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Ilustração: Shutterstock
Edição 249

O Natal e a difícil arte de amar o próximo

Deus teve de virar homem para ensinar o homem a amar

Flávio Gordon
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Charles Dickens é reconhecido, entre outras coisas, por ter escrito aquele que se tornou um dos maiores clássicos literários natalinos, o livro Um Conto de Natal, de 1843. Mas há outro livro de Dickens que, embora menos lembrado, nos remete indiretamente ao Natal, sobretudo pela lembrança de quão difícil é pôr em prática a virtude natalina por excelência: a caridade, também conhecida como “amor ao próximo”.

Esse livro é A Casa Abandonada, em que se destaca a personagem Mrs. Jellyby, apresentada como “dama de notável força de caráter, inteiramente dedicada ao interesse público”. Mrs. Jellyby é uma filantropa que, no momento em que transcorre a narrativa, se dedica a um projeto humanitário, agrícola e educacional, junto aos nativos da tribo dos Borrioboola-Gha, pobres habitantes da margem direita do Rio Níger. Mrs. Jellyby é uma humanista sonhadora, cujos olhos parecem mirar sempre além, “como se incapazes de ver algo mais próximo que a África”.

Descrita como magnânima e atarefada, Mrs. Jellyby não pode dar a atenção devida aos hóspedes que lhe chegam à casa. “Como de hábito, meus caros, acham-me assaz ocupada” — diz-lhes, com uma pontada de orgulho. “No momento, o projeto africano toma todo o meu tempo. Exige que eu me corresponda amiúde com órgãos públicos e indivíduos particulares ao redor do país, ansiosos pelo bem-estar dos de sua espécie.”

Mrs. Jellyby é uma personagem do romance A Casa Abandonada, de Charles Dickens. Ela é uma mulher obcecada por causas filantrópicas distantes, ficando sem tempo para cuidar do próprio lar | Ilustração: Reprodução

Dedicando um zelo extraordinário à África, Mrs. Jellyby não tinha tempo para o próprio lar, onde faltava água quente para o banho, os cômodos estavam imundos e sem iluminação, e tudo parecia ruir, a começar pelo ânimo do marido e pelas roupas dos filhos. Ah, os filhos de Mrs. Jellyby! Eram um capítulo à parte, como notaram de imediato os hóspedes recém-chegados. Uma das crianças prendera a cabeça na grade do portão do jardim; outra caíra da escada; uma terceira cobrira-se de tinta de caneta dos pés à cabeça. Todas tinham olhos remelentos e nariz escorrendo. A própria matriarca, agraciada por Deus com uma vasta cabeleira, não arrumava meio de escová-la, consumida que estava pelos assuntos africanos.

Com a mordacidade que lhe era característica, Dickens criou a personagem de Mrs. Jellyby para denunciar o que chamou de “filantropia telescópica”, uma espécie de paródia da verdadeira caridade, pois que menos interessada em atenuar as carências de outro ser humano de carne e osso do que em afagar a vaidade pessoal do filantropo. De olhos voltados para o distante hábitat dos Borrioboola-Gha, Mrs. Jellyby negligenciava marido e filhos, fazendo do próprio lar um antiexemplo do bem social que jurava entregar ao mundo.

Mas a crítica mordaz aos tipos sociais de sua época não esgota os propósitos de Dickens, que, mediante a ideia de “filantropia telescópica”, toca no problema antropológico universal da dificuldade de amar o próximo. Não se deve, assim, atirar a primeira pedra contra Mrs. Jellyby, que, no fundo, é uma representação de todos nós.

Ao contrário dos Borrioboola-Gha, o próximo nos incomoda, nos confronta, invade o que consideramos o nosso espaço e mexe com o nosso orgulho. Não parece haver nenhuma recompensa imediata no ato de amar o próximo. Antes, talvez, pelo contrário: não é infrequente que o próximo nos pareça ingrato, deixando de nos reverenciar tanto quanto imaginamos merecer. Amá-lo, com efeito, não é algo que se preste à autopromoção. Como escreveu Gustavo Corção em seu livro A Descoberta do Outro:

“O próximo, com efeito, é intolerável. Sua espessa concretude, seu rosto, seus músculos, seu bigode, nos impelem a derivar nossos bons sentimentos para coisas mais puras e elevadas. Voltamo-nos para a espécie humana, para ideias e causas sagradas. É mais fácil querer bem à humanidade em peso do que ao vizinho que ouve o radioteatro. É mais amplo, mais generoso, falar num microfone virado para o porvir, atirando palavras para 1 bilhão de ouvidos que ainda não nasceram, do que entrar num quarto cheirando a remédio e a suor.”

A Descoberta do Outro, de Gustavo Corção, reflete sobre o encontro com o outro como caminho para transcender o egoísmo e aprofundar a dimensão humana e espiritual da vida | Foto: Reprodução

Essa dificuldade paralisante de amar o próximo está na raiz do Natal. Foi por sua causa que Deus resolveu vir ao mundo e assumir, Ele mesmo, a forma desse próximo. É simples: Deus teve de virar homem para ensinar o homem a amar. Reside aí toda a beleza e todo o mistério do Natal. Como escreve G. K. Chesterton em seu livro O Homem Eterno:

“Onipotência e impotência, ou divindade e infância, criam definitivamente uma espécie de epigrama que 1 milhão de repetições não conseguem transformar numa banalidade. Não é nenhum exagero chamá-lo de único. Belém é decididamente um lugar onde os extremos se encontram […] Cristo não apenas nasceu pondo-se no mesmo nível do mundo, mas até mesmo abaixo dele. O primeiro ato do drama divino foi representado não apenas num palco que não foi montado num nível acima do espectador, mas, sim, num palco escuro, fechado e afundado fora do alcance dos olhos; e essa é uma ideia muito difícil de expressar na maioria das modalidades de expressão artística… No enigma de Belém, era o céu que estava embaixo da terra.”

O Homem Eterno, de G. K. Chesterton, apresenta uma defesa do cristianismo, explorando a singularidade da figura de Cristo e a centralidade do homem na história da humanidade | Foto: Reprodução

Diferente da “filantropia telescópica”, o verdadeiro amor ao próximo exige a renúncia ao autointeresse e, sobretudo, ao orgulho. E não há melhor modelo de renúncia ao orgulho do que um Deus onipotente que decide se autoesvaziar (“kenosis“) por amor à sua criatura decaída, padecendo junto a ela neste Vale de Lágrimas. É naquele humilde estábulo em Belém, portanto, que se encontra a chave da caridade cristã, que jamais há de nascer num coração orgulhoso, autossatisfeito e petrificado, senão apenas num coração que sangra. Como versou o convertido Oscar Wilde na obra A Balada do Cárcere de Reading:

“Feliz o coração partido: pode a paz
Do perdão conquistar!
Senão, como o homem vai fazer reto o seu plano
E do Erro se limpar?
Como pode, a não ser por coração partido,
O Senhor Cristo entrar?”

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