Em junho de 1979, estava em discussão no Congresso o projeto de anistia enviado pelo governo de João Figueiredo. Na edição do dia 28 — exatamente dois meses antes da decretação da medida que pacificou o país e apressou a restauração da democracia —, o poeta Carlos Drummond de Andrade tratou do tema em sua coluna no Jornal do Brasil. Confiram a crônica do imenso Drummond. Título: Anistia: Como Vens, Como te Imaginava. Parece ter sido escrita hoje.
Anistia, teu nome é perdão. Mas como perdoar a quem não cometeu falta ou delito, e, não os cometendo, foi castigado? Se teu nome é perdão, deve este ser pedido às vítimas da injustiça e o arbítrio? Em vez de compaixão, neste caso, a anistia precisava ser um ato de arrependimento seguido de reconhecimento público e proclamação da injustiça. O perdão cabe ao ofendido. E há muitos ofendidos e humilhados que, sem culpa, tiveram de pagar pelo crime que não perpetraram.
Anistia teu outro nome é esquecimento. É fácil esquecer. Quase não fazemos outra coisa todos os dias. Esquecemos a hora, o compromisso, o encontro trivial, a pequena obrigação, o pequeno prazer e a pequena dor. Nossa vida é um tecido de esquecimentos, sabiamente preparado pela memória, que não teria capacidade de expor e ruminar os milhões de atos e tentativas de atos, pensamentos, sentimentos e sensações que compõem um dia na Terra. E são milhares de dias sob esse depósito de acontecimentos e fantasmas de acontecimentos que nos cercam e nos penetram. Se fôssemos guardá-los todos, que seria de nossa vida e nosso tempo? Eliminá-los pelo santo esquecimento, bálsamos de Deus ao mundo, pois não só anula o insignificante como tonifica a alma. Entretanto, tudo se pode, se deve e convém esquecer, quando é santo esquecer.
Se a anistia é um processo de esquecimento, que será da História? E que será dos esquecidos, se eles mereciam ser lembrados, vivos ou mortos que estejam, por que a injustiça os marcou? Vamos esquecer os infratores da lei geral, se isto ajuda a normalidade política, e se essa lei merecia mesmo ser respeitada, pois há leis tão desprovidas do espírito legal que não se dão ao respeito. Mas, e aqueles que nem isso fizeram, aqueles que não infringiram lei alguma, justa ou absurda, esses merecem perdão ou reparação total?
Anistia, começo a não compreender teu sentido. Vens com um ramo de oliveira na mão direita, mas ocultas na outra algo parecido com uma vergasta. Perdoas a quem não precisava ser perdoado mas exaltado, em vez de te curvares diante dele, porque sofreu punição iníqua, já é estranho perdão. E distinguir entre os que devam ser perdoados, para excluir os que faziam jus a perdão, pois não são criminosos comuns, soltos pela cidade, incapturáveis e impunes; excluí-los do perdão que justamente lhes é aplicável, isto eu não entendo.
Anistia, vens pela metade ou por dois terços? Consideras-te ampla e estreitas as dobras da tua veste? Absorveste mal o significado da palavra perdão, omites a profundidade da palavra esquecimento? Discriminas onde a razão, a filosofia e a ciência política se eximem de fazê-lo?
Ou vens tímida, precavida, no cálculo (ou na esperança) de que mais tarde se corrigirão os erros que deliberadamente cometes, restringindo-te a ti mesma em teu poder absoluto? Guardas para o futuro uma segunda edição de teu espírito, amplo por natureza? Estabeleces o crediário em matéria de justiça, de magnanimidade e visão política? Tens disfarçado no colo um conta-gotas, ou soletras à noite um manual de casuística, para aplicar à urgente realidade brasileira a Summa de Casibus Penitentialibus?
Demoraste tanto a vir, e pareces hesitar ainda na etapa final do caminho. Consultas papéis e mais papéis, como se no papel, e não no espírito que em todos os tempos te inspirou, estivesse a indicação precisa do teu roteiro. Um só papel e umas poucas linhas te bastam. Esquecimento e perdão (já que não haverá pedido de perdão a muitos dentre os perdoados) não ocupam espaço excessivo na página. Ou preferes fazer maior consumo de palavras, se estas, e só estas, bastam?
Julgas-te sábia, se limitas o raio da tua sabedoria? Tens-te por generosa, estabelecendo condições para tua generosidade? Sabes que podias ser perfeita, e a perfeição não te apraz?
A conveniência política poderá acolher-te com aplausos, considerando-te a melhor que se poderia almejar no momento, e nesse caso colam a etiqueta de provisória ou mais ou menos. Mas eu queria ver-te resplandecente em tua pureza e integridade. Queria aplaudir-te na generalidade e profundidade de teu conteúdo clássico. Uma bela idéia há de manifestar-se sem remendos ou ranhuras. Não podes trazer uma pereba na perna venusina. Vem completa, vem de túnica imaculada, vem nua, anistia. E, nua, não darás margem a murmurações e recriminações, protestos, ressentimentos, vociferações e lágrimas. Assim te desejo, assim te espero para os que necessitam de ti e os que já não necessitam, pois habitam a mansão além da política, das crises sociais e da injustiça (como, e com que ridículo, anistiar um Juscelino, um Lacerda?). Quero-te alta e perfeita, e não uma baixinha anistia de quatro dedos e andar cambaio. Quero que voes. Com asas te imagino, sobre os desencontros e mesquinhezas dos pobres intérpretes de tua grandeza luminosa.
Leia também “A briga errada”
Deveria ser lida no plenário do congresso nacional. É cada membro (deputado/senador) receber uma cópia para sempre ler quando for discutir este assunto. Ah, para o STF mandar 2 cópias no caso de se “perder” uma
Deveria ser lida no plenário do congresso nacional. É cada membro (deputado/senador) receber uma cópia para sempre ler quando for discutir este assunto. Ah, para o STF mandar 2 cópias no caso de se “perder” uma
Os que receberam anistia em 79 não lêem Drummond.
Em tempo: Carlos Drummond de Andrade.
Boa noite, Brasil! 🇧🇷
O nobre e saldoso poeta Carlos Drumond de Andrade era profeta e não sabia. Ou sabia?
E eu não conhecia essa fantástica crônica de Drumond. Estou em êxtase!!
Augusto, prefiro os seus textos; são contundentes .
Não é tempo de poesia; não mais.
Escreva o próximo.
Que venha como ele descreve . E oremos para que os togados desconsiderem como foi feito no indulto presidencial recente
Que isto seja somente o meio do caminho. A verdadeira justiça se dará quando os responsáveis por estas injustiças forem devidamente punidos!
Augusto Nunes relembrando o grande poeta Drummond.
A diferença entre a anistia de 1979 é que naquele ano vivíamos o apocalipse do regime militar 1964-1985.
Hoje temos os presos políticos em razão da depredação promovida pelos baderneiros do 8 de janeiro.
Em 1979 existiam as marchas pela anistia ampla, geral e irrestrita.
Hoje assistimos a poucos meios de comunicação dando ênfase ao assunto com a transparência necessária, acobertando os atos ilegais da Suprema Corte na pessoa do Sr. Alexandre de Moraes.
Os dois lados possuem criminosos. Nos anos 1970 temos por exemplo Jose Dirceu, que voltou ao mundo do crime como apurado pela Operação Lava Jato e hoje mais um descondenado e reabilitado pela justiça.
Os envolvidos nos tristes episódios do 8 de janeiro sequer processo legal e justo tiveram direito.
Drummond perfeito. Obrigada Augusto por este texto tão atual. Parece ter sido escrito hoje.
Agora consegui acessar, graças a Deus! Não perco nenhuma do grande Augusto Nunes, e reler a crônica de Drummond me deu mais força para enfrentar este país desatinado dos dias atuais.
Não consegui acessar a coluna do Augusto Nunes pelo aplicativo, e, se vou pelo e-mail, dizem que a senha que vocês me deram está incorreta.
Nunes, excelente artigo !! Lamentavelmente o Brasil está achado pelo STF e os deputados têm medo de votar. Não seria a hora de estudarmos a existência do STF , pois não foi eleito por detém o PODER – O POVO e provoca estes problemas
É tudo muito bonito textos poéticos, mas o que importa hoje é encarcerar todos os bandidos dos três poderes e fuzilamento dos melancias
Eu desconhecia essa crônica, uma poesia! Gratidao, Augusto Nunes! Quão atual é esse texto! Muito, muito obrigada!
Texto sempre atual. Mais uma entre tantas preciosidades deixadas pelo grande Drummond. A ideia do esquecimento é central para o caso do Brasil. Com o 8⃣ de janeiro, reprisa a história, só que com mais ímpeto, como que lastreado por uma convicção religiosa medieval.
Linda crônica! Como assim, perdoar inocentes, se o perdão deveria ser pedido aos inocentes?
Quando adolescente, eu tinha o hábito de recortar dos jornais as crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Rubens Paiva e mais dois cronistas, cujos nomes me escapam momento!
Fiz um “álbum” com esses recortes e o tenho até hoje!
Estou certa de que não tenho essa crônica no álbum! Estava esperando meu segundo filho, que nasceu um mês depois. Vida de mãe é beeeeem atribulada!
Concordo com o comentário acima.
Concordo com o comentário acima.
A Capa de Oeste está perfeita: os EUA. Não poderia ser outra.
Justo seria caberem 2 nesta edição: esta crônica de Drummond. Justo seria tê-la permanentemente no alto do site – epígrafe – até o dia da Anistia que urge neste tempo brasileiro. Augusto, parabéns por desfraldar as palavras do poeta.