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Montagem: Revista Oeste/Shutterstock
Edição 246

Ostracismo moderno

Mentalidades autoritárias não querem tolerar qualquer espaço para o contraditório, talvez pela insegurança em suas próprias crenças

Rodrigo Constantino
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Na Grécia Antiga, uma forma dura de punição a cidadãos atenienses que supostamente tivessem ameaçado a ordem pública era o ostracismo. O sujeito era banido da cidade e precisava ficar em exílio por uma década, o que quase sempre significava sua morte, já que ficava sem a proteção de sua cidade-estado. Para compreender como se tratava de uma punição extremada, basta lembrar que Sócrates teve a opção do ostracismo, mas se recusou a sair de Atenas, preferindo a sentença de morte por cicuta, veneno muito utilizado na época.

A ideologia woke pratica uma espécie de ostracismo nos tempos modernos. A esquerda descobriu que, melhor do que eliminar fisicamente seus oponentes, era eliminá-los do convívio social. A cultura do cancelamento visa exatamente a esta finalidade: ostracizar a pessoa ao ponto de tornar sua vida um caos. E não se trata aqui “apenas” do cancelamento nas redes sociais, do expurgo de certos círculos sociais, mas de um afastamento de qualquer condição de vida normal, incluindo trabalho.

Como os americanos estão protegidos pela Primeira Emenda, o Estado não pode censurá-los por pensamento ideológico. A forma encontrada foi delegar isso às plataformas, que deveriam ser neutras em teoria, mas na prática raramente são. Expressões vagas como “discurso de ódio” ou “fake news” serviram como pretexto para banir aqueles cujas ideias eram inconvenientes aos donos do poder. As agências de checagem foram criadas como instrumentos para validar esse filtro ideológico. Na pandemia isso ficou muito claro, e basta pensar que até Donald Trump foi expulso das redes sociais!

Donald Trump foi banido do antigo Twitter em janeiro de 2021. Apenas em novembro de 2022, Elon Musk, que havia adquirido a plataforma e a rebatizado como X, anunciou a restauração da conta de Trump | Foto: Shutterstock/Anna Moneymaker

A Aliança Global para Mídia Responsável (GARM, na sigla em inglês) é um esforço pioneiro do setor que une profissionais de marketing, agências de mídia, plataformas de mídia e associações industriais para supostamente salvaguardar o potencial da mídia digital, reduzindo a disponibilidade e a monetização de conteúdo prejudicial on-line. O problema, claro, é definir o que é prejudicial, e aqui há claro viés ideológico novamente. A GARM passou a agir como um cartel que se unia para impossibilitar a remuneração de quem ousasse divergir do pensamento dominante “progressista”.

Em entrevista a Joe Rogan, Marc Andreessen explica como isso foi feito no caso dos bancos também. Como o governo não pode discriminar por causa de viés político, ele acabou transferindo aos bancos essa tarefa. O conceito de “politically exposed person” (PEP) faz algum sentido teórico. Na regulação financeira, uma pessoa politicamente exposta é aquela a quem foi confiada uma função pública proeminente. Um PEP geralmente apresenta um risco mais elevado de potencial envolvimento em suborno e corrupção em virtude da sua posição e da influência que pode exercer. Na prática, isso serviu para desbancarizar pessoas com ideias “erradas”.

Juntando tudo isso, temos a combinação perfeita que leva ao ostracismo moderno. Sócrates foi acusado de corromper os jovens e não reconhecer os deuses atenienses. Os conservadores são acusados pelos adeptos da seita woke de rejeitar seus deuses, como a “diversidade, igualdade e inclusão” ou a ideologia de gênero, e de incutir nos jovens “preconceitos” como o Cristianismo. A punição é o exílio, se não físico, ao menos virtual. O que, na prática, dá no mesmo. Sem redes sociais, sem banco, sem remuneração de publicidade, o sujeito que defende as “ideias equivocadas” acaba banido da existência real. O mecanismo de incentivos leva a uma espiral voluntária de silêncio, já que todos temos contas a pagar e família para sustentar.

Essa postura é típica de regimes totalitários. Não por acaso a China possui um sistema para filtrar quem é “bom cidadão” de quem é “rebelde”. O Sistema de Crédito Social é uma espécie de lista negra nacional que está sendo desenvolvida pelo governo da República Popular da China sob a administração do secretário-geral do Partido Comunista da China, Xi Jinping. Na teoria, ele visa a estimular bons comportamentos, como doar sangue ou fazer trabalhos voluntários, enquanto pune comportamentos condenáveis, como violar regras de trânsito, comer em transporte público, fazer reservas em restaurantes e não comparecer etc.

O Sistema de Crédito Social chinês é um sistema de pontuação governamental que avalia o comportamento dos cidadãos com base em suas ações, impactando suas oportunidades e liberdades, como acesso a empréstimos e viagens, e é administrado pelo secretário-geral do Partido Comunista da China, Xi Jinping | Foto: Shutterstock/Octavio Hoyos

Os defensores do Sistema de Crédito afirmam que o sistema ajuda a regular o comportamento social, melhora a “confiabilidade” que inclui o pagamento de impostos e contas em dia e promove os valores morais tradicionais, enquanto os críticos do sistema afirmam que ele ultrapassa o Estado de Direito e infringe os direitos legais de residentes e organizações, especialmente o direito à reputação, o direito à privacidade, bem como à dignidade pessoal, e que o sistema pode ser uma ferramenta para vigilância governamental abrangente e para repressão de dissidência do Partido Comunista da China.

A série Black Mirror tem um episódio que mostra algo similar. Ele retrata um futuro distópico em que as pessoas usam um aplicativo para avaliar as interações umas das outras, e sua pontuação de crédito social determina a classificação da classe. Quanto mais baixa a classificação, mais a pessoa é rejeitada socialmente, financeiramente e no local de trabalho. Até o ponto de você virar um “outcast”, um renegado que precisa viver à margem do sistema e da sociedade. A vida do renegado fica bastante comprometida, ainda que preserve sua liberdade de consciência. Mas o custo é bastante elevado.

Em Nosedive, da série Black Mirror, uma mulher obcecada por melhorar sua pontuação social em uma sociedade onde a classificação das pessoas define seu status, sofre uma queda dramática que a leva à marginalização | Foto: Reprodução

Toda sociedade tem certas regras sociais, escritas ou tácitas. O código de valores morais determina o que seria um comportamento adequado e o que seria considerado rude, perigoso ou condenável. O desafio é encontrar o equilíbrio entre normas sociais e liberdades individuais. Mentalidades autoritárias não querem tolerar qualquer espaço para o contraditório, talvez pela insegurança em suas próprias crenças. Preferem suprimir qualquer liberdade do indivíduo para impor sua ideologia de forma hegemônica. Curiosamente, quem adota essa postura hoje são os mesmos que falam em diversidade e inclusão. Mas, se você ousar discordar uma vírgula de sua forma de viver e pensar, então você precisa pagar o preço do ostracismo. Você se torna tóxico demais para a vida em sociedade. E não reclame muito, pois poderia ser “pior”. Poderia ser o veneno de cicuta!

Leia também “A tutela suprema”

4 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Para a quadrilha PT/STF, crítica é discurso de ódio. E verdade é desinformação.

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O interessante disso tudo é que os que mais oprimem se consideram oprimidos.
    Felizmente grandes corporações estão abandonando esta agenda woke, DEI e ou baboseiras da mesma espécie.
    Mesmo lutando contra o Grande Irmão de Orwell acredito que ainda podemos retornar à normalidade.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Não tem mais campo pra tirania hoje. Eles insistem em retroceder à 8 séculos antes de Cristo, porque querem o mundo pra si e as almas das pessoas também

  4. Marcus Borelli
    Marcus Borelli

    Eu uso em minha vida o seguinte pensamento: “A democracia é o convívio e a aceitação das diferenças”.

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