Unanimidade é algo raramente visto no Oriente Médio. Por isso, é surpreendente perceber que não importa a quem se pergunte sobre qual será o futuro da Síria — a resposta de analistas internacionais, e até mesmo da população local, será inevitavelmente: “É difícil saber”.
O fim do governo do ex-presidente Bashar al-Assad, que fugiu do país sorrateiramente na calada da noite para exilar-se na Rússia, foi motivo de celebrações da maior parte da população síria. Por motivos óbvios: sob sua desmedida opressão, a população sofreu amargamente em especial a partir de 2011, quando Assad tentou conter manifestações populares com a típica mão de ferro da ditadura, conduzindo seu país a uma guerra civil sangrenta que resultou em mais de 600 mil mortes, 7 milhões de deslocados internos e a emigração de 6 milhões de sírios. Se por um lado a atual “dança das cadeiras” gerou mais uma fonte de instabilidade na região, por outro deflagrou uma guerra de forças entre os países que estão de diferentes formas ligados à Síria, a exemplo da Turquia e do Irã.
No caso específico de Israel, a mudança de poder pode impactar um único aspecto, o da segurança. Frente à situação caótica instaurada no país vizinho — um inimigo histórico do Estado judeu, que até hoje não aceitou assinar com ele um acordo de paz —, Israel tem duas opções: acreditar nas intenções pacíficas do novo regime e acompanhar os acontecimentos, ou duvidar delas enquanto assiste aos próximos capítulos. Israel escolheu a segunda opção e lançou rapidamente um ataque aéreo que, em apenas 70 horas, destruiu instalações militares, arsenais e fábricas de armamentos, especialmente armas químicas, do regime Assad.
“Não poderíamos correr o risco de haver armas químicas em poder de milícias islâmicas”, declarou Gideon Sa’ar, ministro de Relações Exteriores de Israel. Além disso, divisões do exército israelense foram alocadas em uma área que, segundo o acordo assinado entre os dois países em 1974, deveria manter-se desmilitarizada. Essa região montanhosa, com picos de até 2,8 mil metros de altura, proporciona uma visão privilegiada até Damasco e também funciona como uma barreira física para qualquer tentativa de avanço sírio.
É importante lembrar que a Síria não é apenas um vizinho pouco amistoso de Israel: existe entre eles uma antiga disputa territorial. As Colinas do Golã, área fronteiriça que comprime 1,2 mil quilômetros quadrados, foi anexada por Israel depois de sua vitória contra a coalizão de países árabes que o atacaram na Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Trocando um ditador por um terrorista
Não à toa tem-se pouca ideia do que vem pela frente, uma vez que o atual líder do país, o qual comandou o avanço do Exército Livre da Síria — coalizão de milícias contrárias a Assad —, é comandante de uma delas: o grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), que em 2018 foi designado oficialmente pelos Estados Unidos como organização terrorista. O HTS é, na verdade, o braço sírio da conhecida Al-Qaeda, nada menos do que a autora do atentado às Torres Gêmeas em Nova York, citada em um relatório da Inteligência americana de 2019 como “um dos grupos terroristas mais ativos e perigosos do mundo”.
Ahmed Hussein al-Shara, que no início de sua “carreira” adotou o nome al-Jolani — interessante notar que a alcunha vem do nome Golã, local de nascimento de seu pai — , está fazendo um esforço hercúleo para se desvincular da imagem de terrorista e adotar outra mais branda e aceitável. Sob medida, aliás, para o mundo ocidental, do qual precisará para reconstruir uma Síria arrasada por mais de dez anos de guerra civil. A longa barba, típica dos jihadistas, foi aparada, o kefiah desapareceu de sua cabeça e, no lugar da farda, ele agora exibe-se publicamente vestindo camisa e terno. A exemplo, importante citar, do que fez o aiatolá Khomeini antes de tomar o poder no Irã, ou o Talibã antes de enterrar o Afeganistão em um mundo de trevas.
Alguns governantes ocidentais se mostram encantados com esse novo personagem, inclusive porque ele lhes abre a perspectiva de verem-se livres dos refugiados sírios que invadiram seus países a partir de 2011. Já o ministro israelense Sa’ar — e o mesmo pode ser dito sobre o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu — não se comoveu com a mudança de estilo. “O regime atual em Damasco é essencialmente uma gangue, e não um governo legítimo. O país está fragmentado. Outras áreas, como Idlib por exemplo, estão no momento sob controle de extremistas islâmicos”, disse.
A israelo-americana Caroline Glick, formada em ciências políticas pela Universidade Columbia, ex-conselheira governamental de política internacional e autora do podcast In Focus, concorda com o ministro Sa’ar. Ela explica sua posição baseando-se na própria história na formação do Estado sírio e de alguns dos países dessa parte do mundo, resultantes do acordo Sykes-Picot firmado entre a França e a Grã-Bretanha após a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. Caroline afirma:
“Os diplomatas Mark Sykes e François Georges-Picot acreditaram que a evolução natural, após a queda dos turcos, seria a criação de Estados-nação, os quais seriam em um primeiro momento governados como protetorados e, depois disso, se tornariam países soberanos. Diferentes etnias, sociedades e grupos religiosos viviam ali. E como você transforma territórios multitribais em Estados? Por meio da opressão, claro.”
Segundo ela, “o que assistimos hoje é a dissolução final desse acordo, e a esperança de que a Síria continue funcionando como uma única entidade é completamente maluca”. Caroline, como muitos analistas em Israel, também não acredita na versão remodelada de al-Jolani: “Ele é um jihadista — e não existem jihadistas moderados”.
O tenente-coronel da reserva israelense Stéphane Cohen, chefe de departamento no Centro de Análise de Dados do Instituto de Estudos sobre Segurança Nacional, afrima que ainda levará algum tempo até que vejamos as fronteiras definitivas de alguns países árabes do Oriente Médio. Cohen afirma:
“Elas ainda se movem constantemente, pois a região não passou por todos os processos pelos quais passou a Europa, por exemplo. Ela sempre foi povoada por tribos, depois viveu durante 900 anos sob domínio otomano, em seguida sob domínio colonialista, até que foi artificialmente dividida em Estados — sem nunca perder esse caráter de divisão interna tribal.”
Cohen acredita que uma Síria unificada dificilmente comportaria tantas divisões internas.
Há também quem veja a situação com algum otimismo. Mordechai Kedar, acadêmico israelense da Universidade Bar-Ilan, especializado em cultura árabe, afirma:
“A cúpula do HTS está, até o momento, agindo racionalmente. Não atacaram nem destruíram instituições governamentais, as quais permanecem atuando, e não prenderam civis indiscriminadamente. Acredito que não devemos esperar que a Síria se torne um Estado democrático, porque este não é um sistema praticado nos países árabes. Mas ele pode ser pluralista, tolerante e inclusivo, como na Tunísia.”
Divisão em três
Muitos analistas estão utilizando um mapa que mostra a possível divisão do país em três áreas segundo suas maiorias étnicas de drusos e curdos, alauitas e sunitas. Essa solução talvez oferecesse uma resposta às diferentes minorias do país, preocupadas com seu futuro próximo, entre elas os quase 600 mil cristãos sírios, 2,5 milhões de curdos e 1 milhão de drusos. Elas têm seus motivos, já que, apesar do discurso conciliatório de al-Jolani, estão sendo registrados casos diários de confrontos e agressões entre diferentes grupos, levantando dúvidas acerca da real possibilidade de haver uma Síria unificada.
Na mídia cristã local, por exemplo, desde novembro — quando as forças rebeldes começaram a avançar pelas cidades mais importantes do país — estão sendo noticiados eventos de agressões: civis são confrontados nas ruas enquanto igrejas e monumentos são vandalizados. Dois terços da população cristã na Síria deixou o país desde 2011, resultado do novo califado estabelecido pelo Estado Islâmico (ISIS), que durou de 2014 a 2019. Detalhe: até o século 7, antes que o Islã invadisse a Síria, o cristianismo era a religião local majoritária.
“Uma amiga drusa, que caminhava sem a cabeça coberta em Damasco, foi recentemente abordada por um grupo de combatentes”, conta Ata Farhat, de 53 anos, jornalista druso residente no norte de Israel, que viveu por sete anos em Damasco antes da guerra civil. “Eles a interrogaram rapidamente e depois avisaram que, se a vissem novamente com os cabelos expostos, ela teria problemas”. Ele conta que recebeu a notícia da queda de Assad com enorme alegria mas que, no momento seguinte, angustiou-se com a preocupação sobre o que acontecerá em seguida. “Só acreditarei no que al-Jolani diz no momento em que ele raspar a barba e convocar eleições. Precisamos que haja pressão internacional para que se construa um governo moderado e eleito democraticamente. Esses que estão aí são membros da Al-Qaeda — será impossível viver sob eles.”
Assim que declarou o fim do regime Assad, al-Jolani afirmou publicamente que em seis meses seriam convocadas eleições na Síria. Nesta semana, seu discurso mudou: “A Síria poderá ter eleições no futuro, mas precisaremos de quatro anos para preparar o país para elas, uma vez que precisamos antes escrever uma nova Constituição”.
O ativista social druso Nabeh Alhalabi, de 53 anos, confirma que as minorias sírias temem o futuro próximo em razão justamente do histórico de al-Jolani: “Ele adotou um discurso que não condiz com a forma como viveu até hoje — mesmo assim, está atuando como líder de Estado e tem sob si cerca de 30 mil soldados. Mas uma coisa posso garantir: os sírios vão recusar ser controlados por um regime islâmico”.
Alhalabi vive em Majdal Shams, cidade israelense na fronteira com a Síria. O município montanhoso é povoado exclusivamente por drusos sírios, que formam uma minoria bastante peculiar em Israel. Eles são conhecidos por sua lealdade ao país em que vivem e, no exército israelense, são combatentes vigorosos que chegam a ocupar altos rankings. Outra característica interessante é o fato de nunca abandonarem suas terras — e isso explica a tragédia que ganhou as manchetes do mundo em 27 de julho, depois de um míssil lançado pelo Hezbollah ter caído em um campo de futebol, matando 12 crianças e ferindo outras 44 pessoas. Praticamente todos os drusos em Israel têm familiares do outro lado da fronteira e sonham com um cenário de paz que os permita uma convivência normalizada.
“Tudo o que acontece lá nos influencia aqui”, explica Dolan Abu Saleh, prefeito de Majdal Shams. “E sabemos que nossos parentes estão muito inseguros, sem saber o que vem pela frente.” Ele, como todos os demais drusos, rezam por uma solução pacífica para a Síria. “Caso um governo democrático se estabeleça ali, toda a nossa região viverá um desenvolvimento econômico fenomenal.”
Que assim seja.
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Que o povo desse país possa ter paz e prosperidade. Assim como o do Brasil e demais países