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Foto: Revista Oeste/IA
Edição 248

O sabor do exílio

A vida de um refugiado sírio no Brasil

eugenio goussinsky
Eugenio Goussinsky
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“Não fale nada.” Talal al-Tinawi, de 51 anos, cresceu ouvindo essa frase em conversas entre adultos quando era criança, na Síria, nos anos 1970. A recomendação era repetida em casa, nas esquinas, nas lojas. Era perigoso falar de política, preços ou insinuar qualquer crítica ao governo do ditador Hafez al-Assad.

“A frase era tão comum que me acostumei”, lembra Talal, nascido em Damasco em 1973, três anos depois de Hafez chegar ao poder. “Achava normal, não entendia direito, fazia parte de nossa rotina. Só fui compreender já adulto. Vendo melhor o que ocorria no meu país, comecei a saber que pessoas que andavam na rua eram chamadas de repente por policiais e presas sem motivo.”

A guerra civil na Síria, iniciada em 2011, foi o ponto máximo da opressão. Cerca de 200 mil pessoas foram presas e delas não se teve mais notícias. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos considera que pelo menos 60 mil foram mortas pelo regime.

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“Quando Hafez se tornou presidente, em 1971, não foi devido ao apoio popular”, afirma Tim Black, colunista da Spiked. “Desde o início, a autoridade de seu regime se baseou quase inteiramente no uso da força, principalmente por meio das temidas agências de inteligência e segurança da Síria.”

Na infância de Talal, porém, a vida não era abalada pela repressão. Seu pai, Muhammad Riad al-Tinawi, tinha em mente que o silêncio era o melhor caminho. Dedicava-se à loja, um pequeno refúgio de especiarias, doces e presentes que parecia conter o mundo.

“Não tínhamos problemas com política, nossa vida girava em torno da família, das brincadeiras na rua e da escola”, conta Talal. “Não havia internet, as classes tinham poucos alunos e os professores nos adoravam.”

Talal e seus irmãos cresceram nesse ambiente, sob o olhar atento do pai. Ele começou a trabalhar na loja aos 8 anos, algo comum para os meninos. Depois, adquiriu comércio próprio. “Na Síria, muitas crianças trabalham, lá é considerado importante trabalhar desde cedo para aprender a cuidar dos negócios.”

A faculdade foi um destino automático, resultado das notas acumuladas no ensino básico. Lá, o acesso ao ensino superior se dá por meio de uma pontuação baseada no desempenho escolar.

Talal cursou engenharia mecânica. “O importante era ter diploma, algo muito difícil por lá. Depois gostei”, diz ele sobre o curso que no início fez mais por obrigação do que por vocação.

Fronteiras abertas

O casamento com Ghazal Baranbo, hoje com 41 anos, também ocorreu pelas vias tradicionais. A mãe de Talal, Zubaida al-Nachef, foi em busca de uma noiva para o filho quando ele completou 26 anos.

Ela foi apresentada à moça por uma amiga de sua filha, Hiba. Depois que a mãe a conheceu, foi a vez de Talal se encontrar com ela. “Deu certo desde o início, eu gostei dela e ela gostou de mim, estamos juntos até hoje”, diz ele.

Na Síria, Talal e Ghazal tiveram Riad e Yara. Formado, além do escritório de engenharia, Talal prosperava com três lojas de roupas para crianças. A vida continuava tranquila.

Nem o início da guerra tirou o seu sossego. Em 15 de março de 2011, as revoltas populares nos países árabes por democracia se espalharam para a Síria. 

O presidente já era Bashar al-Assad, filho de Hafez, morto em 2000 por causa de um infarto. A resposta do ditador às manifestações foi brutal. Ele controlava a revolta com perseguições e ataques indiscriminados a civis.

Grupos rebeldes espalhados pelo país tentaram derrubar o regime, mas, com a ajuda da Rússia e do Irã, eram mantidos sob controle.

Os bombardeios demoraram para chegar a Damasco. A população viveu sob a ilusão de que o drama não duraria muito tempo. 

“Desde o começo, pensávamos a cada dia que a guerra ia terminar logo.” Não foi o que ocorreu. Os combates se prolongaram, e o destino de Talal sofreu uma guinada cruel.

Em 2013, ele foi preso ao voltar do Líbano, onde havia retirado um diploma de inglês no Consulado da Inglaterra em Beirute.

Foi detido na fronteira por ter o mesmo nome de um homem procurado pela ditadura. Talal passou três meses na prisão de Al Mazzeh. Não havia quem o defendesse. “Não existe advogado para esses casos. Se houver algum, vai preso.”

Em meio às dificuldades, Talal ainda teve sorte e se salvou. Os governos sírio e iraniano, por uma combinação política, definiram a liberação de prisioneiros. “Nem sei como entrei na lista, só saí de lá por causa do acordo. Foram meses de sofrimento, era angustiante, não entendia por que tinha sido preso, não sabia o que aconteceria.”

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Assim que saiu, Talal decidiu deixar o país com a família, temendo ser preso novamente. Eles ficaram dez meses no Líbano antes de definirem a ida para o Brasil. “Não sabíamos nada sobre o Brasil, viemos porque foi o único país que permitiu a entrada de refugiados sírios sem exigir documentos.”

Talal e seus familiares chegaram ao Brasil em 10 de dezembro de 2013. Passados alguns meses, depois de terem sido acolhidos por um instituto e com a ajuda de doadores pela internet, ele abriu um restaurante árabe em São Paulo. O cardápio era carregado de memórias. 

O local oferecia pratos típicos da culinária árabe, elogiados pela crítica. “Comecei nesse ramo em São Paulo apenas com o conhecimento dos pratos que fazíamos em reuniões familiares na Síria. Depois, fiz cursos para me aprimorar.”

O negócio, porém, durou somente quatro anos. Dificuldades financeiras o obrigaram a fechar o restaurante. Talal conheceu então o outro lado da vida no Brasil. “A gente do Brasil é ótima, sou grato, mas a vida no país é difícil. Fazer turismo é uma coisa, morar é outra.”

Filhos na faculdade

Ghazal também não se sente plenamente adaptada. No Brasil, nasceu a terceira filha do casal, Sara, que tem 9 anos.

“Minha vida aqui no Brasil não é muito boa, fico o dia inteiro fora de casa para trabalhar, para vender comida. Não tenho a companhia da minha mãe e das minhas irmãs para me ajudarem, não consigo ficar com minhas filhas como eu gostaria, a menor não sabe escrever em árabe.”

Na Síria, Talal e Ghazal tiveram Riad e Yara. No Brasil, nasceu a terceira filha do casal, Sara, que tem 9 anos | Foto: Arquivo Pessoal

Dívidas, impostos e a burocracia brasileira foram um baque para eles. “Os custos são muito altos, eu tinha dez funcionários, tinha de pagar impostos e seguir a lei. Precisei dispensá-los e eles perderam o emprego, não entendo essa lógica”, diz Talal.

Ele ainda enfrentou processos trabalhistas: “Paguei tudo no momento da demissão e depois a Justiça me mandou pagar novamente. Não tenho, não sou fábrica de dinheiro”.

Hoje, a família de Talal vive de encomendas e se lembra do passado, antes da guerra, com saudade. Ele ainda não pode deixar o Brasil porque seus filhos mais velhos estão na faculdade. Riad, de 22 anos, cursa medicina na UFMG e Yara, de 18, faz odontologia na Unisa.

“Para as crianças foi mais fácil se adaptar. Eles vão terminar a faculdade e decidirão o que fazer, onde trabalhar. Enquanto isso, ficaremos no Brasil.”

O pai de Talal, Muhammad, veio ao Brasil em 2016. Ele morreu no ano seguinte, na Síria. Dona Zubaida, a mãe, faleceu em 2014.

Talal chegou a viajar para a Síria em 2021, para uma visita a familiares. Pegou covid-19 e ficou internado em Damasco. Sobreviveu também com uma campanha de arrecadação que possibilitou uma internação em um hospital particular. Sabia que se arriscava e voltou ao Brasil semanas depois.

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Talal perdeu os pais sem despedidas e ainda luta para se reerguer. Mas o olhar dele agora é de esperança — bem diferente dos tempos de prisão. Ele acredita na mudança, depois da queda do regime de Bashar al-Assad, em 8 de dezembro, quando os rebeldes entraram na capital.

“Por culpa de Bashar eu tive de sair do país. Ele destruiu a Síria, mas agora tenho certeza de que tudo vai melhorar, mas a mudança não vai ser em três dias.”

Apegado à Síria, ele fala todos os dias com seu irmão Tarek. O outro, Ahmad, mora na Alemanha, também por causa da guerra. A irmã Hiba se casou e se mudou para os Estados Unidos.

Talal conhece com detalhes a política local, a história da família Assad, os porões do regime. “Hoje, muitas coisas começam a aparecer. Há pessoas que ficaram presas por 45 anos”, conta Talal. “Havia uma cidade subterrânea para prisioneiros, embaixo de Damasco, uma coisa horrível.”

Sem o sistema opressor, porém, Talal não descarta um regresso definitivo. Ainda tem seu apartamento e os imóveis das lojas na capital. “Nos livramos dos terroristas do Irã e do Hezbollah. Caso a mudança na Síria prossiga e se consolide, penso em voltar.”

Enquanto os planos ainda são incertos, Talal segue vendendo refeições em São Paulo, à espera da formatura de seus filhos. Depois, pretende recuperar sua antiga rotina e ter o prazer de um dia retornar de vez para Damasco. Quando ninguém mais precisar dizer: “Não fale nada”.

Talal segue vendendo refeições em São Paulo. Depois, pretende recuperar sua antiga rotina e ter o prazer de um dia retornar de vez para Damasco | Foto: Arquivo Pessoal

Leia também “O colapso do ditador”

6 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A Síria é uma grande incógnita política.
    A prudência indica que nenhum caminho ainda está definido.

  2. Marcelo DANTON Silva
    Marcelo DANTON Silva

    NÃO SE ILUDAM gente….nao se deixem se compadecerem.
    Essa gente parecem boas, mas não são…as raríssimas excessões se acomodam e ou se acovardam…
    E TODOS VIBRAM com abominações e atrocidades perpetradas contra Israel…como mais recentemente covardemente fez o Hamas … São sempre covardias!
    Não se deixem enganarem…não deem a outra face para ele socarem em nome de Alah.
    Que fiquem em seus desgraçados países e lutem como homens e não se escondam em escolas e hospitais.
    Igual sorte teremos nos…BOSTILEIROS, com nossa covardia.
    Depois não adianta reclamar que os povos ricos nos veem como lixos…

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    É dura a vida deste povo. Imaginem o sofrimento.

  4. Cícero Ruggiero
    Cícero Ruggiero

    Eles podem ser uma exceção, mas quantos sírios ou árabes entraram também no Brasil, sem documentos e são maus elementos, ou terroristas ou antissemitas ou anti cristãos? Esse é o perigo da imigração ilegal. Hoje muitos países estão sofrendo por causa dessa política imigratória absurda.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Talai não vai encontrar coisa boa, os que chegaram são xiitas, não vão dar moleza quando assumirem de vez o poder

  6. Renato Perim
    Renato Perim

    Se eu fosse ele não teria tantas esperanças, considerando que quem assumiu o poder pertenceu à Al-Qaeda. Provavelmente vão sair de uma ditadura pra outra, dessa vez islâmica.

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