Toda atividade empreendedora no Brasil vem seguida de uma montanha burocrática quase intransponível. No agro não é diferente, e fica muito mais difícil enfrentar tanta regra e papel quando se é um pequeno produtor rural. Mas um escritório modesto na Prefeitura de São José dos Campos, no interior de São Paulo, está mudando essa realidade. Trata-se do Ponto Rural, uma espécie de Poupatempo do agro que chamou a atenção do governo paulista pelos grandes resultados alcançados.
A implantação do projeto teve início em 2017. Vinícius Corrêa é o arquiteto por trás da iniciativa. Formado em Direito e em gestão ambiental, ele concebeu a ideia enquanto estudava para o mestrado.
São José dos Campos é conhecida por ser um grande polo de tecnologia. Filho e neto de criadores de gado, Corrêa percebeu que, em meio à produção de aviões da Embraer e às pesquisas do ITA, o agro acabou em um papel secundário, apesar de ocupar 68% da área do município. São pequenos produtores de gado de corte, leite e hortaliças buscando um meio de seguir em frente.
Muitas vezes, porém, o crescimento e até mesmo a sobrevivência acabam emperrados pela falta de conhecimento diante da legislação e pela carência de acesso a técnicas mais modernas, como o uso de um trator ou o aproveitamento de insumos no solo. O papel do Poupatempo do agro é exatamente suprir esses tipos de demandas de camponeses que não teriam condições de arcar com os custos para vencê-las.
No Poupatempo do agro
A peça central dos serviços é a regularização fundiária. No Brasil rural de pequenas e médias propriedades, muitas vezes o dono da terra não tem a escritura e a matrícula do imóvel devidamente atualizadas. A regularização nos escritórios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária pode demorar anos — e o processo ainda é caro e confuso. No programa criado em São José do Campos, o problema é resolvido em questão de dias.
Sem esses documentos, não há acesso ao mais básico em um empreendimento rural: o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR). Ele é a chave para todas as ações que envolvem a propriedade. Nem sequer é possível vender ou desmembrar a terra sem isso. Esses papéis também são fundamentais para abrir um CNPJ e ter acesso ao crédito em bancos privados ou públicos. É a partir dessas duas ferramentas que o agricultor consegue dar os primeiros passos para crescer e explorar novas possibilidades na terra, demandando aí os outros serviços do programa.
A lista de atividades oferecidas pelo serviço também inclui a vacinação de animais, o transporte de calcário, a análise de solo, a emissão de guias para o transporte dos animais vendidos, o acesso a tratores e máquinas agrícolas, e um serviço de consultoria que envolve orientações tanto sobre legislação ambiental quanto a respeito de normas e critérios para a instalação de agroindústrias — um processo-chave para agregar valor à produção. Isso aconteceu, por exemplo, com Dimas Vilaça, de 65 anos.
Destravando oportunidades
Há poucos anos, depois de perder a maior parte do que havia acumulado com a venda de cavalos, Dimas começou a reconstruir a vida trabalhando na roça.
“Fui dormir rico e acordei pobre”, lembra. “Trabalhar a terra foi a melhor solução que encontrei para me reconstruir. O Ponto Rural me ajudou a deixar os papéis em dia. Assim, consegui o crédito para investir e tive orientação dos funcionários nos meus projetos.”
No início, Dimas criava gado em alguns hectares de terra arrendados e tinha uma carroça puxada por boi para arar o solo. Com os serviços do Ponto Rural, o agricultor abriu um CNPJ, e conseguiu empréstimos. Com o leite da criação, ele começou a produzir queijo. Hoje, além de engordar animais, o produtor planta milho e usa a colheita para fabricar ração e vender o excedente a outros produtores da região.
Por um tempo, ele usou o trator emprestado pela prefeitura. Recentemente, entretanto, ele comprou seu próprio maquinário. O motivo? “A produção cresceu e não posso mais esperar para usar as máquinas da prefeitura”, explica.
Esse exemplo mostra como a nota de corte para os serviços oferecidos acaba ocorrendo de modo natural. Não há regras definindo a partir de quantos hectares um produtor deixa de ser assistido. Em vez disso, o lugar tem uma estrutura adequada para quem não é grande.
“Um criador com 300 cabeças de gado não vai procurar o Ponto Rural para vacinar seus animais simplesmente porque não compensa para ele”, explica Alberto Alves Marques Filho, secretário de Inovação e Desenvolvimento Econômico. “Esse cidadão já tem sua própria estrutura e precisa de um serviço maior para atender à demanda, o que gera uma barreira natural, liberando a prestação para quem precisa. O mesmo acontece com o uso do trator e outras ferramentas que oferecemos. Na prática, quando o grande nos procura é para a regularização fundiária, por causa da agilidade que conseguimos.”
A equipe fixa no lugar é enxuta. Um funcionário para fazer a triagem, dois auxiliares administrativos, o funcionário a serviço do Incra e um líder coordenando a equipe. A estratégia é realizar as atividades com o intermédio de funcionários de outros setores da prefeitura, a exemplo dos veterinários lotados na Vigilância Sanitária. Eventualmente, a equipe ganha um reforço — isso tende a ocorrer nas campanhas de vacinação e em atividades pontuais em campo. Porém, a mão de obra extra é contratada sob demanda — são funcionários terceirizados para evitar ociosidade.
O segredo da agilidade
A agilidade citada por Marques reduziu a dias processos que antes levavam meses — ou até anos. Isso aconteceu graças à inclusão de um funcionário do Incra na unidade. Ele possui acesso a serviços no sistema que antes teriam de esperar em uma grande fila para passar por análise em São Paulo. A presença dele permitiu descentralizar o serviço, de modo que ele se concentra somente nas demandas locais.
“Hoje, o cadastro das propriedades rurais em São José dos Campos está muito mais próximo do real”, afirma Sinesio Sapuchaí, o funcionário do Incra na unidade.
A atuação dele no local começou em 2018. De lá para cá, o número de propriedades com CCIR deu um salto, saindo de cerca de 3 mil para 4,5 mil. Esse documento é uma espécie de certidão de nascimento da fazenda, sítio ou chácara. Sem ele não há, por exemplo, como acessar os financiamentos do Plano Safra — o programa do governo federal que oferece crédito subsidiado à agropecuária. “Algumas cidades da região têm escritório do Incra que recebe os processos de regularização, mas sem poder processá-los. Daí, as análises são feitas na cidade de São Paulo, onde a fila é muito grande.”
O fluxo é dinâmico. Sapuchaí monta e analisa o processo, insere o parecer no sistema, e um supervisor dele na capital valida todo o trâmite.
Essa operação simples foi fundamental para Thiago Indiani de Oliveira, de 45 anos. Ele resolveu abandonar a carreira de repórter no Rio de Janeiro para assumir um sítio em São José dos Campos que estava na família havia gerações.
A propriedade não ia bem, mas Oliveira decidiu reestruturar o negócio para mudá-lo, e um dos pontos seria a modernização do curral das vacas. Deu certo.
“Não demorou uma semana para fazer a regularização do CCIR”, afirma. No caso dele, a regularização envolveu informações que estavam desatualizadas desde que o lugar era administrado pelo avô. Com os documentos em dia, foi possível contratar o financiamento para comprar um misturador de ração no valor de R$ 250 mil. O equipamento tornou a alimentação do gado mais homogênea, levando a um aumento na produção de leite — e no lucro. São dez litros a mais por dia por animal, um incremento de R$ 3 diários por vaca. O equivalente a um faturamento extra de quase R$ 90 mil nas operações de um ano, considerando que ele mantém 80 animais.
Com a melhora nos negócios, Oliveira chegou a pensar em fabricar queijos. A prefeitura também o ajudou a estudar a viabilidade do negócio, oferecendo orientações quanto às exigências legais e às adaptações de estrutura que seriam necessárias para cumpri-las. No fim das contas, o produtor decidiu que o risco era muito alto diante do custo, diferente do que aconteceu com o casal Antonio Osny e Lori Toledo, de 75 e 74 anos, respectivamente.
Ele é físico e ela é engenheira civil e de segurança do trabalho. Os dois resolveram se lançar em uma empreitada em São José dos Campos: criar ovelhas e fazer queijos com o leite delas. Assim surgiu a marca Capril CapriNy. A dupla começou o negócio em 2008, mas chegou a se arrepender da empreitada. Por uma década, o casal ficou enterrado na burocracia e não conseguia regularizar a produção, relata Lori. Com os serviços oferecidos pela Prefeitura de São José dos Campos, a legalização veio em poucos meses. Hoje, eles criam cerca de 80 cabras e produzem vários tipos de queijo.
“Eles nos ajudaram com as guias de transporte de animais, notas fiscais etc.”, diz. “Tivemos a orientação sobre como abrir tudo o que uma empresa precisa e muitas vezes o empreendedor desconhece.”
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