A queda abrupta do regime de Bashar al-Assad na Síria, depois de mais de 50 anos de poder absoluto da família, pegou o mundo de surpresa. Em apenas 12 dias, as forças rebeldes, em uma ofensiva rápida e estratégica, tomaram Damasco, a capital, e desmantelaram um regime que parecia imbatível.
A mobilização dos rebeldes, comandados pelo Hayat Tahrir al-Sham (HTS, “Organização para a Libertação do Levante”), se aproveitou do isolamento do regime.
Até o último instante, o presidente Bashar, no poder desde o ano 2000, resistiu com soberba em seu palácio de luxo, mas já sem o apoio de seus dois maiores sustentáculos: o Irã e a Rússia, que, com o auxílio do Hezbollah, formavam o Eixo da Resistência.
A derrocada da ditadura síria uniu dois pontos que para muitos pareciam distantes: a guerra na Ucrânia e os ataques de 7 de outubro do grupo terrorista Hamas.
Os ataques de 7 de outubro foram o começo do fim de Bashar. A partir da transferência da guerra para o norte de Israel, com bombardeios do Hezbollah em apoio aos terroristas de Gaza, a reação de Israel devastou a infraestrutura do Hezbollah.
Já o Irã, em resposta à morte de líderes da Guarda Revolucionária em Damasco, atribuída a Israel, lançou dois ataques com mísseis de longo alcance contra o país judaico. A maioria deles foi interceptada. Em retaliação, Israel realizou operações de alta precisão, destruindo bases iranianas e grupos aliados no Líbano, Gaza e Síria.
Essas ações acabaram com boa parte da infraestrutura militar financiada pelo Irã e comprometeram seus recursos estratégicos, o que enfraqueceu ainda mais a posição de Teerã na região — segundo a BBC, a mídia iraniana estima o total da ajuda do Irã à Síria entre US$ 30 bilhões e US$ 50 bilhões. Dessa forma, ficou fácil a tomada do poder pelos rebeldes na Síria.
“A derrota acachapante do Hezbollah na guerra com Israel representou uma vulnerabilidade do Irã e de seus aliados, mas, ainda assim, impressiona que Bashar al-Assad não tenha percebido o perigo iminente”, afirma João Miragaya, historiador e colaborador do Instituto Brasil-Israel (IBI).
Incômodo para Israel
Durante seu período no poder, Bashar deu continuidade às táticas repressoras de seu pai, Hafez al-Assad, que, depois de dois golpes, em 1966 e 1970, se firmou no comando em 1971. Hafez ascendeu ao cargo por ter montado, quando ministro de Defesa, uma equipe de aliados, perseguido opositores e adquirido controle das Forças Armadas.
Na era de Hafez, a Síria tinha um projeto expansionista. Hafez transformou o conceito de pan-arabismo do Partido Baath. O grupo estava presente em outros países e era a base da República Árabe Unida, da qual a Síria fazia parte até 1961, ao lado do Egito. Em vez de unificá-lo entre as nações árabes, Hafez criou uma vertente síria do partido.
Além de derrotar Israel, ele queria controlar o Líbano, objetivo da Síria desde que ela ficou independente, em 1946.
O governo da Síria teve, por isso, forte influência na guerra civil libanesa (1975-1990), como o movimento Amal e, desde 1982, o Hezbollah, criado como um braço militar do Irã na região. Começava ali a combinação de interesses entre os governos sírio e iraniano.
Nas três últimas décadas do século 20, o interesse de ambos estava em solo libanês. A partir de 2005, com a retirada de tropas sírias do Líbano, por pressão internacional, o próprio regime sírio, repleto de opositores internos e no exterior, se tornou alvo.
Em 2011, ocorreu a Primavera Árabe, quando manifestações pela democracia se espalharam por países árabes, inclusive na Síria. A guerra, então, teve início no país. Isso consolidou a presença do Irã, para proteção de seus interesses, e da Rússia, com sua base naval em Tartus, que sempre deu suporte ao regime.
O Hezbollah, sob ordens iranianas, também ampliou sua atuação para a Síria. O Irã e o grupo terrorista ganhavam mais uma fronteira de onde poderiam incomodar Israel.
Damasco tomada
A guerra na Síria envolveu múltiplos atores: o regime de Bashar e seus aliados, em luta contra grupos rebeldes como o HTS e o Exército Nacional Sírio, com apoio da Turquia.
Também entraram no conflito as Forças Democráticas da Síria, majoritariamente curdas, que ameaçam a Turquia e são apoiadas pelos Estados Unidos. O Estado Islâmico, embora enfraquecido, ainda atua na região.
Situações similares, em que vários grupos disputavam o poder e promoviam o caos, ocorreram com as ditaduras do Iêmen e da Líbia, depois da Primavera Árabe. Mas, diferentemente dessas duas nações, a Síria contava com o suporte de seus parceiros. O que possibilitou a sobrevivência do regime de Bashar.
No Iêmen, o presidente Ali Abdullah Saleh renunciou em 2012, transferindo o poder para seu vice, deposto pelos houthis.
Na Líbia, com o apoio da Otan, o ditador Muammar Gaddafi foi morto pela população. A Líbia permanece sem um governo estabelecido, com facções rivais em conflito.
Na Síria, a tríade Irã, Rússia e Hezbollah sustentou o país nos âmbitos militar e econômico. Com o início da guerra, a produção de petróleo despencou, o turismo acabou, e a indústria foi destruída. A economia passou a depender de uma agricultura de subsistência e da ajuda externa.
O Irã forneceu linhas de crédito para importação de produtos básicos, além de armas e tropas. A Rússia auxiliou na reestruturação de indústrias estratégicas, como petróleo e energia elétrica. Interveio militarmente desde 2015 e deu suporte diplomático na ONU.
A economia síria teve o produto interno bruto (PIB) reduzido em cerca de 85% em relação a 2010, segundo a Capital Economics. As Nações Unidas relatam que 90% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Mais da metade da população enfrenta insegurança alimentar aguda.
Envolto na opulência, Bashar só percebeu que a vida dele e a de sua família estavam ameaçadas quando os rebeldes se aproximavam da capital, com cerca de 25 mil combatentes. Haviam conquistado Aleppo e Homs. Segundo relatos, ele fugiu com familiares e aliados para a Rússia.
Enquanto isso, Damasco era tomada, sob o clamor da população. Os rebeldes desfilaram pelas ruas até chegarem à Grande Mesquita dos Omíadas, onde rezaram.
Houve saques, mas, segundo o Wall Street Journal, os comandantes buscaram controlá-los. “O medo era da presença do regime que agora se foi”, disse Abu Mohammed al-Jolani, líder do HTS. “O país está caminhando para o desenvolvimento e a reconstrução. Está indo em direção à estabilidade, as pessoas estão exaustas da guerra, então o país não está pronto para outra e não vai entrar em mais um conflito.”
Sunitas excluídos
A situação, no entanto, é de instabilidade. Os rebeldes nomearam Mohammed al-Bashir, chefe de um grupo que controlava o noroeste da Síria, para formar um governo de transição.
O histórico do grupo HTS, antiga Frente al-Nusra, que por um tempo foi representante da Al-Qaeda no país, ainda gera suspeitas, afirma Miragaya.
“O HTS surge como principal força política, sobretudo por causa do apoio turco, mas dificilmente os outros grupos abrirão mão do poder”, ressalta o historiador. “A Síria vive um momento-chave, no qual será decidido se o país entrará em um período de reconstrução e relativa normalidade, em um novo estágio da guerra civil, ou se uma ditadura islâmica será instaurada.”
A ditadura síria sempre se baseou no apoio de uma coalizão de minorias — xiitas, drusos, ismaelitas e cristãos — enquanto excluía a maioria sunita do poder. Agora há o risco de fragmentação do país, segundo Danilo Porfírio de Castro Vieira, professor de relações internacionais no Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
“Os sunitas foram alijados do poder, esse é o grande problema”, afirma o professor, que lembra o fato de a família Assad ser alauíta, uma minoria próxima dos xiitas. “O regime, em termos de uso de força, se intensificou a ponto também de prejudicar essa coalizão de minorias. Então, quando se coloca a questão identitária, religiosa, isso prejudica por demais a ideia de unidade.”
O arsenal mantido pelo governo deposto também se tornou uma preocupação. As Forças de Defesa de Israel, assim que o regime caiu, destruíram a maioria dos estoques de armas estratégicas, entre elas armas químicas, usadas por Bashar contra a própria população.
Em 2013, o mundo ficou chocado depois que o regime disparou foguetes com sarin, um agente nervoso altamente tóxico e de efeito rápido, no bairro de Ghouta, em Damasco. Mais de 1,4 mil pessoas morreram.
O objetivo de Israel foi evitar que esse tipo de armamento fosse para grupos terroristas. A parte síria das Colinas do Golã também foi tomada por militares israelenses. Desde a Guerra dos Seis Dias, a região é reivindicada pela Síria.
Parte dela foi anexada por Israel em 1981. Israel, no entanto, afirma que essa ocupação da outra parte é “limitada e temporária”. Mais um capítulo do drama iniciado em 7 de outubro.
Leia também “Irmãos coragem”