requisitaram.

Como tem status de ministro, foi o que fez Rui Costa em seu 23º voo nas asas da FABtur registrado até setembro deste ano. Para um chefe da Casa Civil, obrigado a ficar o tempo todo ao alcance da voz do presidente, parece uma boa marca. Mas vira coisa de amador se comparada às obtidas pelos dez mais assíduos passageiros da FABtur (veja o ranking). Esse grupo de elite reúne craques forjados em três tribos com direito a viagens bancadas por pagadores de impostos. Com 102 viagens, lidera a lista o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e representante do Judiciário. Com seis decolagens a menos, o segundo colocado é Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados e representante do Legislativo. Os ministros que ocupam as oito vagas restantes mostram a força do Executivo.

Pelos critérios da Aeronáutica, cada decolagem equivale a uma viagem. Barroso nem precisou de um ano inteiro para ultrapassar a barreira das 100. As 102 registradas entre janeiro e setembro ocorreram em 94 dias diferentes, o que embute outro prodígio: em oito ocasiões, decolou duas vezes no mesmo dia. Tudo somado, o campeão fez uma viagem a cada três dias. Só em junho foram 24, o que também o transforma em recordista mensal. A primeira incursão internacional de 2024 aconteceu em 7 de janeiro, quando partiu de Miami com destino a Boa Vista. Uma hora depois de pousar na capital de Roraima no meio da madrugada, seguiu para Brasília. Na noite do dia 8, quase 12 horas depois da aterrissagem, embarcou rumo a Guarulhos. Sempre por conta da FABtur.

Uma das mais recentes viagens de Barroso ao exterior ocorreu em 27 de agosto, quando ele requisitou um jatinho da FAB para um bate e volta entre Brasília e Mendoza, na Argentina. Famosa pela produção de vinhos, a cidade foi sede do XVII Encontro da Associação Paranaense de Juízes Federais. Apesar de sua palestra estar marcada para a terça-feira, o magistrado estendeu a estadia até a tarde de quinta. A lista dos nove passageiros que o acompanharam segue em sigilo, assim como os detalhes da agenda do grupo.

Em 2002, no fim da gestão Fernando Henrique Cardoso, o governo decretou que os ministros teriam direito a viagens aéreas gratuitas desde que fosse atendido um de três requisitos: serviço, emergência médica ou segurança. Em 2015, a presidente Dilma Rousseff estendeu o privilégio aos presidentes do STF, do Senado e da Câmara. (O presidente da República tem seu próprio avião há muitos anos. Além do chefe do Executivo, nele só entram a primeira-dama e os convidados.) Em 2020, outro decreto atualizou a relação de autoridades que só poderiam usar os serviços do Grupo de Transporte Especial da FAB, nome de batismo da FABtur: o vice-presidente da República, os presidentes do Senado, da Câmara e do STF, os ministros de Estado e os comandantes das Forças Armadas.

lula e barroso
Presidente Lula e Luís Roberto Barroso, presidente do STF | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

O artigo 2º do decreto, porém, ressalva que o ministro da Defesa “poderá autorizar o transporte aéreo de outras autoridades, nacionais ou estrangeiras”. Por essa fresta na lei os demais ministros do STF ingressaram na clientela da FABtur. Em fevereiro de 2023, o ainda ministro da Justiça Flávio Dino alegou que os superjuízes “vinham sendo importunados nos aeroportos e a bordo de aviões comerciais”. Dois meses depois, o Tribunal de Contas da União se meteu na história para manter em sigilo “informações sobre voos de altas autoridades em aviões oficiais”. Os nomes dos passageiros, por exemplo, devem ser ocultados. Para o TCU, são “altas autoridades”, além dos mencionados no decreto de 2020, todos os ministros do Supremo e o procurador-geral da República.

O horror à claridade sempre dificulta, e frequentemente impede, o acesso a informações precisas. A Aeronáutica não revela, por exemplo, quantos aviões e helicópteros compõem a frota da FABtur, e mantém em segredo a identidade dos que embarcam a convite da alta autoridade. De todo modo, os números obtidos escancaram a farra nos céus. De janeiro a setembro deste ano, aconteceram 1.119 decolagens. São quatro viagens por dia — ou uma a cada seis horas. Um voo da FABtur entre Brasília e São Paulo custa cerca de R$ 65 mil. Nesse mesmo trecho, uma poltrona na classe econômica premium de um avião comercial não passa de R$ 3 mil. Se todas as viagens de graça ocorridas em 2024 percorressem essa rota, a conta chegaria a R$ 72 milhões. São quase R$ 200 mil por dia. Ou R$ 8 mil por hora. Ou R$ 138 por minuto. Como o total da milhagem foi assustadoramente maior, o governo e a Aeronáutica preferem esconder o tamanho do prejuízo.

Nada disso constrange os viajantes compulsivos. A dupla que ladeia Barroso no pódio não pode queixar-se de solidão nem sentir saudade da família. Em 24 de setembro, quando retornava de um tour internacional de quatro dias com escalas nos EUA e nas Guianas, Fernando Haddad (medalha de bronze) fez uma parada de 45 minutos em Barbados. Esse tempo foi suficiente para a contagem dos convidados: eram dez. Arthur Lira, medalha de prata, é outro que não viaja sozinho. Dos 53 voos feitos até junho pelo alagoano que preside a Câmara, 25 o levaram a Maceió ou dali decolaram de volta a Brasília. No mesmo período, 36 dos 43 voos do ministro da Fazenda percorreram a rota Brasília-São Paulo. Ele passa os fins de semana ao lado da mulher, com quem convive também nos dias úteis em Brasília e nas viagens pela FABtur. Numa delas, estava apenas o casal a bordo. 

Segundo Haddad, Segundo ele, essa decisão só será tomada caso haja amadurecimento do tema | Foto: Divulgação
Ana Estela e Fernando Haddad são fregueses da FABtur | Foto: Divulgação

A convivência era menos intensa antes que Ana Estela Haddad se instalasse no gabinete em Brasília reservado à secretária de Saúde Digital do Ministério da Saúde. Quando um repórter do Estadão quis saber se o ministro achava correto dar carona à própria mulher num avião da FABtur, foi acusado de “misógino” e ouviu a resposta mal-humorada: “Quem embarca é a secretária de um ministério, não uma esposa de ministro”. Além disso, a carona se ampara no Decreto nº 10.267, que a certa altura adverte: “Ficarão a cargo da autoridade solicitante os critérios de preenchimento das vagas remanescentes na aeronave”. É o que provavelmente dirá o supremo ministro Alexandre de Moraes a quem ousar pedir-lhe que justifique a viagem que fez em 8 de janeiro, em companhia da mulher, Viviane, a bordo do jatinho requisitado por Luís Roberto Barroso.

Moraes talvez acrescente que o TCU, “para preservar a segurança das altas autoridades”, proibiu a divulgação da lista de passageiros dos voos da FABtur. Segundo o tribunal, “a ampliação da transparência na divulgação dos passageiros transportados com os ministros de Estado”, solicitada pelo Congresso, tropeçou no artigo 23 da Lei de Acesso à Informação. Ali se lê que “são passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares”. Um Primeiríssimo Ministro e sua consorte, por exemplo. Em matéria de viajantes clandestinos, os jatinhos da FABtur superam qualquer navio pirata.

A FABtur voa no prejuízo, mas os jatos parecem vacinados contra panes semelhantes à que vai apressar o pouso derradeiro do mais famoso integrante da frota aos cuidados da Aeronáutica. Comprado na primeira passagem pelo Planalto do atual presidente, o sucessor do velho Sucatão fez bonito até a chegada de Janja. Foi a bordo do Aerolula que a primeira-dama conseguiu viajar mais que o marido. Mas, se é que restava alguma, a simpatia sucumbiu às turbulências nos céus mexicanos.

Infográfico publicado na Revista Superinteressante sobre o Aerolula | Arte: Emiliano Urbim/Juliana Vidigal/Patrícia Vieira/Sattu/Luiz Iria/Reprodução/Superinteressante
Assentos onde ficam os convidados do presidente, no interior do Aerolula | Foto: Wikimedia Commons
Sala de reunião, no interior do Aerolula | Foto: Wikimedia Commons
Suíte presidencial, no interior do Aerolula | Foto: Wikimedia Commons

Lula contou que, enquanto o Aerolula em pane sobrevoava em círculos a capital do México, sobrou tempo para que os viajantes refletissem sobre o que fizeram na vida, de bom e de ruim, e pensassem no que fariam de diferente caso aquilo tudo não passasse de um susto. “Naquelas cinco horas, conversei com muita gente, mas fiquei quieto um tempão”, disse o presidente. Até hoje não detalhou nenhuma das reflexões. Mas revelou dez dias depois, num palavrório em Fortaleza, a principal conclusão a que chegara ao imaginar que poderia ter feito no México a última decolagem. “Tiramos uma lição”, começaram simultaneamente a confissão e a pancadaria no português. “Vamos comprar não apenas um avião, mas é preciso comprar alguns aviões, porque o Brasil, um país grande, a gente ser pego de surpresa? Pedi que o ministro da Fazenda me fizesse uma proposta. Vamos comprar um avião para o presidente da República entendendo que a ignorância não pode prevalecer. O avião é para o presidente da República, não é para o Lula, Bolsonaro, FHC, é para instituição, quem quer que seja eleito.” Para o presidente, portanto, o único grande erro que cometeu em 78 anos foi ter comprado só um Aerolula.

Não será difícil redimir-se. José Múcio, ministro da Defesa, acha que só a aquisição de aeronaves modernas poderá eliminar o que chama de “deficiência na frota do governo federal”. Um novo avião presidencial, ainda que de última geração, será pouco. O governo também precisa de substitutos para o punhado de velharias de menores dimensões, que segundo o ministro sobrevivem graças a constantes manutenções. Múcio lembra que o Aerolula ficou pronto em 2004, tem capacidade para acomodar 39 passageiros, uma autonomia de voo que se limita a 11,2 mil quilômetros e, aos 18 anos, precisa descansar. Lula e Janja sonham desde o dia da vitória nas urnas com um avião novinho em folha, com cama de casal, banheiro com chuveiro, gabinete de trabalho privativo, sala de reuniões e uma centena de poltronas semileito.

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O Ministério da Defesa calcula que a opção mais barata custará de US$ 70 milhões a US$ 80 milhões. O preço pouco importa. Depois da viagem ao Japão que exigiu duas escalas, a ideia tornou-se urgente. Virou prioridade máxima com as complicações ocorridas logo depois da decolagem no México. Sem chiadeira, a compra do Aerolula 2 (ou Aerojanja) será aprovada pelo Congresso, considerada perfeitamente constitucional pelo STF e avalizada pelo Tribunal de Contas da União. Consumado o negócio, a crescente freguesia da FABtur exigirá aos berros o aumento e a modernização da frota. Isso pode esperar mais um pouco. Mas também virá.

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter criado por Mário de Andrade, resumia os males do Brasil em cinco palavras: “Muita saúva e pouca saúde”. Acaba de ser corrigido pelo chefe das saúvas: o que falta é avião para o casal real e viagens de graça para os amigos ricos, tudo por conta do povo.


*Com reportagem de Artur Piva

Leia também “A volta dos Irmãos Petralha”

8 comentários
  1. daise a.scopiato
    daise a.scopiato

    Snif, snif!! Eu queria saber TUDE!!os nomes dos usuários e caroneiros porque SOU EU COM VCS QUE PAGAMOS TUDE!!! Porque não revelam??? Do que teem medo??? Não temos armas!! Só temos Bíblias e carnês para pagar!! SNIF!!!!

  2. daise a.scopiato
    daise a.scopiato

    Snif, snif!! Eu queria saber TUDE!!os nomes dos usuários e caroneiros porque SOU EU COM VCS QUE PAGAMOS TUDE!!! Porque não revelam??? Do que teem medo??? Não temos armas!! Só temos Bíblias e carnês para pagar!! SNIF!!!!

  3. Rosely de Vasconcellos Meissner
    Rosely de Vasconcellos Meissner

    E tem que cortar dinheiro da saúde, medicamentos, educação, …. e taxar o povo para os reizinhos continuarem no luxo.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Se a farra com aviões da fab é contra a lei, então tá na lei

  5. Leonardo Abreu
    Leonardo Abreu

    Todes filhes des putes.

  6. Luiz zampar
    Luiz zampar

    Uma vergonha. Coitados do povo Brasileiros.

  7. julio bento da silva bento
    julio bento da silva bento

    Bêbado vagabundo!

  8. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    Um País rico onde o seu Povo não tem necessidades de nada, saúde, educação e segurança funcionam perfeitamente bem, é assim que se faz!
    Trabalhar que é bom mesmo nada! Com tanto tempo a bordo não sobram horas para os processos, para os despachos, para as leis.
    Como pode isso? Aonde iremos parar? Até quando durará esse afronta?

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