O pacote medonho recentemente anunciado pelo ministro da Fazenda, entre outros efeitos, confirmou as expectativas de dominância fiscal, amplificou a inflação esperada, derrubou as ações de empresas brasileiras e levou o dólar a se situar acima dos R$ 6. Essas reações, perfeitamente esperadas por quem conhece a boa teoria econômica e acompanha de perto o desempenho desastroso do governo na gestão das contas públicas, reafirmaram, com riqueza factual impressionante, a pobreza colossal de conhecimentos elementares de economia reinante. A incapacidade do governo em fazer os agentes econômicos acreditarem que vai dar um jeito na caótica situação fiscal tem provocado na imprensa uma chuva diária, tão copiosa quanto preocupante, de atestados de ignorância absoluta de um conceito elementar, que deveria ser ensinado ainda nos primeiros anos de escola: o de mercado.
Quando se referem a “mercado” (faço questão aqui das aspas), muitos jornalistas militantes, especialistas farsantes e políticos tratantes dão a entender que estão aludindo apenas ao mercado financeiro e — o que é ainda pior — que o mesmo é formado por um bando de “rentistas” engravatados fumando charutos em seus escritórios da Faria Lima ou em Wall Street, sem qualquer preocupação com o “social” e que vivem de explorar qualquer ser que respira. Contudo, essa ignorância, infelizmente, não vem apenas de gente alinhada com a esquerda, mas também de alguns conservadores que parecem adeptos da tese conspiratória de que os mercados (especialmente o financeiro) são totalmente manipulados por bilionários a serviço de sua causa globalista.
É claro que isso é um equívoco brutal, porque, primeiro, o mercado financeiro é apenas um na infinidade de mercados existentes na economia; segundo, porque sem esse mercado, simplesmente, não seria possível recolher as poupanças — entendidas como renúncias individuais ao consumo presente, na expectativa de poder consumir mais no futuro — e transformá-las em investimentos; e, terceiro, porque sem investimentos e, portanto, sem um mercado para direcionar recursos para a formação de capital não é possível sequer pensar em crescimento sustentado. Para sermos mais diretos: sem mercados captando meios financeiros e direcionando-os para fins produtivos nenhuma economia pode ir para a frente.
O mercado (sem aspas) é, simplesmente, o encontro do desejo de comprar com o de vender, e esse encontro pode acontecer em um local físico, na internet, por telefone ou outro qualquer meio, entre compradores e vendedores em cidades, regiões e países que podem ser os mesmos ou diferentes. A confusão e a deturpação, por ignorância ou propositais, são muito grandes, mas, no entanto, poucas definições são tão simples como essa definição genérica de mercado e, por extensão, a de economia de mercado, que é o sistema social fundamentado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção, em que todos os indivíduos agem por conta própria e pensando em si, mas em que as ações de cada indivíduo, buscando satisfazer as suas próprias necessidades, favorecem as necessidades de outras pessoas.
Ao exercer uma escolha, ou seja, ao agir, cada cidadão serve também a seus concidadãos e é servido por eles. Quando alguém, por exemplo, compra picanha em um açougue, está favorecendo, mesmo sem ser esse o seu objetivo, o açougueiro, a sua família e os seus empregados. Essa definição, além de ser muito acessível e intuitiva, tem o mérito de mostrar que cada indivíduo é simultaneamente um meio e um fim, um objetivo último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir os seus próprios objetivos.
A ciência econômica não se preocupa se os fins são éticos ou não, porque é essencialmente uma ciência de meios, ou seja, seu cuidado se concentra em determinar quais são os meios mais eficientes para atingir determinados objetivos, sem se importar se estes são moralmente bons ou maus. Dizendo de outra maneira: os mercados funcionam sempre, seja para o bem, como o mercado de mamadeiras para bebês, seja para o mal, como o de drogas.
O sistema econômico, tão antigo quanto a civilização, é guiado pelo mercado, que é o elemento que orienta as atividades dos indivíduos para que, buscando a própria satisfação, os possibilitem também a prover, sem coerção ou forçamento, as necessidades de seus semelhantes. Em uma economia de mercado, o aparato social de coerção e compulsão — que é, em síntese, o que chamamos de Estado — não interfere nas atividades dos cidadãos, que são guiadas pelo mercado. Em economias verdadeiramente de mercado, o Estado utiliza o seu poder coercitivo exclusivamente para evitar que os indivíduos pratiquem ações lesivas à sua preservação e ao seu funcionamento, isto é, para proteger a vida, a liberdade e a propriedade do indivíduo contra a agressão violenta ou fraudulenta por parte de malfeitores internos e de inimigos externos. Assim, o Estado se limita a criar e a preservar o ambiente onde a economia de mercado pode funcionar em segurança.
É muito importante, em meio a tanta incompreensão, ignorância e, muitas vezes, má-fé, ressaltar que o mercado não é um lugar, uma coisa concreta ou um coletivo, ou um conjunto de escritórios lotados de computadores com gráficos, ou um monte de gente amalucada berrando em pregões, mas um processo bastante dinâmico, impulsionado permanentemente pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho. É preciso, também, ter em mente que o conjunto de forças que determinam as variações permanentes nas situações de mercado é formado pelos julgamentos de valor formulados pelos indivíduos e pelas suas consequentes ações. A estrutura de preços representa a situação do mercado em cada momento do tempo, determinada pelo conjunto de relações de troca estabelecido pela interação dos indivíduos que manifestam vontade de vender com os indivíduos que expressam desejo de comprar. Por isso, Ludwig von Mises (1881-1973) escreveu:
“Não há nada, em relação ao mercado, que não seja humano, que seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente das ações humanas. Todo fenômeno de mercado pode ser rastreado até as escolhas específicas feitas pelos membros da sociedade de mercado.”
O que é o mercado?
Podemos, então, definir o mercado como um processo de ajustamento das ações individuais dos milhões de cidadãos que formam uma sociedade aos requisitos da cooperação mútua e podemos também afirmar que os preços de mercado, determinados sem a interferência do governo por esse processo de ajustamento, informam aos produtores quais bens e serviços devem ser produzidos, como devem ser produzidos e que quantidades devem ser produzidas. Em resumo, os mercados são elementos sinalizadores, pedras angulares ou fulcros para onde convergem e de onde se irradiam as escolhas dos indivíduos. Quaisquer que sejam as atividades econômicas, elas sempre são resultantes das ações ou escolhas individuais que vão sendo feitas no decorrer do tempo nos mercados e quase sempre em condições de incerteza, uma vez que o nosso conhecimento de todas as variáveis relevantes para cada escolha, além de ser na imensa maioria das vezes imperfeito, está distribuído desigualmente entre os milhões de indivíduos participantes dos mercados.
Essa limitação do conhecimento, que se traduz em informações incompletas e na possibilidade de ocorrência de alterações nas preferências, na tecnologia e nos recursos, reflete-se também nos planos de ação dos participantes do mercado. Assim, os agentes econômicos não apenas são parcialmente ignorantes, mas as informações que possuem em cada caso são diferentes e, não raro, contraditórias e, além disso, as expectativas que formam a respeito do futuro são, em boa parte, divergentes. Esse problema, que Friedrich Hayek (1899-1992) denominou de dispersão do conhecimento, é considerado por ele como uma das questões centrais a serem consideradas pela ciência econômica.
Ao fazermos uma escolha qualquer, levamos em conta todos os seus custos e benefícios, com todos os componentes objetivos e subjetivos envolvidos, e tomamos a decisão na suposição de que, naquele momento, aquela opção é a que parece ser a melhor dentre todas, no sentido de aumentar a nossa satisfação. Não poucas vezes, contudo, com o decorrer do tempo, descobrimos que as coisas não correram como achamos que iam correr e que, portanto, teria sido melhor se tivéssemos feito outra escolha. Em outras palavras, cometemos erros, e esses erros serão revelados, mais cedo ou mais tarde. Por quem? Pelo mercado.
É o mercado, portanto, um processo de permanentes descobertas, de tentativas e erros, o qual, ao amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado de coordenação plena (que em teoria chamamos de equilíbrio de mercado) jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele. A Escola Austríaca nos ensina, realisticamente, a enxergar os mercados como processos de coordenação, que tendem ao equilíbrio, embora não o alcancem, rechaçando tanto o extremo do equilíbrio geral quanto o do subjetivismo extremado que levaria a um verdadeiro caleidoscópio, com base no argumento — bastante plausível — de que os indivíduos, ao atuarem nos mercados, se defrontam com circunstâncias que nem são fixas e nem, tampouco, mudam incessantemente, o que lhes permite descobrir gradualmente quais são as alternativas que tendem a aumentar sua utilidade, superando assim paulatinamente a limitação de seu conhecimento.
A verdadeira natureza do mercado
Tendo em mente tudo o que foi escrito e observando os fatos, podemos formular importantes perguntas: por que o dólar disparou, a inflação estourou a meta, a expectativa de inflação e os juros futuros subiram e o risco de uma situação de dominância fiscal é iminente?
Quem entende a verdadeira natureza do mercado certamente não vai discordar desta resposta: o dólar, a inflação atual e esperada, os juros futuros e o risco fiscal subiram porque o mercado (sem aspas), mesmo com todas as suas imperfeições, concluiu acertadamente que seria assim.
Vimos que nem sempre o mercado está certo, mas desta vez, seguramente, ele está, porque todas as variáveis relevantes apontam para esses efeitos, como a gastança desenfreada do governo, as críticas sistemáticas de vários de seus integrantes e porta-vozes à austeridade do Banco Central, a ausência de familiaridade do ministro da Fazenda com os princípios mais rudimentares de economia, a visão econômica rupestre do Partido dos Trabalhadores e o anúncio desastrado de um pacote supostamente austero sendo acompanhado por uma bondade política de renúncia de receitas. O mercado, portanto, está certo. A culpa não é do “mercado”, ela é — cem por cento — do governo.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
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O óbvio não deve ser dito, deve ser gritado. O professor gritou alto. Para o nosso próprio bem, esperemos que muitos o ouçam.