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Foto: Montagem Revista Oeste/IA
Edição 248

Ato Institucional nº 4.781

Alexandre de Moraes prorroga até 2025 o inquérito — sem direito a defesa — mais longo da história e deixa claro que o STF se julga acima da lei no Brasil

Silvio Navarro
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Desde o dia 14 de março de 2019, sem o alarde que o general Artur da Costa e Silva provocou 56 anos antes quando assinou o Ato Institucional nº 5, o Brasil vive sob as rédeas de um documento que hoje vale mais do que a Constituição. Trata-se do Inquérito nº 4.781, instaurado de ofício pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, para investigar a divulgação de notícias falsas e críticas à Corte nas redes sociais. Ele escolheu, sem sorteio, o colega Alexandre de Moraes para ser o relator.

Essa investigação ganhou o apelido de “inquérito do fim do mundo”, corre em sigilo e, nesta semana, foi prorrogada por mais 180 dias. Aliás, nunca teve prazo para ser concluída. Agora pode fazer o sexto aniversário em 2025, um recorde na história do Judiciário. Sua abertura de ofício vai na contramão do que prevê o sistema acusatório: o tribunal sempre reage depois de provocado. Ou seja, o Ministério Público jamais solicitou esse inquérito e poderá, quando ele for concluído pela Polícia Federal, recomendar que seja jogado no lixo: basta argumentar que a Constituição proíbe a criação de tribunal de exceção. A escolha a dedo de quem o controlaria também foi uma inovação porque, normalmente, a distribuição é feita por meio de sorteio eletrônico.

Outro dado: o artigo 43 do Regimento Interno da Corte, usado por Toffoli para abrir a investigação, não diz que ele tinha autorização para fazer o que fez. Diz o texto: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”. Não há registro de nenhuma ameaça ou ofensa feita por ninguém na sede do STF.

O país deixou tudo isso passar. Outro documento, este assinado por Alexandre de Moraes, traz os argumentos para a investigação:

“O objeto deste inquérito é a investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que têm o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e o Estado de Direito.”

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

A esse longo parágrafo foram juntados dois depoimentos, que ganharam contornos de “delações” no STF, feitos pelos ex-deputados Alexandre Frota e Joice Hasselmann. “Eles narraram a existência de um grupo organizado conhecido por ‘Gabinete do Ódio’, dedicado à disseminação de notícias falsas e ataques a diversas pessoas e autoridades, dentre elas o Supremo Tribunal Federal.” Depois de quase seis anos, o país ainda não sabe quem seriam os integrantes desse gabinete, nem onde ele funcionava.

Àquela altura, o ministro Alexandre de Moraes não precisava de mais nada. Desde a largada, ele sempre teve dois alvos preferenciais: o jornalista Allan dos Santos, que se mudou para os Estados Unidos para não ser preso, e o ex-deputado Daniel Silveira, que ficou no Brasil porque tinha mandato, mas se tornou um preso particular. O caso de Silveira, condenado com base na extinta Lei de Segurança Nacional, com um inédito flagrante por causa de um vídeo grosseiro publicado na internet, não tem precedentes — principalmente porque ele recebeu um indulto presidencial concedido por Jair Bolsonaro.

Censura

Também nos primeiros dias, o inquérito de Moraes causou terremotos na segurança jurídica e deixou claro que funcionaria como uma engrenagem de censura no país. A data da criação do inquérito, 14 de março de 2019, é simbólica: na véspera, dia 13, o procurador da Lava Jato Diogo Castor de Mattos assinou um artigo no portal O Antagonista, no qual afirmava que o STF preparava o desmonte da operação. A ideia na época era tirar as investigações da Justiça Federal e remetê-las para a Justiça Eleitoral, onde nunca deu em nada, com o pretexto de que se tratava de “caixa dois” de campanhas.

A revista Crusoé veio na sequência. Foi censurada em abril de 2019 por causa de uma reportagem que citava Dias Toffoli — sob pena de multa diária de R$ 100 mil. Toffoli apareceu enrolado num diálogo descoberto pela Lava Jato com o codinome “amigo do amigo de meu pai”, conforme foi citado pelo empreiteiro Marcelo Odebrecht, sobre o leilão para a construção das hidrelétricas do Rio Madeira. Depois de cinco anos, a Lava Jato batia à porta do Supremo, e Dias Toffoli, ex-advogado-geral da União, era o primeiro alvo.

“A calúnia, a difamação, a injúria não serão admitidos”, disse Toffoli na época. “Atacar a cada um de nós já é um ataque a todos. Atacar o Poder Judiciário Eleitoral é atacar a esta Suprema Corte também.”

“Permita-me o uso desse meio para uma formalização, haja vista estar fora do Brasil. Diante das mentiras e ataques e da nota ora divulgada pela PGR que encaminho abaixo, requeiro a V. Exa. autorizando transformar em termo esta mensagem, a devida apuração das mentiras recém-divulgadas por pessoas e sites ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras.”
(Mensagem enviada por Dias Toffoli a Alexandre de Moraes em 12 de abril de 2019)

A censura durou poucos dias porque, naquela época, o Brasil era outro: todos os órgãos de imprensa criticaram Moraes. Ele também levou um puxão de orelha público do decano, Celso de Mello.

Ao entender a finalidade do inquérito, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recomendou duas vezes que Moraes o encerrasse. “Não há como imaginar situação mais comprometedora da imparcialidade e neutralidade dos julgadores — princípios constitucionais que inspiram o sistema acusatório.” Escreveu ela:

“Nessa perspectiva constitucional, de garantia do regime democrático, do devido processo legal e do sistema penal acusatório, a decisão que determinou de ofício a instauração deste inquérito, designou seu relator sem observar o princípio da livre distribuição e deu-lhe poderes instrutórios, quebrou a garantia da imparcialidade judicial na atuação criminal, além de obstar acesso do titular da ação penal à investigação.”

Qual foi a resposta de Moraes? Ignorou o Ministério Público.

Foi debaixo desse inquérito que Alexandre de Moraes mandou o aplicativo Telegram remover postagens contra o Projeto de Lei nº 2.630, apelidado de PL da Censura, prestes a ser votado na Câmara. Disse que caracterizava “flagrante e ilícita desinformação” e deu o prazo de 72 horas para bloquear a ferramenta no país. Em 2024, ele tirou a plataforma X do ar por um mês.

Não para por aí. Moraes usou o inquérito das fake news para suspender uma fiscalização da Receita sobre mais de 130 pessoas e afastou dois auditores. Nessa lista estavam Gilmar Mendes e a mulher de Dias Toffoli, Roberta Rangel.

Capa do Jornal do Brasil em 14 de dezembro de 1968 | Foto: Reprodução
Capa do jornal O Globo em 14 de dezembro de 1968 | Foto: Reprodução
Capa do jornal Folha de S.Paulo em 14 de dezembro de 1968 | Foto: Reprodução

Tentáculos

Com o passar dos anos, Alexandre de Moraes não só se recusou a concluir o inquérito, cumprindo o devido processo legal, como fez dele uma matriz: uma dezena de outros inquéritos correlatos foi aberta — dos “atos antidemocráticos”, das milícias digitais, do tumulto do 8 de janeiro etc., todos contra o espectro da direita, incluindo políticos, jornalistas, influenciadores, empresários, procuradores da Lava Jato etc. Os inquéritos novos se comunicam de maneira secreta, ou seja, nem os advogados nem o Ministério Público sabem quem é alvo, por qual motivo e desde quando. Por exemplo, no caso dos “atos antidemocráticos”, Moraes quebrou o sigilo de dez deputados e um senador. Mais uma vez, o Ministério Público mandou arquivar o inquérito: ele atendeu e abriu outro na mesma hora com o nome de “milícias digitais”.

Outra novidade que contraria o ordenamento jurídico: Moraes despacha diretamente com o comando da Polícia Federal, que depois da eleição de Lula parece estar mais ainda à sua disposição — uma polícia política. Aqui surge outra questão: se o sistema penal brasileiro é majoritariamente acusatório, como pode a vítima ser ao mesmo tempo o investigador e o julgador da causa? Esse inquérito-matriz criou um monstrengo jurídico. Mais: tornou-se uma via de perseguição a quem se opõe ao consórcio de poder instalado em Brasília, formado pelos ministros do STF e pelo presidente Lula da Silva.

O inquérito acabou se misturando inexplicavelmente às funções de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições de 2022. Ali aconteceu de tudo: multas no atacado, bloqueio de redes sociais, e até o Partido Liberal (PL) acabou multado em R$ 22 milhões por questionar o processo eleitoral. Reportagens da Folha de S.Paulo mostraram neste ano que não havia separação entre os gabinetes do ministro na Corte eleitoral e no STF — o que abriu espaço até para a recomendação do uso de “criatividade” para punir a Revista Oeste, por exemplo.

Numa entrevista coletiva na última quarta-feira, 18, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) falou sobre o tema na Câmara (veja o vídeo abaixo). A lista de parlamentares perseguidos é grande: de Daniel Silveira a Marcel van Hattem (Novo-RS). A última vítima foi o general de quatro estrelas, ex-ministro e interventor da segurança pública nos morros do Rio de Janeiro, Walter Braga Netto (leia o artigo de J.R. Guzzo nesta edição). Ele foi preso pela Polícia Federal, a mando de Moraes, na semana passada.

É impossível prever, depois de tanto tempo, se os inquéritos ilegais serão encerrados no ano que vem — e o que poderá resultar deles. Mas fato é que a tinta da caneta do ministro Alexandre de Moraes não é eterna. A história há de recolocar a Praça dos Três Poderes — e, consequentemente, a democracia constitucional — no lugar.

Leia também “Quem é o dono do Orçamento?”

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