A médica capitão de mar e guerra Gisele Mendes de Souza e Mello havia acabado de entregar medalhas a militares do Serviço de Saúde da Marinha, quando recebeu um tiro de fuzil na cabeça, na terça-feira, 10. Estava no Hospital Marcílio Dias, a principal instituição de saúde da Marinha do Brasil, no Rio de Janeiro. Mas foi como se estivesse em um hospital de campanha, em plena guerra. Na verdade, ela estava no campo de batalha do Rio de Janeiro, onde o inimigo ocupa territórios que já não estão sob a soberania do Estado brasileiro. A arma que a matou certamente veio do exterior, atravessando a fronteira — o mesmo lugar por onde passa a droga vendida nas cidades brasileiras, cujo faturamento é utilizado para comprar as armas e munições que sustentam um exército fora da lei, desafiando as Forças Armadas e as polícias do Brasil. Nossa defesa nacional, patrimonial e pessoal está cada vez mais enfraquecida, por falta de meios e de pessoal. E falta de vontade das autoridades. A polícia é difamada pela mídia, e perdem recursos e soldados a Marinha, o Exército e a Forca Aérea.
Paulo é filho de um amigo meu, comandante da Latam. No Dia dos Pais de 2019, aconteceu um fato histórico na cabine de comando do voo Porto Alegre-São Paulo-Brasília-Salvador, ida e volta, pai e filho pilotando. Paulo como copiloto do pai, em uma homenagem da escala, comemorando com os passageiros o dia festivo. Paulo é um dos muitos pilotos que deixaram a FAB. Ele servia, como capitão aviador, na Base Aérea de Natal, quando pediu para sair, atraído por melhores oportunidades fora do serviço público militar. Depois dele, outro capitão da mesma turma, piloto de caça, saiu, chamado pela Boeing. Como esse, seis pilotos de caça, formados a custos elevadíssimos. Perderam a motivação e deixaram a Força Aérea, indo para a Latam.
A CNN fez um levantamento e constatou que a evasão é crescente nas três Forças, e não apenas com pilotos de caça. Fuzileiros, médicos, engenheiros navais deixaram a Marinha; o Exército teve 346 pedidos de baixa no ano passado e neste ano deve ter mais. Nos últimos dez anos, Exército e Marinha perderam mais de 5 mil militares altamente preparados, com cursos acadêmicos e especialidades, todos custeados pelo imposto público. O soldo é pouco, e eles vão em busca de salários compensadores. Além disso, eles não têm hora extra, não têm adicional noturno, ou de periculosidade, ou de insalubridade. Mais do que isso, juram dar a vida pela defesa da pátria. Uma atividade que não comporta idoso e cuja idade de aposentadoria o governo quer elevar. Defesa da pátria depende de vocação, motivação e vigor físico — mas muitos se veem como futuros burocratas e desistem.
Fui ver em Brasília, no Centro de Convenções, uma gigantesca mostra da base industrial de defesa. Passei um dia lá e descobri que eu, jornalista, estava desinformado sobre a pujança do setor, criador de tecnologia de ponta. Imagine que duas empresas brasileiras estão desenvolvendo um míssil hipersônico, como o Rato 14-X, com oito vezes a velocidade do som, como aquele com que Putin ameaça a Ucrânia; um radar que cobre todas as 200 milhas do nosso mar territorial, atraído pela salinidade da água; outro que não pode ser destruído porque não é detectável; equipamento de controle de tráfego aéreo; aviões, no Rio Grande do Sul, que gastam menos combustível num voo Porto Alegre-Brasília que um automóvel; drones e veículos aéreos não tripulados; armas portáteis entre as mais procuradas nos Estados Unidos; fuzis que disputam concorrência para abastecer um dos maiores exércitos do mundo; pesquisa nuclear no país de imensas reservas de urânio e metais pesados; simuladores de submarino, aviões e artilharia; veículos blindados de qualidade mundial; protetores que podem formar domos sobre estádios, espaços críticos ou presídios; equipamentos policiais, como blindagens, algemas, visores noturnos; criptografia para detecção e comunicação; uniformes inteligentes que detectam desidratação, desequilíbrios corporais, febre, liberam assepsia para ferimentos; e equipamentos médicos, que vão de torniquetes a cadeiras de campanha para dentista, como as que o Exército dos Estados Unidos comprou — e estou me esquecendo de muito mais, inclusive do que é usado para dissuadir Maduro a entrar em nosso território se tentar invadir a Guiana.
Tudo isso abastece países para garantirem sua soberania e a vida e o patrimônio de seus cidadãos e empresas. Por ironia, o país onde tudo isso é produzido, com grande avanço tecnológico, carece de meios para se defender como Estado e como nação. Por nossas fronteiras entram armas e drogas que levam guerra para dentro de nossas grandes cidades. Nossas Forças Armadas recebem cada vez menos recursos para adquirir meios dissuasórios que façam respeitar nossa soberania e nossas Amazônias — a verde e a azul —, assim como nossa fronteira, e perdemos cada vez mais nossos militares mais valiosos. Além disso, perdemos cérebros jovens e brilhantes que são atraídos por melhores oportunidades nos Estados Unidos. O que vale para dissuadir possíveis agressores da pátria vale também para dissuadir os que nos assaltam nas ruas, lares e empresas. Com Forças Armadas e polícias enfraquecidas, não temos paz que garanta o trabalho que gera progresso e bem-estar. Um paradoxo para este país imenso mas ingênuo a respeito de seu potencial.
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As ffaa tupiniquins nunca estiveram com o prestígio tão ao nível dos meios-fios pintados dos seus quartéis como atualmente. Milhões de brasileiros se sentem traídos por elas ao permitirem que o país fosse entregue a uma organização criminosa.