O Brasil, conforme nos diziam com certo orgulho os velhos professores de geografia, é um país de contrastes. Temos de tudo: a Floresta Amazônica e os Pampas gaúchos, o Pantanal de Mato Grosso e o semiárido nordestino. Nunca ficou bem claro para os alunos qual era a vantagem de ter esse semiárido, por exemplo, mas no geral tinha-se uma impressão positiva: que bom para nós que o Brasil é um país de contrastes. A inocência de outros tempos já foi para o espaço há muito tempo. Os contrastes que mais chamam a atenção hoje são outros — e o pior deles, presente todos os dias na vida pública, é a diferença rasteira com que a lei trata os cidadãos segundo as suas posições políticas.
A abolição do sistema judicial brasileiro, hoje substituído por um arquipélago de facções políticas e criminosas, é a responsável direta pelo sepultamento oficial, no Brasil, do princípio universal de que todos são iguais perante a lei. Não são mais — e quem construiu esse novo país de contrastes foram as sentenças sistemáticas do STF e dos tribunais superiores, criando a jurisprudência segundo a qual as causas descritas como “de esquerda” ficam protegidas eternamente por direitos que não existem, e as causas “de direita” não podem invocar a seu favor, nunca, os direitos que a lei estabelece para todos.
As facções políticas inventaram um novo Direito que não é Direito, e sim programa de governo. Não aceitam mais a ideia geral de que o juiz é um funcionário do Estado com a obrigação de fornecer justiça segundo o que está escrito na lei, aprovada pelos representantes dos cidadãos. Estão convencidas de que os juízes são hoje “agentes de mudanças na sociedade” e que, portanto, têm o direito e o dever de tomar decisões que obedecem não mais aos códigos legais, mas à sua “consciência política”, ou aos mandamentos da sua seita partidária. Com as facções criminosas, que se multiplicam como ratos por meio da venda generalizada de sentenças, é mais simples: tem razão quem paga mais. Naturalmente, está aberta a todos a possibilidade de fazer dupla militância, e operar nas duas facções ao mesmo tempo.
Há centenas de comprovações objetivas (ou “fáticas”, como gostam de escrever os magistrados em sua sintaxe atual, pretensiosa e brega) do crescimento desse Brasil em que direitos e obrigações que valem para uns não valem para outros, e vice-versa ao contrário. Não é preciso ir longe. Todo o “Golpe dos Estilingues”, que STF e governo Lula comemoram como uma nova Batalha de Guararapes, é uma espécie de museu a céu aberto, tipo Inhotim, da degeneração de um sistema judicial que condena a até 17 anos de prisão, por motivos estritamente políticos, participantes de uma arruaça em Brasília (leia reportagem de Silvio Navarro nesta edição). Existem, no entanto, os top ten do gênero.
Um dos mais admiráveis envolve o novo e revolucionário conceito do que é “prova” — e do que não é — no “Direito consequencialista” que se aplica hoje no Brasil, no lugar do Direito que existe no mundo democrático. Pela atual doutrina do STF, que infectou para baixo o Judiciário como um vírus saído de um laboratório chinês, prova é qualquer alegação, por mais sobrenatural que seja, que possa incriminar um inimigo político dos magistrados. Exatamente ao mesmo tempo, não é prova, nem a pau, nada que realmente prove a culpa dos amigos, por mais flagrante que seja. Quer um exemplo, um só, e que vale por uma comédia inteira? Basta olhar para o que está acontecendo, ao mesmo tempo, com o talvez futuro presidente do PT, o deputado José Guimarães, e com o general Braga, acusado de “golpe”.
O deputado Guimarães, irmão de um desses apóstolos do PT que têm diploma de “figura histórica” do partido, é um dos grandes clássicos nacionais na modalidade “dinheiro na cueca” — maneira de transportar moeda sonante no Brasil do início do século, quando o portador, por alguma razão de foro íntimo, não queria que ficassem sabendo da existência dessa granola. Hoje, com o Pix e as ferramentas financeiras de última geração que estão disponíveis para a ladroagem brasileira (há até “emendas Pix”), já não se usa tanto, mas naquela época a vida era mais difícil. O fato é que um assessor do deputado foi preso no Aeroporto de Congonhas com US$ 100 mil escondidos na cueca, em verdinhas uma em cima da outra, mais R$ 200 mil numa maleta de viagem. Que tal, como prova material?
Em qualquer lugar do mundo, mesmo no Terceiro e no Quarto, um monte de dinheiro socado na cueca de um aspone de político seria considerado um open-and-shut case — ou seja, um desses casos criminais que são abertos e encerrados na mesma hora, tão óbvia é a culpa do acusado. Mas, no Brasil em que o STF nos deu a “recivilização”, a noção de “prova” funciona exatamente ao avesso. O caso do deputado Guimarães aconteceu em 2005, quando o “Mensalão” petista rolava em toda a sua beleza, e dali para cá, pelo menos em matéria de política, ele só teve alegria — tanto que está para virar presidente do PT, que não ganha eleição, mas manda no Erário. Não deveria ser o contrário? Deveria, mas nós somos um país de contrastes.
Aqui, tanto pela hermenêutica como pela propedêutica do novo Judiciário “consequencialista”, uma prova é uma prova, e outra prova é outra prova. Prova que num país decente mandaria qualquer gato gordo para o xadrez, ou mesmo gato magro, aqui leva o sujeito para a presidência do partido do governo. É a consequência, entendeu? Se a prova, como foi no caso, vai dar ruim para alguém da esquerda, ela deixa automaticamente de ser prova. Se continuasse sendo, também seria preciso aplicar a lei, e aplicar a lei teria consequências péssimas para as causas populares, civilizatórias e inclusivas. Resultado: após 16 anos de investigação, dos dólares e da cueca, as majestosas instituições do Brasil chegaram à conclusão, em 2021, de que não havia provas contra os envolvidos.
Considere-se, agora, o caso do general Braga Netto, preso desde o ano passado sob a suspeita de ser o segundo maior culpado (o primeiro você já está cansado de saber quem é) pelo golpe armado que jamais ocorreu — a começar pelo fato básico de que nunca teve armas mais perigosas que um pacote de bolinhas de gude. A Polícia Federal inventou um enredo de gibi marca barbante para prender o general. Foi um negócio tão ruim, mas tão ruim, que uma das provas que o consórcio PF-mídia apresentou para demonstrar seu envolvimento foi uma “sacola de vinho” na qual “haveria”, segundo imagina a polícia, “dinheiro” para “financiar o golpe”. A partir daí, como diria Castro Alves, estamos “em pleno mar”. Ou seja: vale tudo.
O STF quer deixar o general Braga preso pelo resto da vida por causa desse e de outros delírios da mesma qualidade. A tal sacola de vinho era dele? Não. Alguém deu a ele? Não. Ele viu a sacola, pelo menos? Não. Alguém viu? Não. Quanto dinheiro havia dentro? Não se sabe. Ninguém viu nem contou? Não, ninguém viu nem contou. Qual era a cor da sacola? Era de papel? De pano? De que tamanho? Também não se sabe. Ficamos assim, então. No caso do provável futuro presidente do PT há o dinheiro, há a cueca, e há o portador do dinheiro e da cueca. No caso no general Braga não há o dinheiro, não há a sacola de vinho, não há o vinho, e nem o nome de quem estava com o dinheiro, a sacola ou o vinho. No caso do deputado, a Justiça brasileira tem a certeza de que não há provas, embora haja excesso de provas. No caso do general, a mesma Justiça tem a certeza de que há provas, embora haja ausência absoluta de qualquer prova.
A ciência jurídica criada pelo consórcio STF-Lula no Brasil manda absolver o acusado quando houver provas demais contra ele — conforme a carteirinha do seu partido ou da sua seita política. Simetricamente, manda prender quem está com a carteirinha errada pelos critérios do regime. Não é só o linchamento, sem direito de defesa, pelo delito de “abolição violenta” do “Estado de Direito”. Quem está na lista negra da nossa Justiça civilizatória tem direito também a criações exclusivas como o flagrante perpétuo, a prisão preventiva por tempo indeterminado e a proibição de falar o que você ainda não falou na internet. Desfruta os benefícios da morte nos cárceres do STF por falta de cuidados médicos. Há a exigência de fiança para crimes inafiançáveis, a anulação da palavra “quaisquer” do dicionário da língua portuguesa e a devolução de dinheiro roubado para quem roubou, confessou que roubou, prometeu devolver o que roubou — mas está no círculo encantado do “amigo do amigo de meu pai”.
O Brasil do STF, de Lula e do PT virou um país perigoso para quem é inocente.
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Sim,Brasil é um país de contrastes,Mas contrastes nas provas coletadas de acordo com o suspeito?aí é muita corrupção, ideologia e ditadura. Se o investigado é de esquerda e muito próximo do STF, com certeza será beneficiado, se for uma cabeleireira que usa baton,será condenada por 17 anos em prisão fechada.Esse é o Brasil de hoje.
Rumo a Venezuela.
e tu não sabe o que acontece no fundo do sertão com obras de pequeno e médio porte… quando a gente vê o que gastaram é pasra geandes obras… mas foi pequeninha e só os bugius acompanharam a construção.
E FIZERAM DO PAIS UM IMENSO PUTEIRO … Cazuza.
Não seria isso a aplicação real do Direito Penal do Inimigo? Juntar, num saco só, todas as pessoas de direita, e considerá-las culpadas?
Guzzo!!!
Elogiar mais um espetacular artigo do Guzzo chega a ser pretencioso. Não resistindo à tentação, eu diria, que são fantásticos. Lamentavelmente, parece que àqueles a quem são dirigidos, não os lêm, ou que quem os lê, finge que não lê. Muitos devem sentir um enorme impulso de enfiarem a cara dentro da latrina e dar descarga. Talvez não. Quem deveria se sentir assim, na verdade sente-se acima do bem e do mal, acima de tudo e de todos. Só não consigo imaginar, até quando. Há um dia para qualquer coisa acabar. Talvez demore, mas vai acontecer.
Mestre J. Roberto Guzzo, feliz é o povo que pode ter um jornalista tão brilhante como você. Infeliz é o povo que tem a frente dos seus destinos pessoas desqualificadas moralmente para comandar os destinos de um país, como é o que ocorre atualmente com esse pobre Brasil.
Simplesmente esplêndido! Guzzo mostra com seu humor ácido,as estranhas destes insepultos cadáveres: o PT, STF e uma grande parte da imprensa. Já está cheirando mal…
Artigo espetacular! Obrigado mestre Guzzo, por revelar de forma tão clara e precisa, as verdadeiras abolições do estado democrático de direito. Não percamos as esperanças de que alguns canalhas dessa corja ainda pagarão, em vida, pelos seus atos.