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Moscou segue iluminada e movimentada, apesar da guerra na Ucrânia, relata a Folha Ilustrada | Foto: Shutterstock
Edição 250

Moscou é uma festa

Para a colunista da Folha, a capital da Rússia é melhor que Paris em tempo de paz

Augusto Nunes
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Na tarde de 29 de dezembro, um domingo, folheava a edição impressa de outro jornalão reduzido a nanico quando colidi com o palavrório que ocupava quase uma página e meia da Folha Ilustrada. “MOSCOU ILUMINADA ESPERA POR 2025”, informava a manchete com o endosso do subtítulo: “Apesar da guerra contra a Ucrânia iniciada em 2022, a vida segue praticamente inalterada”. Meu espanto foi abrandado pela dupla que relatava o milagre: Mônica Bergamo e Serguei Monin. (Não conheço Serguei, que se apresenta nas redes sociais como correspondente do site Brasil de Fato na Rússia, nas rodas de choro e nos blocos. Ela conheço bem — mais do que desejaria.)

Redatores de notas curtas não sabem escrever textos corridos. Previsivelmente, o que se vê é um desfile desconexo de parágrafos mal-ajambrados e separados por estrelinhas. É preciso chegar ao quinto para saber que “a coluna foi a Moscou em novembro para entrevistar Dimitri Peskov, porta-voz de Vladimir Putin há duas décadas, e percorreu a metrópole”. Colunas não viajam. São homens e mulheres que embarcam em aviões e se hospedam em hotéis. Serguei mora na Rússia ou em São Paulo? Sozinha ou acompanhada, Mônica foi à Rússia a convite ou patrocinada pelo próprio jornal? Nesta hipótese, a Folha de S.Paulo merece um 10 com louvor no quesito desperdício com excursões inúteis.

Notícia publicada na Folha de S.Paulo (29/12/2024) | Foto: Reprodução/Folha de S.Paulo

Entrevistar Vladimir Putin é uma coisa. A caricatura de czar mente mais do que respira, mas um bom jornalista sabe desmascarar farsantes valendo-se apenas de perguntas. Entrevistar porta-voz é outra coisa. Quem exerce esse tipo de ofício não tem opinião pessoal e jamais diz o que pensa ou acha de coisa alguma. É uma voz sem direito a pensamento próprio. O texto não informa se a entrevista foi feita. O conteúdo berra que Mônica virou porta-voz do porta-voz. “A maioria dos brasileiros que sabem que uma pessoa vive em Moscou, ou que visitou a cidade, pergunta antes de mais nada como anda a vida por lá, imaginando que, por causa da guerra, ela é sombria”, afirma o palavrório de abertura antes de estacionar numa estrelinha.

O segundo parágrafo agrupa perguntas: “As ruas estão desertas? As lojas e os restaurantes estão fechados? Há falta de luz, água? As prateleiras dos supermercados estão vazias? Dá para comprar macarrão, carne? Como os russos de Moscou estão vivendo? Como eles se viram sem cartão de crédito?”. Respostas em português indigente, separadas por uma estrelinha, ocupam os dois bloquinhos seguintes. O primeiro jura que “ruas, restaurantes e lojas estão abertos e cheios”. O segundo celebra o sucesso do cartão de crédito MIR, “criado pelo Banco Central da Rússia em 2015, no contexto das sanções ocidentais contra o país por causa da anexação da Crimeia, e amplamente usado depois da guerra da Ucrânia, quando as bandeiras estrangeiras saíram completamente do país”.

A colunista se entusiasma com a notícia de que “estrangeiros podem trocar dólares por rublos em dezenas de bancos”. (Lamentavelmente para dez em cada dez forasteiros que cedem à tentação de visitar a Rússia, não é possível trocar rublos por dólares). Ela não revela em que moeda foram financiados os prazeres de que desfrutou em 24 de novembro. Naquele inesquecível domingo de inverno, “com uma sensação de segurança semelhante à que se experimenta nas grandes capitais europeias, graças aos índices de criminalidade baixos se comparados aos das cidades brasileiras, circulei por uma cidade intensamente iluminada”, lembra a viajante. Não porque as festas de fim de ano estavam perto: nessa época, Moscou fica escura já no meio da tarde.

Pessoas participam das celebrações de ano novo perto da Torre Spasskaya, do Kremlin, e da Catedral de São Basílio, no centro de Moscou, Rússia (1º/1/2025) | Foto: Reuters/Evgenia Novozhenina

O passeio incluiu o Selfie, “um restaurante de cozinha autoral que recebeu uma estrela do guia Michelin em 2022”. Tal preciosidade gastronômica está alojada “num centro comercial onde há lojas de eletroeletrônicos, casas de vinho e supermercados com prateleiras abastecidas em que se pode encontrar de Coca-Cola a vinhos franceses, passando por batatas Pringles. Um piso abaixo fica uma churrascaria que também estava lotada nesse dia, com mesas ruidosas, algumas delas celebrando aniversários. Mil dias depois do início da guerra, não há racionamento na capital”. Em quatro palavras: vista por uma enviada da Folha, Moscou é uma festa. “É que a cidade é tratada pelo governo como uma fortaleza inexpugnável, que não pode ser abalada de forma alguma pela guerra”, explica a colunista.

Faltou combinar com os ucranianos, revela o falatório seguinte. “Essa blindagem já foi desafiada. Neste mês, um atentado com um patinete-bomba matou um general russo em uma avenida a 7 km do Kremlin. Em maio, um drone atingiu o Palácio do Senado, no Kremlin. Depois disso, o GPS passou a sofrer interrupções no centro da cidade, o que traz um dos poucos inconvenientes da guerra para os moscovitas. Ao chamar um carro por aplicativos, o passageiro provavelmente vai ter problemas para encontrá-lo no endereço indicado. Isso ocorre porque, com a instabilidade do sistema que permite a localização com precisão, o motorista acaba estacionando sempre um pouco antes ou um pouco depois do endereço correto. Seguir aplicativos de mapas ficou mais complicado.”

Um parágrafo confessa que, em relação a 2019, o fluxo de turistas originários da União Europeia e dos Estados Unidos sofreu uma queda superior a 96,1%. A principal culpada foi a pandemia de covid, avisa a colunista. A guerra e suas consequências — suspensão de voos diretos entre Moscou e dezenas de capitais, por exemplo — apenas agravou o que já era preocupante. “Mas em 2023 o turismo russo começou a se recuperar com o aumento no fluxo de visitantes da China e de países do Oriente Médio”, ressalva Mônica. “Foram emitidos 340 mil vistos estrangeiros para a Rússia, China e Turcomenistão lideram os pedidos.”

O jornalista americano John Hersey entrevistou meia dúzia de japoneses que haviam sobrevivido à explosão da primeira bomba atômica para escrever o clássico Hiroshima, que transporta qualquer leitor sensível para o mais trágico momento da História. Para reconstruir a Moscou das fantasias de Putin, a dupla da Folha precisou de um único e escasso comerciante russo: Andrei Tikhamerov, dono de uma loja de produtos de cerâmica. Trecho do depoimento: “Nunca contamos muito com os turistas, porque eles vinham mas compravam pouco. Agora surgiram turistas árabes em grande quantidade, e eles querem comprar pequenas xícaras de café”. Uma estrelinha interrompe o relato para enfeitá-lo com um aparte da entrevistadora: “As vendas seguem, a vida segue”, filosofa.

Outra estrelinha e Tikhamerov prossegue: “As pessoas já se acostumaram com o conflito. Eu mesmo não notei grandes diferenças. Sim, os carros ficaram mais caros. Meu carro já não está muito bom, e compreendo que não posso adquirir um novo. É preciso consertar o antigo, dirigir com o que se tem. Minha vida praticamente não mudou”. Pela animação do declarante, estaria à beira da perfeição se não fosse a teimosia dos parentes ucranianos. “Mas o que afinal nos difere?, costumo perguntar a eles. A única diferença é que nós vivemos aqui, vocês vivem aí.” Para Tikhamerov, a família inteira, esteja na Ucrânia ou na Rússia, deveria ter Vladi

mir Putin como governante. O problema é a propaganda ucraniana, que insiste em enxergar nações distintas onde só existe a Mãe Rússia.

Trecho da coluna de Mônica Bergamo para a Folha de S.Paulo (29/12/2024) | Foto: Reprodução/Folha de S.Paulo

O colosso de vogais e consoantes produzido por Mônica e Serguei tem quase 3 mil palavras. “Guerra” aparece várias vezes. “Invasão”, nenhuma. É a cara do jornalismo estatizado à brasileira. Publica-se o que convém, omite-se o que desagrada ao consórcio no poder. Vale essa narrativa, codinome mais recente da velha versão. Desde Gutenberg, quase sempre há mais de uma, mas a única real é a que se ampara nos fatos. O resto é falsificação gerada por idiotia ou safadeza. Não existe a verdade de cada um. A verdade factual é uma só: é o contrário da mentira. Perde tempo quem briga com fatos, que sempre acabam prevalecendo.

A verdade às vezes desmaia, pode até ficar sepultada por longo tempo. Mas não morre nunca. Sempre ressurge e triunfa. Devotos de seitas lideradas por algum Homem Providencial do momento não sabem disso. Nunca souberam. Jamais saberão.

Leia também “O ano da toga”

17 comentários
  1. Regina Maria Falcão Rangel Vila
    Regina Maria Falcão Rangel Vila

    Há muito tempo deixei de assinar a Folha exatamente por não suportar esse falso jornalismo.

  2. CLEIDE SANCHEZ FERREIRA ITA
    CLEIDE SANCHEZ FERREIRA ITA

    Você é nota mil Augusto

  3. CLEIDE SANCHEZ FERREIRA ITA
    CLEIDE SANCHEZ FERREIRA ITA

    Você é nota mil Augusto

  4. Aeduardo
    Aeduardo

    Caro mestre Augusto Nunes
    O inconfundível ‘sniper’ do jornalismo contemporâneo brasileiro!
    Ao escolher um alvo, ah!, definitivamente nunca erra a mosca. Esta vigarista mais que merece uma boa sova de desmascaramento na moral como esta publicada!
    Beleza demais

  5. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Mestre Augusto Nunes. Como é bom ler você!

  6. Ernando Nogueira Barros
    Ernando Nogueira Barros

    Folha de São Paulo rss

  7. Celso Ricardo Kfouri Caetano
    Celso Ricardo Kfouri Caetano

    Só mesmo Augusto Nunes para nos proporcionar excelentes artigos e colocar em evidência a decadência infeliz que tomou conta de certos veículos da comunicação e em particular seus ditos jornalistas passando ao leitor situações controversas e que na maioria das vezes não correspondem a realidade. Lembrando: Quem mente tira a oportunidade do outro conhecer a verdade.

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Augusto tu és um craque do jornalismo

  9. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Quem mandou assinar o jornal?
    Mesmo você, jornalista que deve se informar de tudo, não merece perder seu tempo.
    Não dá para acreditar que a mulher teve a cara de pau de publicar isso. Moscou é quase uma Disneylândia! Um lugar aprazível! Uma Amsterdã em que se pode fumar maconha e protestar contra o regime. Ah, que cidade alegre, descontraída, livre para se declarar o voto nas próximas eleições. Vou-me embora pra Moscou.

  10. Mario Marcos De Camargo
    Mario Marcos De Camargo

    O que esperar de M. Bérgamo, colunista de fofoca. Como um país que invadiu um vizinho imaginando que seria mamão com açúcar e lá chegando viu que o buraco era mais embaixo? E viu seu exercito e marinha ser detonado, tanto que necessita de mercenários e norte coreanos para subsistir, fora isso sua economia que nuca foi uma maravilha, baseada em petróleo sofrendo sanções. É igual o marciano que chega a Brasília que é uma bolha capital de Narnia e acha pitoresco. Acho que lá na Sibéria ou na cidade de Koprov teria uma visão mais realista da questão. Quer ter uma vaga ideia de como é o ronco da cuíca? Faça o seguinte: Coloca no Google Maps [Russia – Moscovo] , clica naquele bonequinho amarelo na parte inferior bem embaixo, vai aparecer monte de linhas azuis, siga a s linhas azuis uns 200 km de Moscou e análise. Chama a atenção como o lugar é deserto e carros de 10 a 15 anos esporadicamente trafegando, e cheque as imagens e verá que a captura do satélite é recente, e fico imaginado quem foi o camarada que permitiu o Google de transitar por lá.

  11. João Paulo Pinheiro Costa
    João Paulo Pinheiro Costa

    Sensacional, como sempre. Parabéns, Augusto Nunes e Revista Oeste!

    1. MNJM
      MNJM

      Mestre dos mestres. Que texto belíssimo.

  12. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Bancada com nosso dinheiro, e as gordas verbas ”publicitárias”.

  13. Vinicius Freitas
    Vinicius Freitas

    O que se pode esperar de um folhetim?

    1. CARLOS ITAGIBA PAES BARBOSA
      CARLOS ITAGIBA PAES BARBOSA

      Augusto Nunes, você é o grande texto do jornalismo nacional. Parabéns!

  14. Jurandir
    Jurandir

    Grande mestre Augusto. Sempre certeiro nas suas críticas do consórcio da mídia prostituta bancada com grana pública. Essa Mônica é uma vergonha, péssima jornalista, assessora de imprensa petista com lugar de falar no ex jornalão!

  15. Paulo Miranda
    Paulo Miranda

    Essa Mônica Bergamo é uma BAITA duma mau-caráter! Infelizmente tive o desprazer de conhece-la pessoalmente em São Paulo, em maio de 2012, de cara já achei ela uma mulher do Mal. Cruz-credo!

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