Às 22h05 (hora local) de quinta-feira, dia 5 de dezembro, um foguete Falcon 9 foi lançado da base aérea de Vandenberg, na Califórnia. O Falcon deixou uma carga de satélites Starlink em órbita baixa e minutos depois voltou para “pousar de pé” em uma base da SpaceX no Pacífico.
Não foi um lançamento de satélites como tantos outros. Elon Musk postou no X: “A primeira constelação de satélites Starlink com conexão direta a celulares já está concluída. Isso permitirá que celulares não modificados tenham conectividade com a internet em áreas remotas. A largura de banda por feixe é de apenas ~10 Mb, mas constelações futuras serão muito mais eficientes”.
Para entender melhor esse marco, é bom viajar um pouco para o passado.
O ano do Telstar
Samuel Morse inventou o telégrafo em 1837. Foi o primeiro sistema a transmitir instantaneamente mensagens (por sinais) a longas distâncias. O telefone foi oficialmente criado em 1876, por Alexander Graham Bell, e no início era preciso pedir a ligação à telefonista. E as ligações ficavam dentro dos limites de cada cidade. A expansão das linhas para outras regiões foi um longo processo.
Foi só em 1956 que entrou em operação o primeiro cabo submarino transatlântico, chamado TAT-1. Mas o pedido para uma ligação internacional tinha que ser feito por operadora e custava uma fortuna.
Na década seguinte, em 1962, o mundo ficou deslumbrado com o Telstar, o primeiro satélite de comunicações globais. Era um conceito completamente novo imaginar que os sinais de telefone (e TV, rádio etc.) podiam ser transmitidos de um aparelho girando sobre nossas cabeças, tão longe que ficavam invisíveis. A humanidade começava a se desligar das conexões físicas, tão custosas e de complicada instalação. O salto foi tão marcante que uma música chamada Telstar virou um grande sucesso mundial com The Ventures.
Iridium, a pioneira
No início dos anos 1990 veio a grande onda de popularização dos celulares — ainda na fase 2G (ou segunda geração). Eram enormes e dependiam de redes de acesso. Mesmo móveis, precisavam — como até hoje — da cobertura das torres das operadoras.
Em novembro de 1998, uma empresa chamada Iridium lançou um novo conceito de comunicação móvel. Através de uma rede de satélites orbitando a baixa altitude, seus celulares estavam conectados sem a necessidade das torres das operadoras. Mesmo que o usuário estivesse combatendo no Afeganistão ou escalando uma montanha nos Andes, estaria conectado ao mundo. Desde que usasse os aparelhos da empresa.
Mas havia um sério problema nessa empresa — o preço dos serviços e dos equipamentos era absurdamente alto. Tanto que a Iridium declarou falência antes de completar o primeiro aniversário. Em 2001, ela foi vendida e voltou à ativa. Aí já enfrentava a concorrência de empresas como Globalstar e Thuraya.
Você certamente viu um desses aparelhos da Iridium em filmes sobre operações militares e espionagem. Vilões combinavam seus grandes planos de chantagem por meio desses celulares grandões, com antena grossa. Grupos militares de operações especiais atuando em desertos se comunicavam com seus comandantes por esses aparelhos.
Mesmo funcionando, esses serviços continuaram restritos — pelo preço — a grandes empresas, instituições de pesquisa avançada, governos e militares. Já o cidadão comum que viajava para outro país geralmente tinha que comprar um chip da operadora local quando chegava ao aeroporto. Muitos ainda compram.
A era do celular (quase) global
Hoje o brasileiro já pode comprar planos de celulares internacionais e sair conectado pelo mundo como se estivesse em casa. A operadora Claro possibilita conexões com “mais de 110 países”, da África do Sul ao Vietnã. A Vivo fala em 175 países, mas não esclarece quais são.
É um salto gigantesco em comparação aos tempos das ligações para o vizinho via telefonista. Mas esses planos internacionais não representam propriamente um avanço tecnológico. São acordos entre operadoras desses países todos. O brasileiro sai de casa, se conecta automaticamente com a operadora uruguaia, depois com a operadora argentina, e assim por diante.
É por isso que o voo do Falcon 9 no dia 5 de dezembro fez a diferença.
O empresário Elon Musk está usando sua rede de 6 mil satélites Starlink para distribuir sinal de internet onde não existe sinal (e pretende chegar a 42 mil satélites). Se não fosse o Starlink, a rede provavelmente não chegaria ao coração da Amazônia ou a fazendas da região central do Brasil.
Essa nova leva de satélites da Starlink vai permitir um novo passo: a conexão direta do satélite com o celular. Se você estiver atravessando o Deserto de Gobi, na Mongólia, e precisar passar um Pix para alguém, bastará tirar seu celular do bolso, como se estivesse na Avenida Paulista ou na Praia de Pajuçara, em Maceió. E qualquer celular. Não vai precisar usar aquele tijolão de antena grossa usado pelos vilões dos filmes de James Bond.
Mais tecnologia, mais liberdade
Ainda não chegamos lá. A primeira experiência de aplicação desses celulares conectados diretamente com os satélites Starlink está acontecendo no estado da Califórnia, e mesmo assim apenas para mensagens de texto. Só no ano que vem começará a ser possível usar essa conexão para voz e dados.
Mas podemos ter a certeza de que essa tecnologia se espalhará pela Terra na velocidade de Elon Musk. Mais tempo, menos tempo, estaremos instalando em nossos celulares o aplicativo da Starlink, ou outro serviço por satélite. Ao mesmo tempo, provavelmente nos desligaremos das atuais operadoras, que terão que se reinventar.
No momento em que cada um de nós estiver conectado diretamente a um satélite em órbita, a possibilidade de controle vai ficar muito mais complicada para ditadores em geral. Lembre-se de que a censura ao X só se concretizou quando as operadoras foram ameaçadas e tiveram que tirar a rede do ar. Somando a conexão a um satélite com o uso de um aplicativo VPN, essa censura não fica impossível, mas se complica bastante.
É só o começo
O mercado de celular por satélite ainda está muito no início e tem um valor de US$ 960 milhões. Segundo o site Business Research Insights, até 2032 esse valor deverá subir para US$ 1,27 bilhão — o que ainda parece pouco pelo potencial desse segmento. Com seus 6 mil satélites, a Starlink é evidentemente a líder global, mas muitas outras empresas estão na parada: Mavenlink, Hubstaff, Workamajig, AgencyHub, SpiraPlan, Producteev, Planscope, Brightpod, RoboHead, Scoro, Eutelsat OneWeb, Project Kuiper (da Amazon) e AST.
O Brasil foi bem na instalação do sistema 5G. Será que vai conseguir o mesmo sucesso com o celular por satélite com o governo implicando com Elon Musk e fazendo acordo com a estatal chinesa SpaceSail, que tem apenas 54 satélites em órbita?
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ESSA BRIGA PROMETE.
Até lá, o Brasil “decente” estará de volta.