Jeff Bezos, dono do jornal The Washington Post, provocou choro e ranger de dentes com o seu mais recente editorial. Nele, Bezos explicou os motivos que o fizeram decidir, contra o histórico recente e as expectativas do próprio pessoal da redação, não apoiar nenhum candidato na presente corrida eleitoral americana. E atribuiu ao crescente viés político a principal causa da perda de credibilidade da mídia mainstream. “Eis a dura verdade: os americanos não confiam na imprensa” — diz o título do editorial, cuja conclusão ressalta o isolamento da imprensa, cada vez mais autocentrada e distante do público leitor. De acordo com o fundador da Amazon:
“A falta de credibilidade não é exclusividade do The Post. Nossos jornais irmãos enfrentam o mesmo problema. E isso não é apenas um problema para a mídia, mas também para a nação. Muitas pessoas estão recorrendo a podcasts improvisados, postagens imprecisas nas redes sociais e outras fontes de notícias não verificadas, que podem rapidamente espalhar desinformação e aprofundar divisões. The Washington Post e The New York Times ganham prêmios, mas, cada vez mais, falamos apenas para uma certa elite. Cada vez mais, falamos apenas entre nós mesmos.”
Com bastante atraso, Bezos descobriu o fenômeno que, no contexto específico da relação da sociedade com a sua classe falante, eu tenho chamado de “cismogênese”. O conceito foi cunhado nos anos 1930 pelo antropólogo britânico Gregory Bateson em seu livro Naven, uma etnografia do povo Iatmul, de Papua Nova Guiné. Inspirada na cibernética, a palavra foi criada para explicar a complexa dinâmica social manifesta no ritual que dá nome à obra, e que comporta elementos de travestismo e a observância de brincadeiras jocosas entre parentes masculinos de gerações distintas, incluindo simulações parodísticas de relações sexuais entre “tios maternos” (wau) e “sobrinhos” (laua).
Etimologicamente, a palavra é formada a partir da junção dos termos em grego para “ruptura” (skhisma) e “origem” (genesis), tendo por significado, portanto, algo como “origem da ruptura”. Semanticamente, a cismogênese foi definida como “um processo de diferenciação nas normas do comportamento”, tanto de indivíduos quanto de grupos. No interior de um sistema qualquer, a palavra descreve a interação entre elementos que reagem mutuamente ao comportamento uns dos outros, de modo que, se um elemento A se comporta de maneira a induzir uma determinada reação no elemento B, essa reação afetará o comportamento posterior de A, que induzirá nova reação de B, e assim por diante. Um avanço descontrolado desse processo de retroalimentação pode resultar em nada menos que o colapso do sistema.
Bateson distinguiu dois tipos de cismogênese, a simétrica e a complementar. A cismogênese simétrica ocorre quando partes equivalentes reproduzem um mesmo comportamento, conferindo à interação o aspecto de uma rivalidade. Quando, por exemplo, dois indivíduos começam a xingar-se mutuamente, o recrudescimento das ofensas por parte de um causará, em resposta, o recrudescimento das ofensas por parte do outro, e assim sucessivamente, até que, eventualmente, a disputa verbal resulte em vias de fato.
Por outro lado, a cismogênese complementar observa-se entre partes assimétricas numa determinada interação, de modo que o comportamento X de uma delas induz ao comportamento Y da outra, o que leva a uma intensificação de X, seguida de uma intensificação correspondente de Y, e assim por diante. Quando, por exemplo, um sujeito de personalidade impositiva interage com alguém de temperamento submisso, os comportamentos complementares de um e outro reforçam-se mutuamente, até o ponto em que uma relação intersubjetiva pode se tornar inviável, transformando-se em submissão total, na qual a relação já não se dá mais entre dois sujeitos, mas entre uma pessoa-sujeito e uma pessoa-objeto.
Tenho recorrido à ideia de cismogênese complementar para descrever a forma de interação entre o povo brasileiro e a sua classe falante, em especial a sua imprensa. Várias pesquisas recentes e o próprio resultado das últimas eleições municipais parecem indicar um consistente aumento no conservadorismo da população. Em geral, a reação midiática a esses resultados tem sido de escândalo, como quem, desde um ponto de observação externo e alheio, observasse um fenômeno natural incompreensível. Todavia, essa ilusão de distanciamento objetivo e a consequente perplexidade gerada têm impedido a compreensão de que o aumento do conservadorismo do povo guarda uma relação intrínseca com o aumento complementar do progressismo por parte da intelligentsia e da mídia, num processo cumulativo e cismogenético.
Com efeito, o grosso dos nossos jornalistas e colunistas de opinião parece não ter ouvido falar do que Einstein ensinou sobre o movimento relativo. Quando olham para o aumento do conservadorismo do brasileiro, imaginam estar num ponto fixo de observação, não percebendo o fato de que também eles estão em movimento, apenas que em sentido contrário. Daí que o aumento do conservadorismo só possa ser bem compreendido relativamente à intensificação do progressismo da classe falante. A sensação de distância — um fenômeno que, em certa medida, parece ocorrer em escala global — é intensificada pela soma dos vetores de dois “corpos” se movendo em direções opostas: o povo, para um lado; a classe falante, para o outro.
Duas pesquisas recentes parecem confirmar a tendência. A primeira saiu pelo Ipec (ex-Ibope) em abril, dando conta de uma maior adesão popular aos valores de direita. A segunda saiu pelo Laboratório de Sociologia do Trabalho (Lastro) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e queria avaliar o perfil político apenas de jornalistas. O resultado foi o exato oposto ao da pesquisa do Ipec, mostrando que apenas 4% dos jornalistas brasileiros se identificam como de direita (incluindo aí as categorias direita, centro-direita e extrema direita), enquanto mais de 80% se identificam como de esquerda (incluindo aí a esquerda, a centro-esquerda e a extrema esquerda).
Minha hipótese é que, a não ser que os meios de comunicação tradicionais mudem radicalmente de atitude (como sugere Bezos), esse desencontro cultural tende a aumentar ao longo das próximas décadas, porque, como foi dito acima, ambos os comportamentos — o conservadorismo do povo e o progressismo da elite — têm se reforçado mutuamente. Não se pode prever o fim desse processo cismogenético, mas provavelmente ele não ocorrerá sem traumas. Tudo parece caminhar para confirmar a sombria previsão feita pelo escritor francês Michel Houellebecq no livro Submissão, que aliás me serviu de inspiração para o emprego do conceito de cismogênese no caso em tela: “Eu percebi claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível”.
Leia também “A direita brasileira: conservadores e liberais”
A gente percebe a dicotomia entre o pensamento do povo e dos jornalistas e da imprensa tradicional nas sessões de comentários . Mas eles não estão nem aí para isso, porque eles vivem de propaganda oficial.
Outro texto maravilhoso do Flávio Gordon. Sou suspeita para opinar por ser fã de carteirinha das suas análises políticas e afins. Já acompanho suas publicações na Gazeta e agora muito bom vê-lo na Oeste.
Me recuso a aceitar esse progressismo e a cultura woke, apesar da academia acho que as pessoas tem capacidade de se desvencilhar dos seus antolhos
EXCELENTE ANALISE !!!
REALMENTE O POVO MUDOU !!!!
ESTAMOS CANSADO DESTYE IMPRENSAS QUE VIVE AS CUSTAS DO DINHEIRO DO ESTADO OU SEJA DO CONTRIBUINTE.
VEJAM QUASE TODAS AS MIDIAS SÃO MANTIDAS PELO $$$$ DO ESTADO NADA SE COMENTA DA PRISÃO DOMICILAR DO ESTADO.
É POR ESTA RAZÃO QUE SOU UM FERVOROSO LEITOR DA ” REVISTA OESTE ” E TODOS OS SEUS TRABALHOS.
Este alto percentual de jornalistas que se identificam de esquerda talvez se justifique pelo ensino arcaico da graduação, pré Internet, onde acreditam que só conseguem sobreviver no meio na base de publicidade estatal.
Gordon, talvez devido a minha avançada idade, não consigo entender como a mídia (youtubers) que entendíamos ser da direita, elogiosos de Bolsonaro e Tarcisio, de repente acreditaram nesse farsante Pablo Marçal, que utilizou dos nomes Bolsonaro e Tarcisio para se auto promover, levando muitos desses a entender que poderiam ter muito mais audiência com essa figura, marqueteiro de 3a. categoria.
Porem, há críticos de Bolsonaro e Tarcisio no bom jornalismo da Revista Oeste, que tem razões pessoais para não aceitar qualquer complacência com essa gente do SUPREMO, que ferem a nossa democracia, e manifestam com razão sua revolta.
Flavio Gordon é sempre uma aula….
Flavio Gordon é sempre uma aula….
Não tinha conhecimento disto. Mas, já há algum tempo que sinto essa dicotomia. Gordon, com o seu brilhante intelecto, ensina uma vez mais.