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Edição 246

O Vale do Silício brasileiro

Empreendedores fazem uma revolução tecnológica silenciosa em São José dos Campos e pretendem transformar a cidade num polo global de inovação

Fábio Bouéri
Fabio Boueri
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Quem passa pelo quilômetro 138 da Rodovia Presidente Dutra, sentido São Paulo-Rio de Janeiro, provavelmente não imagina que nesse endereço ocorra uma revolução silenciosa. Sob duas grandes cúpulas e por trás de uma extensa fachada envidraçada, um complexo de 188 mil metros quadrados abriga centenas de cientistas, engenheiros e empreendedores em busca de soluções para mudar o rumo das empresas e da gestão pública no Brasil.

Vizinha da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e de indústrias como Embraer, General Motors, Nestlé e Ericsson, o Parque de Inovação Tecnológica (PIT), em São José dos Campos, é uma espécie de fábrica de ideias onde mais de 450 empresas constroem o que imaginam que será, no futuro, um Vale do Silício made in Brazil.

Tecnologia e vocação industrial

Assim como na Califórnia, onde nasceram gigantes da tecnologia mundial, o modelo nacional projeta colocar em breve no mercado alguns unicórnios, isto é, negócios com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão. “Queremos tornar o PIT um polo global de ciência, tecnologia e inovação”, afirma o presidente do parque, Jeferson Cheriegate.

O que se vê nesse complexo são iniciativas que rompem fronteiras e aproximam o PIT do seu maior propósito. “Se fizermos um jogo bem jogado, o Vale do Paraíba ficará maior do que o Vale do Silício”, acredita Cheriegate. A visão pode parecer ousada, mas tem uma razão plausível. “Estamos unindo uma base tecnológica fortíssima a uma vocação industrial histórica”, observa.

Jeferson Cheriegate, presidente do Parque de Inovação Tecnológica (PIT), em São José dos Campos (SP) | Foto: Divulgação/PIT
Jeferson Cheriegate, presidente do Parque de Inovação Tecnológica (PIT), em São José dos Campos (SP) | Foto: Divulgação/PIT

Cheriegate explica que, embora a maior parte (70%) do capital de risco dos investidores flua para empresas de inovação no universo digital, as soft techs, é fundamental considerar a importância das hard techs, que são as novidades tecnológicas aplicáveis a indústrias tradicionais, como as que fabricam e vendem aviões, carros e alimentos.

Desafio é transformar ideias em negócios

Nesse sentido, o papel do PIT é transformar ideias em negócios ao conectar cientistas e jovens empreendedores a empresas que tenham demandas urgentes e específicas. Essa harmonização de interesses entre quem produz inovação e quem compra soluções para a vida real das empresas vem desenhando alguns potenciais unicórnios brasileiros, conforme prevê o presidente do PIT. Um exemplo é a startup SIATT, sigla para Sistemas Integrados de Alto Teor Tecnológico. A empresa fabrica estruturas de defesa e segurança, com foco em armamentos inteligentes.

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“Fui o primeiro da empresa a ocupar uma mesa em uma pequena salinha aqui do PIT”, lembra o sócio Robson Duarte, que já empacota seus pertences rumo a uma nova casa. Em breve, a área de produção da SIATT ocupará um terreno de 800 mil metros quadrados em Caçapava, no Vale do Paraíba.

O impulso da SIATT tem relação direta com o apoio do governo federal. Afinal, ter as Forças Armadas como cliente é questão de sobrevivência e de lastro comercial. Assim, a SIATT conseguiu avançar no desenvolvimento de produtos como o ManSup, um míssil antinavio que neutraliza forças inimigas no mar.

Um negócio de R$ 3 bilhões

Esse tipo de produto atraiu altas cifras de investimento estrangeiro, em razão da eficiência militar e do potencial de retorno econômico. Para se ter ideia, o Grupo Edge, estatal dos Emirados Árabes Unidos, aportou R$ 3 bilhões para comprar metade da SIATT.

A base tecnológica ajuda a SIATT a desenvolver também mísseis de maior alcance e versatilidade, o que chamou atenção do Catar, um forte consumidor de equipamentos militares. Outra linha de frente comercial negocia a venda de sistemas de armas portáteis ou acopladas a veículos de lançamento, capazes de fazer ataques terrestres ou marítimos contra tanques e embarcações. Diferentemente das armas mais tradicionais, esses novos produtos têm sistemas de guiamento. Ou seja, um operador determina o objetivo do míssil com margem de erro inferior a 20 metros.

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Com isso, a SIATT começa a ocupar espaço em um mercado não atendido por Estados Unidos e França — que não querem reforçar eventuais inimigos — e acostumado a comprar equipamentos menos eficientes, em que diversos bombardeios são lançados sem garantia de precisão.

A ideia de juntar cientistas, jovens empreendedores e empresas maduras em um mesmo espaço produz fatos curiosos, como a virada de mesa protagonizada pela startup ID-Subsea. Concebida para criar e vender produtos de inspeção submarina, por meio de robôs e com foco no mercado de óleo e gás, a ID-Subsea vislumbra hoje um novo horizonte. Parte dessa perspectiva deve-se a uma visita de engenheiros e executivos da Nestlé ao PIT.

Do petróleo ao leite em pó

Os representantes da empresa suíça viviam um problema sério. Para evitar o risco de contaminação do leite em pó vendido aos clientes, os tanques de armazenamento do produto precisavam ser religiosamente inspecionados. O objetivo era executar manobras de limpeza e detectar eventuais trincas que pudessem gerar focos de impurezas.

Mais de uma vez a Nestlé teve de descartar toneladas de leite em pó em virtude de descobertas de contaminação. O trabalho preventivo exigia um esforço artesanal: um funcionário sempre precisava escalar de rapel um funil com 30 metros de altura.

A empresa suíça foi apresentada aos engenheiros da ID-Subsea, que logo resolveram o problema. Para tanto, adaptaram uma solução usada nos serviços de inspeção marítima. Um robô, ajustado às necessidades do cliente, passou a fazer o serviço de forma mais segura, precisa e barata. Na Europa, a solução custava US$ 25 milhões; no Brasil, saiu por 10% desse valor.

“Percebemos que uma linha de negócio pode se multiplicar conforme a tecnologia, a adaptação e o encontro de oportunidades”, afirma o diretor da ID-Subsea, Renan Ocampo, que agora tem o próprio cliente como vizinho — a Nestlé abriu escritório no PIT. 

A ideia que nasceu de um problema em Angola

Outro caso emblemático é o da Dom Rock, que usa inteligência artificial para compreender dados e gerar cenários para as tomadas de decisões. Seu fundador, André de Almeida, soube transformar um desafio em oportunidade. Em 2012, como executivo de uma multinacional na área de telecomunicações, foi para Angola ajudar a organizar a operação local. Sua primeira medida foi realizar uma pesquisa de mercado para entender os clientes. “Não dava para fazer pesquisa em Angola com formulários, em razão do alto índice de analfabetismo”, diz Almeida.

Almeida relata, então, que o único jeito foi gravar a voz das pessoas. “Se de um lado eu pegava uma informação qualificada, de outro havia o altíssimo custo da operação, o gasto de tempo e o risco da interpretação”, afirma. Almeida decidiu apostar na tecnologia para compreender os chamados dados não estruturados, como áudio, texto e imagem. “Criamos uma tecnologia capaz de gerenciar todo esse universo de dados.” 

Em 2013, ele foi ao mercado saber se haveria interesse de possíveis clientes em montar uma empresa com essa finalidade. “A Microsoft disse que fazia sentido e me deu US$ 100 mil de espaço na nuvem”, diz Almeida. Doze anos depois, a Dom Rock é um exemplo de startup que soube extrair conhecimento e valor das suas relações dentro do PIT. 

Nesse trajeto de evolução, o negócio captou parceiros como a Algar, um dos maiores grupos do Brasil em tecnologia da informação e comunicação. Em 2025, a Dom Rock deve fincar sua bandeira na Europa como fornecedora de uma multinacional portuguesa no setor imobiliário e de telecomunicações.

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Sede da empresa Microsoft | Foto: Reprodução/Pexels

Na lista dos candidatos a unicórnio 

A poucos metros da Dom Rock encontra-se outra candidata a unicórnio: a Autaza. Por meio de inteligência artificial em robôs e drones, sua tecnologia elimina a subjetividade humana empregada atualmente em tarefas comuns na indústria. A empresa lê, por exemplo, a superfície das latarias dos carros em linhas de produção. Assim, detecta de forma precisa eventuais defeitos, como ondulações ou variações de cores.

A solução deu tão certo que a General Motors chamou a Autaza para trabalhar nos Estados Unidos. O mesmo ocorreu com a Volkswagen, na Argentina, e na aviação, no Brasil. O sistema reduz de três dias para algumas horas a análise da superfície da pintura das aeronaves.

Tragédias em São Sebastião e no Rio Grande do Sul

Quem percorre os corredores do PIT encontra escritórios do Detran e do Metrô, entre outras estatais. Elas estão ali para beber da fonte das pesquisas que os profissionais conectados ao parque produzem diariamente.

O Centro Nacional de Monitoramento de Alertas e Desastres Naturais (Cemaden), por exemplo, instalado no PIT, foi o primeiro órgão a avisar sobre a iminente tragédia em São Sebastião, no litoral paulista, em fevereiro de 2023. Um ano depois, o mesmo Cemaden alertou, em primeira mão, sobre as chuvas que iam devastar parte do Rio Grande do Sul. Ou seja, os cientistas e técnicos cumpriram o seu papel. 

Novos planos

Com uma receita anual superior a R$ 70 milhões, o PIT vai inaugurar em 2025 um novo centro empresarial para abrigar mais 25 empresas. Outra iniciativa é o lançamento de dois novos setores, mobilidade e saúde, que se juntarão aos já existentes nas áreas aeroespacial, agronegócio e tecnologia da informação.

Essas medidas visam a expandir as práticas de inovação. “Queremos que o mundo perceba a nossa existência”, diz Cheriegate. O executivo ilustrou o raciocínio citando a Boeing, que decidiu abrir em São José dos Campos um centro de engenharia. “A Boeing nos escolheu porque percebeu valor.”

Segundo Cheriegate, é preciso atrair centros globais de pesquisa e desenvolvimento, que vão sinalizar a qualidade do PIT. “É só saber jogar o jogo.”

São José dos Campos (SP) | Foto: Aloir Fernando Teixeira/Shutterstock

Leia também: “Multidão de esquecidos”

2 comentários
  1. Ubirajara garcia
    Ubirajara garcia

    Espetacular.. parabéns, estamos chegando no primeiro mundo.

  2. Felipe Polido Fernandes
    Felipe Polido Fernandes

    Em tempos sombrios, sempre há esperança em algum lugar

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