Eis que, sem mais nem menos, os virtuosos voltam à Terra. Durante meses, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que não concederia o perdão a seu filho Hunter. “Nós, os íntegros, não jogamos tão baixo”, disse ele. “Respeitamos a decisão do júri. Respeitamos as leis do país. Veja como somos diferentes de Donald Trump, como somos muito mais moralmente imaculados”, gritaram os acólitos dos democratas na mídia tradicional. “Enquanto Trump distribuía perdões como se fossem doces para seus colaboradores desonestos, nós, os únicos justos, os ‘adultos na sala’, jamais sonharíamos em exonerar amigos desonestos à custa da integridade da República. Somos melhores do que isso”, disseram eles. Repetidas vezes.
No entanto, veja só, um indulto foi concedido. Biden voltou atrás. Os júris, ao que parece, não contam muito no fim das contas. A legislação vigente fica em segundo plano em relação à liberdade de Hunter Biden. E as elites presunçosas, que defendiam o presidente que não concedia o perdão como prova de que são uma raça moral melhor que Trump e os plebeus que votam nele, agora se veem chafurdando na lama junto com todos nós. A magnitude do que ele fez realmente parece vertiginosa. Ao descumprir de forma tão espetacular a própria promessa, ao passar suas últimas semanas desse governo decadente emitindo decretos de liberdade semelhantes aos de um imperador para os seus, Biden destruiu as pretensões morais de sua presidência, de seu partido e, sem dúvida, de toda a sua classe.
O perdão é extraordinário. Hunter deveria ser sentenciado neste mês pelas condenações por posse ilegal de armas e sonegação de impostos. Ele foi o primeiro filho de um presidente em exercício a ser condenado por um crime, e parecia certo que passaria um tempo na cadeia. Mas papai o salvou. E foi além. A “Concessão Executiva de Clemência” é abrangente. Ela não apenas elimina os crimes que sabemos com certeza que Hunter cometeu, mas também o protege de ser acusado de qualquer outro delito que possa ter ocorrido nos últimos anos. Como disse o site Politico, o decreto “isola” Hunter de “enfrentar acusações federais por quaisquer crimes que ele possa ter cometido na última década”.
Portanto, é mais do que a clemência que muitos presidentes concederam ao longo da história. Muito mais. Parece uma concessão em estilo romano de status especial ao filho do governante. A criação de um escudo moral em torno de um criminoso condenado apenas com base no fato de que ele compartilha o DNA do presidente, de que ele é um príncipe de sangue da corte democrata. Os democratas realmente deixaram de dizer “não perdoamos nossos entes queridos como Trump faz” para emitir a mais abrangente anulação aristocrática de uma decisão de júri dos tempos modernos. Margaret Love, que era responsável pela análise de pedidos de indulto do Departamento de Justiça, diz que “nunca viu uma linguagem como essa em um documento de perdão”. A não ser no perdão geral de Gerald Ford a Richard Nixon em 1974, claro. Lá também a clemência se estendeu até mesmo a delitos ainda não imputados.
Um tom de Henrique VIII
O fato de Biden ter perdoado o próprio filho, e esse pelo jeito é um dos últimos atos significativos de sua presidência, coloca a República em águas turvas. Para deixar claro, ele não é o primeiro presidente a perdoar um membro da família. O presidente Clinton, em seu último dia no cargo, concedeu um perdão a seu meio-irmão, Roger, que tinha uma condenação antiga por crimes relacionados a drogas. Trump perdoou Charles Kushner, pai de seu genro, Jared Kushner, por vários crimes relacionados a impostos. Ambos os casos levantaram questões éticas delicadas sobre o uso e o abuso do poder presidencial por razões pessoais. E o mesmo acontece com a clemência de Biden para Hunter. Ainda mais. O fato de se tratar de seu próprio filho, e de o rapaz ter sido protegido por um campo de força de quaisquer acusações relacionadas à última década, dá a essa concessão um tom de Henrique VIII.
Até mesmo alguns democratas estão preocupados com o precedente que seu chefe abriu. Ele “errou desta vez”, disse Greg Stanton, o membro democrata do Congresso. Jared Polis, governador do Colorado, foi mais duro. Ele disse que o presidente colocou “sua família à frente do país”. É um “mau precedente ruim”, continuou o democrata, que “infelizmente vai manchar sua reputação”. Enquanto isso, as elites da mídia estão correndo atrás de uma explicação para o fato de Biden ter feito o que eles o elogiaram por não fazer. A coisa mais difícil será lidar com o detalhe de que criticar a suposta ação judicial contra seu filho assemelha Biden a… Trump. Dava para sentir a dor e a perplexidade nas palavras de um repórter da BBC, que parecia abalado com a constatação de que Biden parecia estar fazendo uma “crítica” trumpista ao sistema de Justiça dos Estados Unidos.
O amor é lindo
Esse é o aspecto principal do perdão a Hunter: ele abala os alicerces das elites politicamente corretas. Durante meses, em especial quando ficou claro que sua sorte política estava diminuindo sob uma segunda onda trumpista, os democratas e seus apoiadores na mídia usaram a postura ética do presidente Biden a respeito do filho como prova de que eles ainda desfrutavam de superioridade moral em relação a Trump. Biden descartou categoricamente a possibilidade de um perdão. “Eu acato a decisão do júri… não vou perdoá-lo”, ele afirmou em junho. “Que ícone moral”, gritou a mídia do establishment. Ele fez uma distinção entre “aceitar o veredicto do júri” e os discursos de Trump sobre um sistema judiciário “manipulado”, declarou a CNN. O Politico suspirou ao dizer que o presidente americano se esforçou ao máximo para não interferir na lei. “O amor de Biden pelo filho é lindo”, mas “o amor não inocenta [você]”, afirmou um artigo bajulador do New York Times. Só que isso aconteceu. Se você é filho de um poderoso, que se danem os 12 membros do júri de Hunter que o consideraram culpado — os sentimentos do pai são mais importantes.
Veja, não precisamos ser cruéis em relação a isso. Muitos de nós optariam por salvar um filho da prisão, mesmo que isso significasse voltar atrás em toda a nossa bela postura moral. O problema é que os democratas vincularam sua retidão política ao fato de Biden aceitar as deliberações democráticas do júri. Eles usaram o caso Hunter para se distinguir moralmente dos supostos criminosos sem lei do grupo de Trump. E juraram, de forma incessante, que obedeceriam às regras e restaurariam a normalidade da República devastada por Donald Trump. Mas não o fizeram. Eles acabaram explorando o poder presidencial em benefício próprio como Trump nunca fez. As reivindicações de distinção moral estão em frangalhos. A fantasia de retidão foi exposta como isto: uma fantasia. É por isso que esse perdão é importante.
Parece que a Casa Branca de Biden está sendo tomada por um clima de “os últimos dias de Roma”. Podemos imaginar Jill Biden ainda andando pelos corredores furiosa com a traição de Kamala. E os funcionários murmurando amargamente sobre o estilo “Brutus” de Nancy Pelosi de empunhar a faca contra Joe. Tudo isso enquanto Joe se ocupa de livrar o filho da mesma justiça que jura amar. É o que acontece quando uma elite se afasta cada vez mais do povo: ela começa a governar por si mesma e para si mesma. Poucas vezes a exaustão moral de um governo foi exibida de forma tão franca e sombria.
Brendan O’Neill é repórter-chefe de política da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show. Seu novo livro, After the Pogrom: 7 October, Israel and the Crisis of Civilisation, foi lançado em 2024. Brendan está no Instagram: @burntoakboy
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