Pular para o conteúdo
publicidade
Foto: Shutterstock
Edição 252

Epidemia de insônia

Segundo pesquisa, 72% dos brasileiros enfrentam problemas para dormir

Dagomir Marquezi
-

Hypnos: deus greco-romano do sono. Hypnos era filho
de Nyx (Noite) e irmão gêmeo de Thanatos (Morte).
No mito grego, ele é descrito como vivendo (…)
em uma caverna escura e mofada por onde
fluíam as águas do Letes, o rio do abandono e
do esquecimento. Hypnos ficava deitado em seu
sofá macio, cercado por seus muitos filhos,
que eram os portadores dos sonhos.”
(Enciclopédia Britânica)

Dormir implica o relaxamento dos músculos esqueléticos (o que exclui, claro, o coração e os pulmões) e a ausência de um compartimento voltado para um objetivo. Nós nos entregamos a esse relaxamento durante um período que, somado, pode chegar a um terço de nossa vida. Hoje sabemos que não dormir pode nos levar à loucura ou até mesmo à morte. A privação de sono é uma das mais conhecidas formas de tortura.

Dormir bem, como sabemos, é fácil. Basta levar uma vida tranquila num ambiente bucólico, sem preocupações, deitar cedo tomando um chá de camomila, apagar a vela do criado-mudo, fechar os olhos e sonhar com anjinhos tocando harpa.

Sabemos no entanto que esse mundo acabou para a grande maioria de nós. Estamos na era da conexão permanente, do estresse sem fim, de estímulos cerebrais que levamos até a cama por meio de um celular conectado ao mundo. Dormimos assistindo a só mais um episódio da série de ação, temos pesadelos com cobradores de impostos, acordamos com as marretadas na obra do apartamento vizinho.

O mecanismo do sono

Temos uma epidemia de insônia. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz de 2023 mostrou que os distúrbios do sono afetavam nada menos que 72% dos brasileiros.

Existe uma Classificação Internacional de Distúrbios do Sono que define o transtorno de insônia crônica com base em cinco sintomas que teoricamente afetam 155 milhões de brasileiros: 1) dificuldade em iniciar o sono; 2) dificuldade em manter o sono; 3) despertar antes do desejado; 4) resistência em ir para a cama no horário apropriado; 5) dificuldade para dormir sem a intervenção dos pais/cuidadores.

Nove sinais revelam as consequências desse transtorno : 

  1. Fadiga
  2. Déficit de atenção, concentração ou memória
  3. Prejuízo do funcionamento social, familiar, ocupacional ou acadêmico
  4. Alteração do humor/irritabilidade
  5. Sonolência diurna
  6. Alterações comportamentais (como hiperatividade, impulsividade, agressividade)
  7. Perda de motivação
  8. Propensão para acidentes e erros
  9. Preocupação ou insatisfação com o sono

No centro de nosso cérebro está a glândula pineal. Essa glândula é regulada pela luz. No escuro ela produz a melatonina, que nos induz ao sono ao diminuir a temperatura do corpo e desacelerar nossa respiração. Debaixo de luz, essa produção fica suspensa.

A partir de uma certa idade a glândula pineal começa a se cristalizar. E o nível de produção desse hormônio começa a cair. Acredita-se que aos 70 anos uma pessoa produz cerca de 75% menos melatonina. O sono se torna ainda mais difícil.

Hoje a melatonina artificial é vendida em qualquer farmácia e não exige receita médica. Se tomada com moderação, pode compensar os distúrbios do sono. Mas não é uma solução milagrosa. O ato de dormir é bem mais complexo.

Foto: Shutterstock

Dormir ou respirar

Um adulto “normal” dorme de sete a nove horas por noite. Segundo artigo da britânica Melanie Wynne-Jones, outros acontecimentos da nossa noite de sono incluem: queda da pressão arterial, diminuição da produção de urina pelos rins e redução da produção de proteínas anti-inflamatórias (razão pela qual acordamos nos sentindo meio enrijecidos). A produção de hormônios aumenta para ajudar na reparação das células. Os metabolismos de glucose e de colesterol aumentam.

Mas os inimigos do sono são muitos. Um deles é a apneia. Representa uma situação difícil, em que ocorre incompatibilidade entre os atos de dormir e de respirar. No caso mais grave (conhecido como AOS), o sono é interrompido a cada minuto porque a pessoa para de respirar sempre que adormece. Soluções incluem medicamentos, cirurgia bariátrica ou pressão nas vias respiratórias.

Resolvida (ou pelo menos aliviada) a apneia, surge mais uma importante questão: o travesseiro.

Pílulas com funções paralelas

Nesta semana, o Washington Post publicou um artigo sobre o que eles chamam de “a cama da cabeça”. A reportagem lembra como essa escolha é difícil, por causa de tantas variáveis: o tamanho, a consistência, o tipo de recheio (algodão, poliéster, penas, espuma com memória, látex, cascas de trigo). Existem travesseiros para a cervical, para os joelhos, para grávidas, para facilitar a digestão etc. Quando acertar no travesseiro, não esqueça que ele precisa ser higienizado, e que tem vida útil. Isso sem falar do óbvio: a importância de escolher o colchão certo.

E se a escolha do travesseiro e do colchão certos não resolver seu sono? Temos a farmácia. Médicos costumam ser bem cautelosos ao receitar remédios. A pílula que faz uma pessoa dormir muito bem pode causar problemas sérios de dependência a outra.

Foto: Shutterstock

Uma possibilidade — que deve ter sempre a aprovação de um médico — é o uso de remédios com funções “paralelas”, mas que provoquem no usuário uma sensação de sono. É o caso dos relaxantes musculares. Eles geralmente proporcionam uma ótima noite de sono. Mas esse relaxamento pode se esticar durante o dia seguinte, quando o usuário permanece meio desligado da realidade.

Uma opção mais recente que anda fazendo sucesso é um remédio que funciona como relaxante e antidepressivo, e ainda ajuda no tratamento da enurese noturna — a condição que faz alguns urinarem durante o sono. O efeito paralelo é fazer o usuário dormir.

A bandana milagrosa

A artilharia anti-insônia ganhou mais munição com o desenvolvimento de tecnologia específica para a área. O Wall Street Journal revelou um invento que promete resolver a insônia de forma quase milagrosa. 

Nosso cérebro vibra constantemente. Quando estamos acordados, essas ondas vibram de 8 a 12 vezes por segundo. Quando dormimos profundamente, essa vibração chega a cair a 0,5 vez por segundo. 

A empresa americana Elemind desenvolveu uma bandana que, segundo o WSJ, manda pulsos de som para o cérebro cada vez que ameaça acelerar na hora do sono. Esses pulsos “têm como objetivo interromper o padrão de ondas cerebrais de vigília e movê-lo mais rapidamente para o padrão de ondas cerebrais de sono”.

Enquanto essa bandana milagrosa não chega ao mercado, as lojas de aplicativos estão cheias de opções oferecendo “sons relaxantes”: músicas acústicas, ruídos como chuvas, cascatas, praias, lareiras…

YouTube video

Outra opção é o chamado white noise, ou ruído branco: um som que captura nossa atenção sem variações, repetitivo e tedioso.

YouTube video
Ilustração: Shutterstock

‘Durma ou seja produtivo’

A epidemia de insônia enfrenta também uma questão cultural, especialmente no ambiente de trabalho. Existe uma imagem cultivada de heroísmo ligada à pessoa que aparece no escritório com olheiras e o olhar vazio, fruto da exaustão. “Esse cara trabalha duro!”, é o que se diz nos corredores da empresa. Bocejos no local de trabalho significam uma equipe que se sacrifica pelo bem da empresa e que passa as madrugadas pensando em soluções e novos negócios.

“Deixe seus funcionários dormir”, alertou o médico Jeffrey M. Ellenbogen no WSJ. Ele se referia ao falso dilema “durma ou seja produtivo”. “Essa configuração pode ter servido a sistemas industriais”, nota o médico, “onde bens eram criados por uma linha de trabalho manual repetitivo. Mas falha em nossa economia do conhecimento.” Segundo o doutor Ellenbogen, funções cerebrais positivas são reforçadas pelo sono: criatividade, inferência, memória, fortaleza emocional, flexibilidade. “Noites sem dormir, enriquecidas por estimulantes, produzem mentes medíocres.”

Jogando o lixo fora

Pesquisas ligam a insônia a doenças cardiovasculares, problemas metabólicos, pressão alta, risco de infecções. A saúde mental também é afetada, e pode gerar depressão e ansiedade.

Estudos recentes mostram também uma ligação entre a falta de sono e o risco de demência. “O sono age como um banho noturno para o cérebro, lavando os resíduos de células que se acumulam durante o dia”, escreveu Dana G. Smith para o New York Times. “Durante esse processo, o fluido que envolve as células cerebrais libera o lixo molecular e o transfere para a corrente sanguínea, onde é filtrado pelo fígado e pelos rins e expelido do corpo. Esse lixo inclui a proteína amiloide, que acredita-se ter um papel fundamental na doença de Alzheimer. Podem surgir problemas quando a proteína se acumula em aglomerados pegajosos, chamados placas. Quanto mais tempo alguém fica acordado, mais amiloide se acumula e menos tempo o cérebro tem para removê-lo.”

Quantas horas de sono são necessárias para manter a boa saúde? Segundo a doutora Michelle Drerup, especialista em desordem do sono da Cleveland Clinic, esse número depende muito da idade de cada um. Um bebê com menos de 3 meses dorme entre 14 e 17 horas diárias. Com 1 a 2 anos, entre 11 e 14 horas. Dos 6 aos 12 anos, essa necessidade cai para de 9 a 12 horas. A partir dos 19 anos, o número de horas necessárias para dormir se estabiliza entre 7 e 9 até os 64. A partir daí, cai para de 7 a 8 horas.

São números gerais. Alguns indivíduos não precisam de mais do que umas cinco horas para se sentirem revigorados e prontos para mais um dia. Napoleão Bonaparte se gabava de dormir pouco e recomendava “seis horas de sono para um homem, sete para uma mulher e oito para um tolo”. 

Foto: Shutterstock

Regras para o sono

A célebre Clínica Mayo não concorda com Napoleão Bonaparte e recomenda de sete a oito horas seguindo algumas regras básicas. Entre elas, ir para a cama sempre no mesmo horário, evitar ir para a cama com fome ou com o estômago cheio e a criação de um ambiente propício para o repouso.

Um dos conselhos da Mayo é muito importante: tente ir para a cama consciente de que você não pode fazer nada para pagar suas contas ou resolver um problema familiar durante o sono. Organize o dia seguinte, estabeleça metas e faça o possível para se esquecer dos problemas por sete ou oito horas.

Afinal, é valiosa nossa estadia diária na caverna escura e mofada de Hypnos. Uma vez lá dentro, ganhamos o direito a algumas horas de paz à beira das águas do rio Letes, entregues ao abandono e ao esquecimento.


dagomirmarquezi.com
@dagomirmarquezi

Leia também “Super Sheridan enfrenta os ‘soldades’ woke

5 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Não consigo ter um sono com horas seguidas há anos

  2. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Excelente! Seus artigos sempre muito completos e bem escritos; primam pelo capricho, dedicação e zelo pela boa informação . Parabéns, Dagomir!

    1. Dagomir Marquezi

      Obrigado pelo carinho, Valesca! A gente capricha porque vocês merecem o melhor.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Interessante artigo, obrigado Dagomir.

    1. Dagomir Marquezi

      Eu que agradeço, Candido.

Anterior:
Guerra das refinarias
Próximo:
O maior arrependimento
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.