A redação do artigo 53 da Constituição Federal é clara, literal, sem rodeios: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. O grifo acima é proposital. A última alteração nesse texto foi feita há 23 anos, em dezembro de 2001, pelo Congresso Nacional, onde se formulam leis. O presidente era Fernando Henrique Cardoso, e quem comandava as duas Casas no Legislativo eram o senador Ramez Tebet e o deputado Aécio Neves. Nos últimos tempos — neste mês mais do que nunca —, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu sem consultar ninguém que esse artigo não vale mais.
A truculência contra o Legislativo e o que está escrito na Constituição começou em 2021 com o então deputado Daniel Silveira — que segue preso, mesmo depois de um indulto presidencial, porque o ministro do STF Alexandre de Moraes assim o quer. Agora, outros dois parlamentares correm o risco de ter o mesmo destino se ninguém aplicar o que diz a lei: Marcel van Hattem (Novo-RS) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB). O que todos eles fizeram? Criticaram a conduta de ministros da Suprema Corte e dos dirigentes da Polícia Federal.
O caso de Silveira já é bastante conhecido e remete a comentários de péssimo gosto publicados por ele na internet contra ministros da Corte. Silveira também fez menções em defesa do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um símbolo dos tempos mais duros da repressão militar. A punição chegou em fevereiro de 2021. Ele foi preso pela Polícia Federal, às 23 horas — o que é incomum em ações policiais, realizadas sempre à luz do dia —, em sua casa na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro. A explicação para o horário foi: prisão em flagrante por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Como é impossível remover o que vai parar na rede mundial de computadores neste século, inventou-se o “flagrante perpétuo”.
Silveira ainda teve tempo de pegar o celular e escrever no Twitter: “A Polícia Federal está na minha casa neste exato momento com ordem de prisão. Aos esquerdistas que estão comemorando, relaxem, tenho imunidade material”.
Ocorre que, à época, o deputado não imaginava que, pelas mãos do STF, as coisas estavam mudando no Brasil: começava uma caçada sem precedentes nem fim aos chamados “bolsonaristas”, aliados do presidente Jair Bolsonaro e/ou simpatizantes do conservadorismo. Também não esperava que a Câmara dos Deputados ficaria acuada a ponto de entregar seu mandato ao Supremo. Foram 364 votos a favor da manutenção da prisão, 130 contra e 3 abstenções. Até hoje, essa decisão é comentada nos corredores do Congresso como um erro fatal do Legislativo. Não é difícil encontrar deputados que afirmam publicamente nos microfones ter se arrependido. O artigo 53 da Constituição foi rasgado.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também se arrependeu. Nesta quarta-feira, 27, ele agiu totalmente diferente para defender Marcel van Hattem e Cabo Gilberto Silva. Os dois foram indiciados e são investigados pela Polícia Federal por terem criticado duramente o delegado Fábio Shor — responsável também pelos inquéritos contra Jair Bolsonaro e pela chamada Vaza Jato, peça-chave para implodir a Lava Jato no Supremo.
“Essa fala não é para agredir nem enfrentar ninguém”, ponderou Lira. “Agora a Casa, na sua procuradoria e advocacia, vai chegar aos últimos limites para que responda por abuso de autoridade quem infringir a capacidade dos parlamentares nesta Casa, sejam eles quais forem.”
Foi a mais contundente fala do presidente da Câmara em anos. Disse que observa com preocupação as “recentes investidas da Polícia Federal para investigar parlamentares por discursos proferidos em tribuna”. Foi aplaudido no plenário e nas redes sociais. “A imunidade material é um direito inalienável de cada parlamentar e ela há de ser absoluta para manifestações feitas na sagrada tribuna desta Câmara.”
Lira também fez cálculo político: ele está de saída da presidência da Casa, sabe que vai virar mais um entre 513 deputados a partir de fevereiro e que precisará de base eleitoral em 2026 contra seu arquirrival Renan Calheiros (MDB-AL). Há anos, os dois travam uma briga regional típica do velho Brasil. Como Renan tem o apoio de Lula, Arthur Lira flerta com o eleitorado mais conservador, principalmente depois que o Judiciário tirou Fernando Collor de Mello do jogo.
Se a micropolítica for deixada de lado, por que a fala de Lira é tão importante para o Brasil? Porque a Polícia Federal, a serviço dos ministros do Supremo Tribunal Federal, atacou pilares da democracia constitucional no caso de van Hattem. Como um deputado pode responder por crimes contra a honra de um delegado, se deveria estar blindado pela tribuna — justamente a imunidade para “parlar” em nome dos seus eleitores? Mais: o que disse de tão grave o deputado? Ele afirmou que o delegado “cria relatórios fraudulentos para manter preso” Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro, “e que a prisão foi ilegal e sem fundamentação”.
Martins passou seis meses preso, acusado de viajar para os Estados Unidos na virada de 2023, enquanto ocorreria no Brasil uma quartelada — com tomada de poder sem pólvora, envenenamento do presidente Lula e enforcamento de Alexandre de Moraes em praça pública. Nem a viagem nem o golpe de Estado ocorreram, mas Filipe Martins foi preso mesmo assim. Agora, ele é acusado de fraudar o severo processo de entrada de estrangeiros nos Estados Unidos. A Polícia Federal diz que o ex-auxiliar de Bolsonaro fazia parte do “núcleo jurídico de um golpe” em curso em Brasília. O caso de Martins é kafkiano. Foi contra essa trama irreal que van Hattem reclamou na tribuna da Câmara, como qualquer parlamentar sempre fez. Mas ele desceu dela indiciado por calúnia e difamação contra o delegado.
O problema de Alexandre de Moraes e da maioria dos ministros que o acompanham é a palavra “quaisquer” no artigo 53 da Constituição. A Corte agora quer determinar o que um congressista pode ou não falar, especialmente o tom e os assuntos — por exemplo, o processo eleitoral ou as vacinas contra a covid-19 devem ser proibidos. Paralelamente, também querem calar os pagadores de impostos nas redes sociais, conforme debatido no plenário do tribunal nesta semana.
O presidente do Partido Novo, Eduardo Ribeiro, fez uma boa leitura das prioridades dos ministros. “O STF tem mais de 200 ações aguardando julgamento há mais de oito anos”, afirmou. “Algumas estão paradas há mais de uma década, e há casos sem decisão há mais de 30 anos. Mesmo assim, decidiu regular as redes sociais sob a justificativa de que o Congresso foi omisso. É vergonhoso que o Congresso assista a esse golpe contra a liberdade de forma tão submissa e complacente.”
O Congresso brasileiro só se move quando leva um chacoalhão da sociedade. Não se sabe se agora reagirá — se depender do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não vai. Mas é fato que a declaração de Arthur Lira tem peso. “Que fique claro: nossa voz é a voz do povo, e ela não será silenciada”, disse ele.
A receita para a volta da normalidade institucional não é nova: a política sempre encontrou seus caminhos, mais ainda desde que Brasília existe. Ela só não pode ser feita em tribunais nem com delegados de polícia. Política se faz no voto popular — ou seja, no Congresso Nacional e no governo.
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