Nesta semana, a defesa da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, de 38 anos, anexou ao processo dela no Supremo Tribunal Federal (STF) uma carta na qual ela se desculpa por ter escrito, com um batom, a frase “perdeu, mané”, na estátua da Justiça, durante o tumulto do dia 8 de janeiro de 2023. No documento obtido pela Revista Oeste, a moradora de Paulínia, no interior de São Paulo, disse que, naquela tarde, desconhecia o valor simbólico da obra. Este é um dos argumentos usados pelo relator do caso no STF, ministro Alexandre de Moraes: a avaliação milionária da obra de arte, ainda que as marcas de batom, provavelmente, tenham sido removidas com sabão.
A iniciativa humilhante de Débora é compreensível. Diferentemente dos demais manifestantes, que passaram um tempo em casa com tornozeleira eletrônica antes da condenação, ela permanece na cadeia desde março de 2023. Foi presa porque uma fotógrafa do jornal Folha de S.Paulo captou a cena e, posteriormente, caçou a identidade da mulher nas redes sociais e por meio de telefonemas para moradores de Paulínia. Por mais de um ano, Débora ficou no cárcere sem denúncia formal da Procuradoria-Geral da República (PGR). O Ministério Público só apresentou a queixa depois que a reportagem de Oeste noticiou o abuso jurídico. Além disso, o desespero de Débora para rever os dois filhos pequenos é enorme. Até lá, contudo, ela aguarda o dia do julgamento que pode sentenciá-la a até 17 anos de cadeia.
Cláudia Rodrigues, irmã de Débora, conta que a rotina dos dois filhos da cabeleireira, um menino de 6 anos e uma menina de 8, mudou completamente. “Colocamos as crianças para fazer terapia”, relatou a tia. “Há dias de muito choro, que dificilmente conseguimos fazer parar. É uma situação de muita tristeza.” Cláudia disse ainda que a família se reuniu em torno das crianças a fim de “minimizar os danos psicológicos”. “Mas o vazio dentro da casa deles é impreenchível, ainda que façamos todo o esforço do mundo”, observou Cláudia. “É algo que atingiu todos nós. De certa forma, também estamos aprisionados com a Débora, pois nossa vida nunca mais foi a mesma, e não sei se será depois disso também.” Segundo a tia, o clima das festas que encerraram 2024 não foi nada bom.
O Natal e o Ano-Novo dos familiares de José Pereira, arquiteto de 51 anos enjaulado em um presídio no interior de São Paulo desde 6 de junho de 2023, também transcorreram de maneira semelhante. O STF sentenciou Pereira a 14 anos de cadeia, por golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre outros crimes que ele supostamente teria cometido em 2023. Pereira foi preso dentro do Palácio do Planalto, para onde correu a fim de se refugiar das bombas de fumaça e balas de borracha da PM.
Pereira passou apenas dez meses em casa, no município de Pompeia, no interior de São Paulo, com tornozeleira eletrônica, até voltar à prisão. No período, começou a fazer alguns bicos, pois foi demitido da empresa onde trabalhava. Entre outras atividades, pegou uma encomenda em uma empresa que, ao término do serviço, se recusou a pagar os R$ 20 mil acordados para o desenvolvimento de um projeto de alta complexidade. Hoje, sua mulher, Elisângela Santos, de 48 anos, se tornou a chefe da família. Além da atividade que exerce em uma companhia privada, passou a vender artesanato em um ateliê. “Além de complementar a renda, distraio a cabeça”, disse. “O tempo passa rápido e não fico pensando besteira.”
Elis, como é chamada, conta ainda com a ajuda da sogra, de 88 anos, para pagar as contas que incluem parcelas do imóvel financiado e outras despesas, como água, luz e alimentação. No primeiro período que Pereira ficou preso, Elis chegou a comercializar pizzas, em uma campanha para conseguir dinheiro e visitá-lo em Brasília. O casal tem um Corsa ano 2007, porém não pode vendê-lo, em virtude de um bloqueio judicial determinado pelo ministro Alexandre de Moraes. Sendo assim, Elis prefere deixar o automóvel na garagem para não ter problemas. O alívio momentâneo veio quando a família recebeu o acerto da demissão de Pereira. A ausência do homem, contudo, é o maior dos tormentos vividos pela esposa e por seus filhos.
O drama é parecido ao dos familiares do analista comercial Nelson Ribeiro Fonseca Junior, de 33 anos. A mulher dele, a empresária Norda, classificou o próprio fim de ano como “um dos piores” de sua vida. “Só queria ter o meu marido e meus filhos reunidos à mesa, mas fui apartada dessa alegria novamente”, disse. A Polícia Federal prendeu Junior em 17 de março de 2023, durante uma fase da Operação Lesa Pátria. Desde essa data, ele continua preso, sem perspectiva de soltura ou julgamento do STF. Ele nem sequer saiu com tornozeleira eletrônica para cumprir as medidas restritivas em casa, como ocorreu com centenas de outros manifestantes.
“Nosso filho de 6 anos teve uma alergia emocional que deixou sequelas”, contou Norda. “Fazemos tratamento com psicólogo e, por um tempo, me consultei com psiquiatra, pois, nos primeiros dias da prisão, fiquei mais de uma semana sem dormir.” A mulher relatou que a criança tem crises de choro sempre que retorna das visitas na cadeia. “Meu coração de mãe fica pequeno”, lamentou Norda. “Em 11 de dezembro de 2024, nosso segundo filho nasceu, e meu marido não pôde estar com a gente nesse momento. Não sei por quanto tempo terei forças para sustentar meus filhos.” Norda assumiu as contas da casa e recebe a ajuda dos pais, que vieram de Brasília para auxiliá-la financeiramente.
Um dia antes do “ato pela democracia” organizado pelo governo Lula na Praça dos Três Poderes para recordar os dois anos do 8 de janeiro, o gabinete de Moraes divulgou um relatório com os dados mais recentes do protesto. Conforme o levantamento, o STF já puniu criminalmente 898 réus. Do total, 371 foram condenados pelo tribunal, enquanto 572 firmaram o acordo de não persecução penal (ANPP) oferecido pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Esse acordo do Ministério Público prevê a confissão de crimes, o pagamento de multa de R$ 5 mil e a realização de um “curso da democracia”. Todos esses números serviram para justificar, segundo Moraes, o trabalho que seu gabinete tem feito em prol da punição de “golpistas”. Na realidade, são apenas estatísticas frias divulgadas para atenuar o fato de que gente de carne e osso é que está sendo julgada sem o devido processo legal, além de camuflar o sofrimento de centenas de famílias.
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