Los Angeles é a cidade dos carros. Por isso mesmo, os ônibus costumam circular meio vazios. Sem carro, peguei o ônibus 761 na Westwood Boulevard. O ônibus passou pelo campus da UCLA, e me deixou na North Sepulveda Boulevard, no bairro de Brentwood.
Caminhei pela passagem sob a San Diego Freeway e segui até a entrada do Getty Center. De lá, um trenzinho decorado com obras de arte me levou até a escadaria de mármore que me levaria à suntuosa recepção. Perguntei quanto custava o ingresso. “Não custa nada. Entre e seja bem-vindo.”
Com o dólar que gastei no ônibus 761, cheguei a um dos mais belos museus do mundo, sob o céu azul da Califórnia. O complexo, também conhecido como The Getty, inclui seis grandes unidades brancas desenhadas pelo arquiteto Richard Meier, cada uma exibindo uma exposição diferente.
Nos museus encontramos obras de arte desde a Idade Média e coleções de fotografia desde 1830. Uma das exposições, chamada Lumen, trata especificamente da arte e da ciência da luz. Mostra aparelhos óticos, instrumentos de astronomia, ensaios de neurociência e estudos sobre a luz por artistas cristãos, judeus e muçulmanos. Outra exposição mostra os detalhes da natureza vistos pelos primeiros microscópios. Uma terceira analisa a influência da astrologia na Idade Média.
Mais do que um excelente museu, o Getty Center é um ponto de encontro aberto à população. O jardim central (desenhado por Robert Irwin) foi planejado para ser um local de relaxamento e reflexão, com riachos artificiais, plantas coloridas e um gramado. Ou você pode visitar o terraço inferior, um jardim de cenário de deserto, com a San Diego Freeway — quase sempre congestionada — ao fundo.
‘Difusão do conhecimento artístico e geral’
O último objeto exposto no museu antes da saída é um busto do responsável por tudo aquilo. John Paul Getty (1892-1975) já nasceu em berço esplêndido, pois seu pai era um magnata do petróleo no início do século 19. John Paul seguiu o próprio caminho e, em 1949, deu seu grande salto quando conseguiu uma concessão de 60 anos dos poços de petróleo da Arábia Saudita.
Sua história ficou marcada por uma tragédia, em 1973. Seu neto, John Paul Getty III, foi raptado por bandidos na Itália, que exigiram US$ 17 milhões pelo resgate. O avô disse não. “Se eu pagar um centavo agora, terei 14 netos sequestrados.” Cinco meses depois, fez um acordo, e o neto foi libertado para uma vida de infelicidade.
Quando morreu, aos 83, dois anos depois do sequestro do neto, John Paul Getty era considerado o homem mais rico do mundo. O caso de seu neto provocou um dano irreversível à sua imagem.
Por outro lado, John Paul Getty gastou boa parte do seu dinheiro com obras de arte e objetos históricos. Garantiu seu desejo com a criação do J. Paul Getty Trust, uma fundação filantrópica “pela difusão do conhecimento artístico e geral”. E possibilitou a construção do Getty Center, inaugurado em 1997, 22 anos depois de sua morte.
Itália na Califórnia
A 9 quilômetros a sudoeste do Getty Center fica a Getty Villa. Getty recriou em todos os detalhes no bairro de Pacific Palisades uma vila romana. Seu modelo é a Villa dei Papiri, no sul da Itália, que foi soterrada na erupção do Vesúvio, no ano 79. A vila original já servia à cultura, guardando 1,8 mil rolos de papiro — todos carbonizados pela lava.
A reconstrução da vila na Califórnia hoje reúne 44 mil peças gregas, romanas e etruscas datadas entre 6500 a.C. e 400 d.C. A monumental obra foi inaugurada em 1974. John Paul Getty nunca chegou a visitar a Getty Villa e morreu dois anos depois, doando US$ 661 milhões para o campus.
Como no Getty Center, todos os dias crianças e jovens estudantes passeiam pelos 260 mil metros quadrados de obras e objetos históricos. Qualquer cidadão pode desfrutar dos quatro jardins da Getty Villa com sua vegetação mediterrânea. Como um aristocrata do Império Romano, qualquer um pode relaxar junto ao grande espelho d’água da entrada, cercado por ervas mediterrâneas e esculturas históricas.
Preço para entrar na Getty Villa: zero dólar.
A biblioteca com 12 milhões de livros
Henry E. Huntington nasceu em 1850, sobrinho do magnata das ferrovias Collis Huntington. Com participação em diversas empresas e a implantação de ferrovias elétricas em Los Angeles, logo se tornou um dos homens mais ricos do país. Faltava um sentido para sua vida. E ele gostava de ler.
Aos 53 anos, Huntington decidiu que queria colecionar livros. Comprava coleções inteiras, milhares de livros de uma vez, que guardava em sua enorme propriedade em San Marino, próxima a Los Angeles. No fim de sua vida, Henry E. Huntington e sua mulher, Arabella, tinham reunido uma biblioteca com 12 milhões de volumes impressos nos últimos dez séculos. O casal resolveu então tornar esse tesouro público, assim como o palacete em que moravam cercados por 45 mil obras de arte. E criou a Biblioteca Huntington, o Museu de Arte e os Jardins Botânicos.
Esses milhões de livros poderiam estar mofando em algum porão. Hoje são consultados por pesquisadores e estão parcialmente digitalizados e disponíveis ao público. Em um salão na penumbra, o visitante pode ver frente a frente duas das bases da nossa civilização.
Protegido por vidros está um dos 60 exemplares da Bíblia de Gutenberg, que inaugurou a era do livro impresso, em 1460. O livro, em excelentes condições, vale milhões de dólares. Representa o maior avanço no processo de democratização e popularização do conhecimento e da cultura jamais visto até então.
No salão escurecido também está um exemplar original da obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton. Esse livro estabeleceu as bases da ciência contemporânea, em 1687. Ao lado do livro está a máscara mortuária dele mesmo, Sir Isaac Newton.
A entrada no complexo Huntington não é gratuita. Nem barata. Vai de US$ 13 (para visitantes entre 4 e 11 anos) a US$ 29 (para adultos). Mas é um sucesso permanente de visitas, mesmo para quem não se interessa por arte ou história.
A razão desse sucesso é que, em 1903, Henry Huntington comprou o Rancho San Marino, numa região semidesértica, e chamou especialistas para desenvolver o que se tornaram os Jardins Botânicos, com 526 mil metros quadrados abertos ao público. Os visitantes passam por 16 jardins com 83 mil plantas. Não é apenas uma experiência de observação botânica, mas também um show de paisagismo. No Jardim Chinês, especialmente, não parece haver um único ângulo que não tenha sido cuidadosamente planejado e executado para o prazer de nossos olhos.
John Paul Getty e Henry E. Huntington são dois dos muitos exemplos de magnatas americanos que acumularam fortuna e entregaram parte dela à população de pessoas comuns das gerações futuras. Eles são o melhor argumento contra a tese “taxe os muito ricos”.
Infelizmente, esse tipo de magnata anda cada vez mais raro. Hoje, muitos preferem limpar sua consciência entregando sua fortuna a causas esquerdistas. Ou compram um time de futebol. Ou mais um triplex em Manhattan.
O carro do Xá do Irã
Nem tudo está perdido. E a preservação da cultura não se limita ao mundo da erudição. Na Avenida Wilshire, a poucos metros do Consulado Brasileiro em Los Angeles, coberto por uma estrutura metálica, está o Petersen Automotive Museum.
Robert Einar Petersen, nascido em 1926, ganhou um bom dinheiro publicando revistas sobre suas paixões: carros e motos. Com o dinheiro, ele e sua mulher, Margie, colocaram à disposição do público a vasta coleção de veículos automotivos que possuíam. Instalaram o museu num edifício de cinco andares que havia sido uma loja de departamentos. A coleção é tão grande que o museu ficou meio apertado.
Lá estão expostos os primeiros carros fabricados, como o célebre Ford Modelo T, além de alguns dos maiores e mais luxuosos carros já produzidos — Cadillacs, Rolls-Royces e o majestoso Bugati azul que pertenceu ao falecido Xá do Irã.
Uma das principais atrações do Petersen Automotive Museum é sua ligação com clássicos da cultura pop. Lá está o Batmóvel original. Um dos Ford Thunderbird verdes usados em Thelma & Louise. A Kombi amarela de Little Miss Sunshine. O DeLorean da trilogia De Volta para o Futuro. O Gran Torino vermelho do filme de Clint Eastwood. O carrinho 53 de Se Meu Fusca Falasse. A van Mistery Machine do filme Scooby Doo.
Carros dourados, prateados, pintados em todos os detalhes como obras de arte, carros futuristas, experimentais, cromados, decorados, bizarros, históricos — tudo isso está presente no Petersen Automotive Museum. Que também não é gratuito. Os preços vão de US$ 12 a US$ 21. Um museu de alta manutenção como esse fecharia se não fosse autossustentável. Mas repetindo: esses tesouros sobre rodas poderiam estar trancados numa garagem.
Getty, Huntington e Petersen não eram santos. Nenhum de nós é. Mas eles resolveram fazer obras grandiosas que nos beneficiam hoje e poderão enriquecer a experiência de gerações futuras. Se você for um dia desses a Los Angeles, sugiro que comece pegando o ônibus 761.
— Agradecimentos a Claudio Poles
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Esses bilionários ao invés de comprar obras de arte, mandassem o dinheiro pra África faria melhor proveito
Com certeza vou pegar o 761.
Adoro seus artigos, você sabe.
Obrigado, Luzia! E boa viagem…
Com certeza vou pegar o 761.
Adoro seus artigos, você sabe.