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Em seu primeiro ano de governo, o presidente argentino, Javier Milei, implementa reformas para reverter décadas de intervenções estatais, com foco em austeridade, livre mercado e redução do Estado | Foto: Shutterstock
Edição 247

Um ano de Javier Milei

A política econômica de Milei, em contraste com a de Lula, poderá se tornar um exemplo de como um governo liberal e de direita pode beneficiar a população, sem recorrer a populismo barato

Gustavo Segré
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“Sou quem destrói o Estado desde dentro.” Esta é uma das falas preferidas de Javier Milei ao se referir à implosão que pretendia (e ainda pretende) fazer do Estado depois de assumir a Presidência da Argentina.

O autodenominado “anarcocapitalista” está mostrando a que veio com as medidas que tem tomado. E ninguém pode duvidar de que está cumprindo à risca as promessas de campanha. Milei consegue manter um índice de aprovação do seu governo superior a 50% (na última medição chegou a 56%), mesmo com aumento dos indicadores de pobreza, queda da atividade econômica e uma inflação que, embora muito menor do que a de antes de assumir, é considerada alta para os patamares internacionais.

Milei tem mudado a forma de governar o país. Já sua marca registrada, o cabelo despenteado, continua igual. Assim como a despreocupação com a roupa — o que acaba aproximando Milei do eleitor de baixa renda, que o presidente conseguiu “roubar” do peronismo tradicional. Não é incomum ver Milei de terno e tênis cinza ou de jaqueta de couro (a mesma que usava na companha presidencial).

Milei mantém sua aparência “peculiar”, mesmo depois de eleito | Foto: World Economic Forum/Ciaran McCrickard

A Argentina, sem dúvida, voltou aos holofotes internacionais e, pela primeira vez em muito tempo, não está sendo destaque pelas notícias ruins. Pelo contrário. O governo de Milei encontrou uma terra devastada, resultado dos 20 anos de péssima administração dos recursos públicos, interferência do Estado nos preços, regulamentações exageradas em diversos segmentos da economia, subsídios para mais de 50% da população, restrições às importações, tributos para exportações e muita corrupção.

O déficit fiscal (primário) era próximo a 5% do PIB, e o Tesouro Nacional se financiava com letras emitidas pelo Banco Central. O déficit total, segundo Luis Caputo, ministro da Economia, chegou a 17% do PIB. Um verdadeiro desastre.

A base monetária se duplicava a cada dois meses e, como os títulos públicos valiam o mesmo que uma nota de US$ 3, a única forma de financiar tanto déficit era emitindo moeda. Como a inflação ameaçava o poder de compra, os argentinos gastavam os pesos que recebiam o mais rápido possível. Assim, a velocidade da circulação do dinheiro aumentava, e a necessidade de emitir mais pesos chegava a números assustadores.

A Casa da Moeda argentina não dava conta da demanda e, por isso, o governo de Alberto Fernández mandava emitir pesos no Brasil, na Espanha, em Malta e no Vietnã. Foram 16 anos de peronismo e quatro de governo Macri, que deixaram a Argentina entre as piores economias do mundo.

Durante o governo de Alberto Fernández, a impressão de moeda era maior que a capacidade de produção do próprio país | Foto: Frederic Legrand/Shutterstock

Mesmo que as duas medidas mais divulgadas por Milei durante a campanha ainda não tenham sido implementadas (dolarizar a economia e fechar o Banco Central), talvez elas nem precisem ser colocadas em prática — pelo menos no curto prazo.

Medidas tomadas pelo presidente Milei

1. Cortou o gasto público em 5% do PIB. Com isso, reverteu um déficit fiscal crônico para superávit a partir do primeiro mês. Dos últimos 123 anos, a Argentina teve superávit fiscal em apenas dez, sendo que em oito deles isso aconteceu pelo país estar em moratória.

2. Determinou a redução de 18 para nove ministérios e cortou grande parte das secretarias e subsecretarias. Com isso, diminuiu o quadro de funcionários públicos e facilitou a comunicação com os ministros.

3. Eliminou o programa de preços controlados. Milei sempre afirmou que menos intervenção do Estado na economia melhora a vida do cidadão e evita o controle artificial dos preços.

4. Modificou a lei de inquilinato, aumentando a oferta de propriedades em locação. Ele eliminou o controle estatal sobre o aluguel, que fazia com que muitos proprietários não colocassem suas casas para alugar. A nova lei permite a livre negociação entre locador e locatário, tanto no prazo quanto no ajuste e na forma de pagamento. A liberdade é tal que pode ser acordado entre as partes, por exemplo, o pagamento em ovos e o ajuste pelo preço da galinha no mercado central (uma hipótese absurda, porém válida).

5. Derrogou a lei de promoção industrial e comercial. Isso provocou uma queda de 15% na atividade industrial, mas passou a permitir que o mercado se ajuste sozinho, sem que o governo dê prioridade a determinados segmentos “amigos”.

6. Aboliu a lei de compra nacional. Estado, indústrias, comércios, autarquias etc. tinham a obrigação de comprar produtos fabricados no território argentino, mesmo que fossem de pior qualidade e mais caros.

7. Fechou a empresa Télam (equivalente à Empresa Brasil de Comunicação — EBC). Milei afirma que essa empresa era um reduto de militantes de esquerda que não agregava nenhum valor para a sociedade.

8. Colocou em prática a política de céus abertos. Dessa forma, qualquer companhia aérea pode comercializar passagens da Argentina para qualquer parte do mundo e, se desejar, também pode ter rotas internas entre cidades argentinas. Antes, essa opção era monopólio da Aerolíneas Argentinas.

9. Desregulamentou o mercado de energia. Isso provocou um aumento expressivo do valor da energia para a população. No modelo anterior, como as distribuidoras de energia não tinham retorno sobre seus investimentos, o país caminhava para um colapso energético. O objetivo secundário é chamar a atenção de investidores para concessões e licitações futuras.

10. Desregulamentou o mercado de internet via satélite. Esse mercado era de poucos, em geral de conhecidos dos políticos tradicionais. Agora, qualquer pessoa pode contratar o serviço que desejar.

11. Flexibilizou o mercado de trabalho. Dessa forma, facilitou a negociação entre empregador e empregado e a demissão de quem não está produzindo.

12. Eliminou barreiras às importações (no processo e na forma de pagamento). Até a era Milei, quem queria importar tinha de pedir uma licença prévia e, depois, precisava de autorização para pagar (considerando que a diferença entre o dólar oficial e o dólar blue, que regia a economia real, era de 100%, os amigos do poder faziam negócios milionários, prática que favorecia a corrupção). Ao liberar a necessidade de licenças, todos podem importar sem ter que pedir autorização nem pagar propina a ninguém.

13. Eliminou o Imposto para uma Argentina Inclusiva e Solidária (PAIS). Esse imposto havia sido estabelecido pelo governo Fernández e permitia uma arrecadação importante, sob o pretexto da redistribuição de renda.

14. Cortou 32 mil funcionários públicos. O próximo passo é que todos os funcionários façam um exame de conhecimentos em relação à área em que prestam serviços. O corte equivale a quase 10% do total de funcionários públicos ativos.

15. Suspendeu obras públicas. Milei acredita que a prioridade numa obra pública é a corrupção. Portanto, quando obras públicas são cortadas, cortam-se também as propinas. A proposta é que toda obra seja feita pelo setor privado, com contratos de concessão e licitação.

16. Suspendeu a publicidade oficial nos meios de comunicação. A lógica por trás da medida é simples: políticas públicas eficazes não precisam de propaganda para serem percebidas pelo povo, já que seus resultados falam por si. Com essa decisão, cortou-se o fluxo de recursos para jornalistas e veículos de comunicação que se habituaram a depender do dinheiro público.

17. Eliminou intermediários na administração dos programas sociais. Os programas sociais na Argentina tinham “gerentes” que determinavam quem poderia ou não receber a ajuda do Estado. Os beneficiários eram usados para encorpar manifestações. Se o militante não comparecia, a ajuda social era cortada. Uma espécie de chantagem com dinheiro público.

18. Aprovou o chamado protocolo antipiquetes, destinado a coibir bloqueios em estradas e avenidas. O problema havia se tornado tão recorrente que os meios de comunicação, além da cotação do dólar e da previsão do clima, informavam diariamente onde ocorreriam os bloqueios. A prática dificultava o dia a dia dos trabalhadores, impedidos de chegar ao local de trabalho. A nova lei permite o direito constitucional de se manifestar contra o governo, desde que isso não impeça o direito constitucional de ir e vir.

19. Fez, ao todo, 300 modificações, desregulamentações ou revogações de leis, cumprindo sua máxima de que, “quanto menor o Estado, maior o espaço para o setor privado”.

20. Determinou que os presos devem trabalhar para reduzir os custos que representam para o Estado. A ministra Patricia Bullrich inspirou-se no modelo adotado por Nayib Bukele em El Salvador, com o objetivo de diminuir a dependência de recursos públicos para a manutenção do sistema prisional.

21. Reduziu em 90% os tributos existentes na Argentina e introduziu a ideia de concorrência tributária. Embora essa medida dependa da aprovação de um projeto de lei pelo Congresso, o objetivo é eliminar a maior parte dos impostos que, em muitos casos, geram custos de fiscalização superiores à receita arrecadada.

22. Reduziu os juros de 133% ao ano em dezembro de 2023 para 32% em dezembro de 2024. Apesar da queda, a taxa de juros na Argentina permanece negativa em termos reais, uma vez que o rendimento oferecido pelos bancos é inferior à inflação do período.

Resultados

  • O superávit fiscal (primário) de janeiro a novembro é de 1,8% do PIB.
  • O superávit nominal (financeiro) de janeiro a novembro é de 0,5% do PIB.
  • A Argentina saltou do 145º para o 84º lugar entre os países com maior liberdade econômica, índice determinado pela Heritage Foundation.
  • A inflação IPCA passou de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,7% em outubro de 2024.
  • A inflação IGPM passou de 54% em dezembro de 2023 para 1,2% em outubro de 2024.
  • O salário mínimo equivale hoje a R$ 1.680.
  • O dólar paralelo está no mesmo valor que em dezembro de 2023.
  • O dólar paralelo está com valor mais baixo que o dólar oficial.
  • O PIB deve cair 3,5% em 2024 e crescer entre 5% e 7% em 2025.
  • A pobreza, que chegou a mais de 50% da população, começou a cair (segundo a FGV, a Argentina tem menos pobres que o Brasil).
  • A Bolsa de Valores de Buenos Aires, no seu índice Merval, teve valorização de 137% (40 vezes mais que o desempenho da Bolsa de Valores de São Paulo no mesmo período).

O que vem pela frente

E a dolarização da economia argentina?

Essa promessa de campanha não pôde ser concretizada, já que é impossível dolarizar sem dólares. O Banco Central da Argentina possui reservas internacionais líquidas negativas. Embora a situação seja muito melhor do que durante o governo anterior, a quantidade de dólares disponíveis ainda é insuficiente para viabilizar a ideia de dolarizar a economia.

O Banco Central argentino vai ser fechado mesmo?

O controle da inflação está indo pelo caminho da redução da base monetária, do corte de gastos e da ausência de necessidade de financiamento. O fechamento do Banco Central é um tema que pode sair da pauta se o controle da inflação continuar como está.

Edifício do Banco Central da Argentina, em Buenos Aires | Foto: Shutterstock

O cepo cambial vai durar até quando?

Pela falta de dólares, os argentinos não podiam comprar livremente a moeda americana e, para comprá-la, precisavam pagar impostos sobre o valor do dólar oficial. Segundo o ministro Luis Caputo, esse cepo cambial vai ser eliminado em 2025.

Se o governo Milei conseguir apoio do FMI para o fornecimento de dólares, a eliminação do cepo pode acontecer no primeiro semestre do próximo ano. Sem os dólares do FMI, a eliminação pode chegar só no segundo semestre.

Milei vai manter as retenções às exportações?

Atualmente, quem exporta na Argentina é obrigado a pagar impostos sobre suas exportações. Essa tributação, aliada a um valor artificial do dólar (já que, até a liberação do câmbio, o valor da moeda é determinado pelo governo), continua reduzindo a competitividade dos produtos argentinos.

Javier Milei comprometeu-se a reduzir gradualmente essas retenções, especialmente para o setor agropecuário. Para viabilizar essa medida, o presidente precisa melhorar as contas públicas, pois as retenções sobre exportações são uma fonte essencial de arrecadação para manter o superávit fiscal.

Conclusões

Milei está cumprindo todas as promessas de campanha e mantendo uma imagem positiva até agora. Pode obter uma vitória fundamental nas eleições legislativas de 2025.

Javier Milei, presidente da Argentina, e Karina Milei, sua irmã e secretária-geral da Presidência da Nação Argentina | Foto: Reprodução/La Libertad Avanza

Atualmente, o partido de Javier Milei, La Libertad Avanza, conta com 38 dos 257 deputados federais e apenas 8 dos 71 senadores. Uma melhoria na representatividade do partido governante e, principalmente, uma redução do peronismo no Congresso Argentino podem mudar definitivamente o futuro de um país que já foi um dos mais ricos do mundo e que, após 70 anos de governos de esquerda, havia se transformado em um exemplo a não ser seguido na América do Sul.

A política econômica de Milei, em contraste com a do governo Lula, poderá, se os bons resultados se mantiverem, se tornar um exemplo de como um governo liberal, conservador e de direita pode beneficiar a população, sem recorrer a populismo barato. Enfrentando a pobreza por meio de mais capitalismo e livre mercado e, acima de tudo, respeitando todas as liberdades democráticas.


Gustavo Segré é argentino, mora no Brasil há 42 anos e é analista internacional.

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