Quando Alexandre Bompard, CEO do Carrefour, resolveu anunciar o embargo à carne bovina brasileira no mercado francês, seu grande temor não era a Floresta Amazônica — que continua em pé, verde e é a maior do planeta. O alerta sobre a produção brasileira ocorre justamente pela competitividade do país no mercado global — algo em constante crescimento.
Os touros japoneses da raça wagyu, por exemplo, são famosos por dar origem aos cortes mais caros do planeta. A melhor carne bovina do mundo, porém, é a do gado criado nos pastos do Brasil. Predominante da raça nelore, a produção nacional atende a vários padrões diferentes — tanto aos das nações mais ricas quanto aos das mais carentes, conforme explica Bruno de Jesus Andrade, diretor técnico do Instituto Mato-Grossense da Carne (Imac), órgão que está no Estado com o maior rebanho nacional.
“Conseguimos produzir tanto a carne que atende aos mais altos padrões da gastronomia quanto aquela de quem tem poder aquisitivo menor, mas quer comer um corte macio, saboroso e com qualidade”, diz Bruno. Graças a essa flexibilidade produtiva, um em cada cinco bifes consumidos no mundo tem origem em pastos do Brasil.
Enquanto Vincent Trébuchet, deputado francês, espalhava fake news no Parlamento de seu país para forçar uma lei que impedisse as importações de comida do Mercosul, homens e mulheres degustavam os bifes brasileiros em 130 destinos internacionais. E a França está nessa lista.
Decisão de risco no Carrefour
Bompard resolveu que a França, ao menos para as lojas do Carrefour, não receberia mais a carne do Mercosul. A decisão foi comunicada em 21 de novembro. Como o Brasil faz parte do bloco, o produto nacional também foi embargado.
Como retaliação, no dia seguinte ao anúncio, algumas empresas resolveram parar com as entregas nas lojas do Carrefour no Brasil. A relevância da produção nacional obrigou Bompard a se desculpar, ainda que sua decisão fosse restrita apenas ao mercado da França — um pequeno traço nas exportações brasileiras, cerca de 0,003%, algo como uma almôndega frente a um boi inteiro.
Apenas os Estados Unidos produzem mais carne bovina do que o Brasil. A diferença de volume entre as duas nações, contudo, fica menor a cada ano — e pode acabar em breve. Em 2024, serão 12,3 milhões de toneladas produzidas pelos norte-americanos e 11,9 milhões de toneladas pelos brasileiros. Há 30 anos, eram cerca de 11 milhões de toneladas ante menos de 6 milhões de toneladas, respectivamente.
Alguns dos maiores grupos frigoríficos do mundo são brasileiros — com filiais exercendo influência em todas as nações com produções relevantes de carne no planeta e sócios que ninguém gostaria de provocar. Bompard se viu com duas bombas sobre a mesa: a instabilidade no mercado brasileiro e a expansão da medida para as subsidiárias planeta afora.
Brasileiros pelo mundo
A lista dos frigoríficos brasileiros ao redor do mundo inclui nomes como JBS, Minerva Foods e Marfrig. É verdade que o primeiro deles também ficou famoso nas páginas policiais, depois que seus principais acionistas, os irmãos Joesley e Wesley Batista, foram acusados e presos em escândalos de corrupção que envolveram o PT. Ainda assim, a empresa é líder global no processamento de proteína bovina, com filiais de destaque em grandes mercados produtores desse tipo de carne, como os Estados Unidos, a Austrália (sétimo maior do planeta) e o Canadá (décimo maior).
A Minerva Foods, por sua vez, é o maior exportador de carne bovina da América do Sul. No continente, além do Brasil, possui frigoríficos na Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Colômbia — fora dele, também tem operações na Austrália. A sede do grupo fica em Barretos, no interior de São Paulo, terra natal dos fundadores da empresa, que permanecem à frente do negócio. Eles têm como sócia a família real da Arábia Saudita, que detém 30% das cotas. A mesma família real é sócia da BRF, empresa controlada pela Marfrig, do empresário Marcos Molina.
A Marfrig é a maior produtora de hambúrgueres do mundo. A parceria de Molina com a realeza árabe promete levar a carne da empresa para o Oriente Médio por meio dos rótulos da Sadia — marca da BRF que se consolidou como uma das principais fornecedoras de proteína animal para o Oriente Médio, bem como para todo o mercado muçulmano. Essa religião é professada por 25% da população do planeta.
Diferentemente do que acontece com os cristãos, os muçulmanos têm diversas restrições alimentares determinadas por seu sistema de crenças. O Brasil tem empresas que são referência em produzir seguindo os preceitos dessa religião. São os alimentos identificados como halal — palavra árabe para “permitido”. É similar à comida kosher, dos judeus, para a qual o Brasil também se destaca como fornecedor.
A proficiência em fazer bem-feito, seguindo critérios de qualidade, tornou a produção nacional também estratégica para empresas globais que não surgiram no país e procuram atuar em vários mercados com características diferentes. Um caso icônico é o McDonald’s. O Brasil é o quarto principal fornecedor de carne bovina para a maior rede de lanchonetes do mundo. Essa mesma rede de restaurantes se orgulha de vender somente produtos que atendam a rigorosos critérios ambientais, ou seja: preservando a natureza — outra atividade que o agro brasileiro faz como ninguém.
De acordo com o Banco Mundial, por volta de 60% do território brasileiro é coberto por florestas. Ao mesmo tempo, a média do planeta é cerca da metade disso — exatamente o mesmo patamar da França, que, aliás, está abaixo dos índices da União Europeia (em torno de 40%).
Produção com preservação
Em média, os produtores rurais brasileiros precisam preservar cerca de 50% da sua propriedade. Em algumas partes do país, a lei determina índices ainda maiores. Os criadores em fazendas na região amazônica, por exemplo, precisam manter 80% da terra preservada — com recursos próprios. Somente quem preserva muito pode produzir.
Ainda assim, por suas grandes dimensões territoriais, a pecuária brasileira tem uma vantagem sobre o resto do mundo: há bastante área para pastagem. Diferentemente do que acontece na Europa e nos EUA, por aqui a engorda é feita com capim, algo que torna o produto mais saboroso e não é fácil de replicar.
Contudo, o agro local não se limitou ao emprego apenas de suas vantagens naturais. Aliás, a própria atividade de criar bovinos é algo que foi importado de outros países e melhorado internamente, uma vez que a espécie não é nativa do país — mesmo o pasto, de certa forma, é um insumo importado.
Coube aos pecuaristas, em parceria com a Embrapa, adaptar tanto o animal quanto o vegetal às condições locais. O trabalho de melhoramento genético foi realizado com o emprego de muita ciência e tecnologia. O resultado é uma potência agroalimentar que produz sem os subsídios do governo e ajuda a garantir a segurança alimentar da humanidade. Na França de Bompard e Trébuchet o agro recebe 10 bilhões de euros (cerca de R$ 60 bilhões) em subsídios todos os anos. Ainda assim, o país teme a competição do Brasil.
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