As imagens da Esplanada dos Ministérios, no coração de Brasília, completamente esvaziada no 8 de janeiro de 2025, dois anos depois do tumulto que terminou em quebra-quebra, retratam que faltou público no ato organizado pelo presidente Lula da Silva e seus ministros mais próximos no Supremo Tribunal Federal (STF) para lembrar da data. A imprensa tradicional, entusiasta da tese de que a democracia viveu dias de perigo, teve dificuldades na tarde da última quarta-feira. É a prova viva de que é impossível realizar uma passeata pela democracia sem a presença do povo.
A cena do palanque montado dentro do Palácio do Planalto também é ruim: com um chapéu Panamá que não larga mais, Lula quis demonstrar intimidade com o ministro Alexandre de Moraes, do STF, a quem chamou de “Xandão”. “Não adianta ficar nervoso, porque ninguém vai parar de te chamar de Xandão”, disse. Uma pequena plateia com crachá aplaudiu o ministro, que retribuiu com sorrisos. Estava ao lado do colega de toga Edson Fachin, do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e do advogado-geral da União, Jorge Messias — que lhe cochichou algo ao pé do ouvido.
Dos 27 governadores convidados, foram quatro: os petistas Elmano de Freitas (Ceará), Fátima Bezerra (Rio Grande do Norte) e Jerônimo Rodrigues (Bahia), e João Azevêdo, do PSB (Paraíba). Os presidentes do Supremo, Luís Roberto Barroso; do Senado, Rodrigo Pacheco; e da Câmara, Arthur Lira, não compareceram. Barroso mandou uma breve mensagem por escrito, lida por Fachin.
As desculpas pelas ausências do trio foram protocolares: compromissos agendados no ano passado, como viagens ao exterior, ou questões de saúde de familiares. Em Brasília, contudo, os grupos de WhatsApp das bancadas do Congresso já cravavam desde o Natal que Pacheco e Lira não iriam porque o projeto de anistia deve ser votado em plenário neste ano — quer o Supremo concorde, quer não, conforme compromisso firmado com os futuros presidentes das Casas Legislativas, que tomam posse no próximo mês.
Do lado de fora do Palácio do Planalto, um pequeno grupo usando cores vermelhas e bonés do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) gritava “sem anistia”, em alusão à fila de 900 réus que ainda respondem por cinco tipos de crimes e podem ter o mesmo destino dos 371 condenados até agora: a maioria foi sentenciada a penas de 13 a 17 anos de prisão.
A Polícia Militar do Distrito Federal não divulgou estimativa dos presentes, mas as câmeras de televisão não deixam dúvidas de que a aglomeração juntou cerca de mil pessoas, que se dispersaram rapidamente com a proximidade do horário do almoço e um chuvisco em Brasília — as imagens da CNN (veja o vídeo abaixo) mostram até militantes lanchando, sentados na Praça dos Três Poderes. Lula frustrou os presentes e não disse duas frases durante o ato na praça.
Fato é que o patético “abraço da democracia”, promovido pelos que se recusam a virar a página do 8 de janeiro, mostra que esse consórcio só está, de fato, abraçado ao poder. Longe das ruas, Lula tentou de tudo desde a virada do ano para sustentar a ladainha de que o seu governo é uma trincheira contra golpistas de extrema direita. É uma cortina de fumaça depois de dois anos de uma gestão capenga, com ministros fracos, áreas como saúde e segurança pública em frangalhos, e sem dinheiro em caixa para amplificar o alcance do Bolsa Família. Não à toa, sua grande aposta para a metade final do mandato foi levar o marqueteiro de campanha, Sidônio Palmeira, para a Secretaria de Comunicação do Palácio do Planalto em busca de uma estampa nova para o governo.
Na véspera do ato de 8 de janeiro, o petista apelou até para a estatueta do Globo de Ouro, vencida pela atriz Fernanda Torres, para capitalizar politicamente — ela é amiga da primeira-dama, Janja da Silva. A assessoria do governo produziu um vídeo de Lula conversando ao telefone com a atriz sobre a importância do prêmio para combater o fascismo da direita. O filme se chama Ainda Estou Aqui, é dirigido por Walter Salles e tem a temática da ditadura militar, vista pela angular da esquerda. Não causou surpresa o fato de o presidente usar a expressão “ainda estamos aqui” no seu discurso de quarta-feira, 8. Janja também quis discursar, embora não tenha cargo público. Objetos restaurados, como o relógio de dom João VI, foram devolvidos aos seus lugares.
No ápice do pronunciamento, Lula chegou a dizer que “escapou da morte junto com Xandão e o companheiro Alckmin”. Ainda que o país estivesse ameaçado por forças paramilitares, se já é pouco crível que alguém tenha tramado a morte de qualquer um deles, a de Geraldo Alckmin é ainda mais difícil. Mas tudo isso é parte do roteiro com nuances de ficção traçado pela Polícia Federal para sustentar que, em algum momento, eles seriam vítimas de assassinatos hollywoodianos — algo que, além dos comentaristas da Rede Globo, ninguém nunca levou a sério.
O próprio gabinete de Alexandre de Moraes emitiu um atestado de fracasso sobre o golpe imaginário. Mesmo com a Polícia Federal à disposição há dois anos, não conseguiu chegar a lugar nenhum. Alguns números jogam luz nisso tudo: somente os inquéritos sobre o 8 de janeiro provocaram 488 quebras de sigilo e 342 operações de busca e apreensão, além de centenas de prisões em flagrante ou provisórias. E até hoje não se descobriu quem mandou dar um golpe de Estado e seria beneficiado com isso.
Tampouco o relatório de 900 páginas da Polícia Federal tem argamassa para subsidiar uma ação penal na Corte — é um juntado de conversas amalucadas de WhatsApp sobre planos de envenenamento e enforcamento de autoridades em praça pública, a existência de “kids pretos” de infiltração do Exército, um agente secreto que falhou na missão porque perdeu o táxi e um Fiat Palio antigo, a máquina escolhida para executar um sequestro em Goiânia.
Mais: se não há nenhuma prova concreta do uso de pólvora naquela tarde, o que sustenta condenações pelo crime de “associação criminosa armada”? O batom da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que escreveu a frase “perdeu, mané”, de Luís Roberto Barroso, na estátua de pedra em frente ao Supremo? Naquela tarde, a Polícia Militar do Distrito Federal só recolheu estilingues e bolas de gude, artefatos típicos de arruaceiros urbanos, como ocorreu nos protestos dos black blocs de 2013. Infelizmente, há décadas Brasília é palco de cenas de depredação, como em 2006, 2013 e 2016, mas em nenhum desses momentos os responsáveis foram punidos de forma tão implacável e sem direito ao duplo grau de jurisdição — a reanálise do caso por outro tribunal independente.
“Ao transformar essa data em uma celebração, o governo tenta construir uma narrativa oportunista. Esse discurso distorcido serve para justificar o cerceamento da liberdade de expressão, a criminalização de civis e a prisão sem julgamento. O episódio de 8 de janeiro não pode mais ser usado como pretexto para silenciar vozes dissidentes.”
(Deputado Luciano Zucco, do PL-RS, líder da oposição na Câmara)
Há dois anos, centenas de famílias tiveram a vida destroçada por prisões e condenações do STF (leia reportagem de Cristyan Costa nesta edição). São brasileiros que jamais arriscariam sua vida se soubessem que seriam tratados como golpistas ou terroristas. Quantos ali tinham capacidade física para manusear uma metralhadora? Eram vendedores ambulantes, cabeleireiras, donas de casa e entregadores de pizza. Mais de 350 pessoas já foram sentenciadas a penas nem sequer impostas a criminosos de verdade, como traficantes de drogas ou assaltantes. Mas aqui entra um detalhe: esses ladrões e assassinos conseguem a liberdade em pouco tempo, porque seus advogados podem recorrer das decisões em todas as instâncias do Judiciário, e raramente deixam a cadeia usando uma tornozeleira eletrônica.
Por exemplo: o morador de rua Jeferson Figueiredo foi absolvido por Alexandre de Moraes nesta semana, depois de passar um ano entre idas e vindas para a cela. Ele chegou a ser libertado no período por alguns dias com uma tornozeleira eletrônica, mas voltou para a cadeia por descumprir medidas cautelares. A defesa argumentou o óbvio: ele é um andarilho, passa o dia à procura do que comer e dorme em abrigos públicos. Figueiredo foi preso no dia 9 de janeiro de 2023 porque estava em frente ao quartel do Exército pedindo comida. Ele teve suas garantias legais preservadas? Se não, no caso dele, quem errou? Quem o prendeu ou o juiz que o manteve preso por tanto tempo?
A quem interessa, então, festejar esse dia?
Como escreveu J.R. Guzzo em artigo publicado nesta semana no jornal Gazeta do Povo, “a última contribuição do STF ao acervo cada vez maior de aberrações que vem amontoando em seu museu de cera é a tentativa de transformar o 8 de janeiro numa espécie de nova data nacional”. Seria quase um feriado, talvez ponto facultativo em escolas, universidades e no funcionalismo público — assim, quem sabe, mais gente apareceria na Praça dos Três Poderes. Mas a chance de isso dar certo é zero. É uma data que o Brasil não gosta de lembrar, justamente pelo que veio depois dela. No palanque de Lula e seus amigos no STF, ficou ainda mais claro quem não quer esquecê-la. Talvez, por ser o único discurso que lhes resta.
— Com reportagem de Sarah Peres
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A música Apesar de Você, de Chico Buarque, bem que poderia se transformar no hino à Anistia dos presos políticos do 8 de janeiro e outros sob a batuta do ministro do STF. Os “anos de chumbo” recentes têm também os mesmos ingredientes do período da ditadura militar: perseguições, prisões, torturas, mortes e exílio, como aparece em consulta ao Google.