“Nosso maior compromisso é construir um Brasil mais igualitário, sem fome, sem pobreza, com bons empregos e salários, priorizando as pessoas que mais precisam. Para isso, propomos um salário mínimo forte, com crescimento todo ano acima da inflação.” Esta foi uma das principais promessas de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência do Brasil, em 2022.
Dois anos depois de eleito, o petista assinou uma série de cortes, bloqueios e contingenciamentos que sacrificam a própria base eleitoral: os mais pobres. As propostas aprovadas no chamado “pacote de corte de gastos” do Palácio do Planalto resultaram em uma reforma de renda às avessas, na qual os mais vulneráveis foram “sacrificados” em detrimento da camada mais rica do funcionalismo público.
Só duas coisas aumentaram no governo Lula: impostos e inflação. Ambos corrosivos para o poder de compra dos brasileiros menos abastados.
No “pacote de corte de gastos” enviado ao Congresso e aprovado em 23 de dezembro, último dia útil, o governo Lula realizou cortes ou contingenciamentos nos orçamentos da saúde e da educação, revisou o Benefício de Prestação Continuada (BPC), atrasou o pagamento do Auxílio Gás, impôs mudanças no abono salarial e recálculo do salário mínimo. E tentou reintroduzir um dos impostos mais odiados entre os brasileiros: o DPVAT. Até mesmo os investimentos em saneamento básico minguaram.
Por outro lado, os supersalários e penduricalhos dos servidores públicos, que superam o teto salarial de R$ 44 mil, foram autorizados via PEC. O privilégio foi constitucionalizado.
As pautas só foram destravadas nas Casas Legislativas com a liberação de R$ 7,1 bilhões em emendas parlamentares. Os recursos estavam suspensos desde agosto, por decisão do ministro Flávio Dino, nome indicado por Lula para assumir a vaga da ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF).
Quando tudo parecia estar resolvido para a gestão petista, Dino decidiu agir mais uma vez em desfavor de Lula. O ministro atendeu a um pedido do Psol e determinou a suspensão do pagamento (de novo) de R$ 4 bilhões em emendas de comissão em 23 de dezembro. Os recursos de 2025 também entraram na deliberação e apenas poderão ser liberados com novas regras de “transparência”.
As emendas suspensas por Dino não têm pagamento obrigatório, pois são indicadas por colegiados temáticos na Câmara e no Senado. Além disso, o magistrado determinou que a Polícia Federal abrisse um inquérito para investigar as supostas irregularidades e ouvir parlamentares da oposição que denunciaram as práticas.
Corte atinge autistas leves e pessoas com síndrome de Down
Entre as medidas que terão o maior impacto entre os brasileiros mais pobres estão as mudanças nas regras para o aumento do salário mínimo e para o BPC, além da imposição de um limite ao crescimento de despesas com seguridade social e pessoal.
No caso do salário mínimo, o PL nº 4.614/2024 reduz, e muito, o reajuste real. A legislação atual estabelece a correção a partir da inflação mais variação do produto interno bruto (PIB). O novo texto do pacote de corte de gastos determina um limite de, no máximo, 2,5%.
A restrição do BPC também vai afetar milhares de famílias. O texto inicial da equipe econômica estabelecia que, para a pessoa receber o benefício, deveria comprovar sua incapacidade de trabalhar e levar uma vida independente.
A proposta aprovada agora determina a comprovação de deficiência de grau moderado ou grave — mas sem modular quais limitações se enquadram nesses recortes. Com os novos moldes, o BPC pode deixar de atender pessoas em situação de vulnerabilidade, como autistas leves e pessoas com síndrome de Down.
Atualmente, o benefício atende cerca de 6 milhões de pessoas de baixa renda — renda familiar per capita igual ou inferior a um quarto do salário mínimo —, entre idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência. O valor é de um salário mínimo.
De acordo com o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atualmente um em cada três beneficiários do BPC não têm esse cadastro em dia. O corte do benefício, portanto, seria drástico e imediato. Sem contar que quem mora com filhos ou cônjuges que trabalham também terá seus recursos revogados.
Em 2019, o total desembolsado com o benefício somava R$ 55,5 bilhões. De janeiro a outubro de 2024, os desembolsos chegaram a R$ 93,266 bilhões. Com previsão de superar os R$ 100 bilhões até o fim de dezembro.
‘Isso se chama estelionato eleitoral’
Nem o Bolsa Família nem o Auxílio Gás, duas bandeiras históricas do Partido dos Trabalhadores (PT), se salvaram dos cortes. Em dezembro, o governo federal atrasou o pagamento do Auxílio Gás para mais de 5 milhões de famílias.
No caso do Bolsa Família, o Executivo decidiu alterar as regras cadastrais para poder cortar os benefícios sem aparecer como vilão. A atualização de beneficiários unipessoais deverá ser feita obrigatoriamente por domicílio, para tentar coibir fraudes. Hoje, mais de 20 milhões de famílias estão cadastradas no programa. Dessas, cerca de 6 milhões se enquadram nessa categoria.
Ou seja, 6 milhões de domicílios nos quatro cantos do Brasil deverão ser visitados por funcionários públicos. Na melhor das hipóteses, essa mudança vai provocar atrasos nos pagamentos. Na pior, cancelamentos em massa.
O governo sabe disso. E já está contando com cortes de R$ 2 bilhões no Bolsa Família em 2025, e de R$ 3 bilhões por ano a partir de 2026.
“Paradoxalmente, essas mudanças estão na direção certa, pois há milhões de pessoas que recebem benefícios de forma irregular”, afirmou Gabriel Leal Barros, economista da ARX Investimentos. “Todavia, os cortes são tímidos demais. E, sob um perfil político, o governo está fazendo exatamente o oposto do que prometeu. Não está expandindo os programas sociais, está cortando. Isso se chama estelionato eleitoral.”
DPVAT não voltou por pouco
O governo tentou impor a volta do DPVAT, agora com novo nome, Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (SPVAT), a partir de 2025. A oposição conseguiu evitar o retorno desse imposto em troca da autorização ao governo de restringir o uso de créditos tributários em situações de déficit nas contas públicas.
Ou seja, os motoristas se salvaram, mas quem pagará a conta serão as empresas, que não poderão mais compensar seus créditos com a Receita Federal.
Pé-de-Meia congelado
Na campanha de 2022, Lula também anunciou o compromisso com políticas educacionais. “A educação pública, universal e de qualidade voltará a ser prioridade estratégica do país”, disse o petista. “A educação é o único caminho para transformar a vida das pessoas e promover a igualdade de oportunidades neste país.”
“Vamos investir em mais universidades, com o fortalecimento do Enem, Fies, do ProUni, da Bolsa Formação, e ampliaremos a Lei de Cotas, incluindo a pós-graduação. Voltaremos a expandir fortemente o Ensino Técnico Profissionalizante”, declarou Lula.
Chegando ao Planalto, fez exatamente o oposto. No início de agosto de 2023, o governo bloqueou recursos públicos para a área da educação no valor de R$ 332 milhões. Os segmentos mais atingidos pelos cortes foram os de educação básica, alfabetização de crianças, transporte escolar e bolsas de estudo.
Um ano depois, outro bloqueio, de R$ 1,3 bilhão. O programa Pé-de-Meia, que concede incentivo financeiro a alunos do ensino médio, teve R$ 500 milhões congelados. Outra parte dos cortes afetou diretamente universidades e institutos federais.
Resultado: em novembro deste ano, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) teve água e luz cortadas por falta de pagamento. Só conseguiu continuar operando graças a uma liminar judicial.
“A maioria dos orçamentos das universidades públicas está comprometida com gastos correntes”, explica Reginaldo Nogueira, economista e diretor do Ibmec. “Como pagamento de salários, contas etc. Qualquer corte acaba prejudicando imediatamente a operacionalidade desses centros de ensino.”
Um mês de espera por uma consulta
No caso do Ministério da Saúde, os cortes foram ainda mais duros.
“Para assegurar a saúde e a tranquilidade das famílias, vamos fortalecer o SUS, retomar o Farmácia Popular, implantar o Médicos Pelo Brasil para atender a população de todos os municípios brasileiros”, prometeu Lula aos mais pobres na campanha eleitoral. “Promover mutirões emergenciais em todo o país para zerar as filas de consultas, exames e cirurgias que não foram realizados na pandemia, criar o Centro Nacional de Telemedicina e investir no atendimento integral à Saúde da Mulher.”
Em julho de 2023, a pasta liderada por Nísia Trindade sofreu um bloqueio de R$ 452 milhões. Em outubro deste ano, outro corte, de R$ 4,5 bilhões. O Farmácia Popular também sofreu cortes de R$ 1,6 bilhão, quase um terço de seu orçamento anual.
Antes mesmo do bloqueio de verba, a gestão do Ministério da Saúde já deixava a desejar. Pacientes com hanseníase tiveram tratamentos interrompidos por falta de medicamentos. Falta insulina para diabéticos, houve desabastecimento de vacinas contra a covid-19 para entrega imediata, além de insuficiência de vacinas básicas contra doenças como hepatite A, catapora, febre amarela e meningite.
Em setembro deste ano, um levantamento do jornal O Globo mostrou que, em pelo menos 13 capitais, pacientes aguardam, em média, mais de um mês por uma consulta na rede municipal do Sistema Único de Saúde (SUS).
Não faltou dinheiro para o ‘Janjapalooza’
O mais incompreensível é como o governo conseguiu cortar e congelar verbas para saúde, educação e benefícios sociais de um lado e, de outro, registrar o pior resultado das contas públicas na história do Brasil.
Embora o destino do pacote de corte de gastos siga incerto, as propostas deixam claro que o governo Lula prefere sacrificar o próprio eleitor do que cortar na própria carne.
Em mais de 700 dias, a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, esbanjou mais de R$ 63 milhões da verba pública. Os dados são do site “Janjômetro”, do deputado estadual Guto Zacarias (União Brasil-SP).
Em novembro deste ano, Itaipu e Petrobras destinaram R$ 33,5 milhões para o Festival de Cultura Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, mais conhecido como “Janjapalooza”. Os 29 artistas que se apresentaram no evento receberam um valor total de R$ 870 mil. O patrocínio tornou-se alvo de investigação do Tribunal de Contas da União (TCU) depois de representação do deputado federal Ubiratan Sanderson (PL-RS), realizada a partir de reportagem de Oeste.
Em julho deste ano, o TCU suspendeu a licitação de R$ 197 milhões da Secretaria de Comunicação Social (Secom) por suspeitas de irregularidades. O certame ocorreu em abril, sob o comando do ministro Paulo Pimenta, para a contratação de empresa para planejar, desenvolver e implementar soluções de comunicação digital para o Sistema de Comunicação (Sicom) do governo Lula.
O TCU publicou o relatório depois de o jornal O Antagonista ter publicado as empresas vencedoras do certame um dia antes da abertura oficial dos envelopes. A situação caracterizou-se como violação de sigilo.
“O governo deveria, sim, cortar no orçamento, mas de forma mais séria e sem prejudicar os mais pobres”, explica Nogueira. “A proposta de ajuste fiscal apresentada pelo Executivo é absolutamente insuficiente para estabilizar as contas públicas. Os R$ 70 bilhões de redução de gastos prometidos até 2026 deveriam ocorrer todos esses anos para terem algum tipo de efeito. É algo perfeitamente possível de se fazer, pois há muita gordura para queimar no orçamento público. E sem prejudicar os brasileiros que mais necessitam”.
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