“Hypnos: deus greco-romano do sono. Hypnos era filho
de Nyx (Noite) e irmão gêmeo de Thanatos (Morte).
No mito grego, ele é descrito como vivendo (…)
em uma caverna escura e mofada por onde
fluíam as águas do Letes, o rio do abandono e
do esquecimento. Hypnos ficava deitado em seu
sofá macio, cercado por seus muitos filhos,
que eram os portadores dos sonhos.”
(Enciclopédia Britânica)
Dormir implica o relaxamento dos músculos esqueléticos (o que exclui, claro, o coração e os pulmões) e a ausência de um compartimento voltado para um objetivo. Nós nos entregamos a esse relaxamento durante um período que, somado, pode chegar a um terço de nossa vida. Hoje sabemos que não dormir pode nos levar à loucura ou até mesmo à morte. A privação de sono é uma das mais conhecidas formas de tortura.
Dormir bem, como sabemos, é fácil. Basta levar uma vida tranquila num ambiente bucólico, sem preocupações, deitar cedo tomando um chá de camomila, apagar a vela do criado-mudo, fechar os olhos e sonhar com anjinhos tocando harpa.
Sabemos no entanto que esse mundo acabou para a grande maioria de nós. Estamos na era da conexão permanente, do estresse sem fim, de estímulos cerebrais que levamos até a cama por meio de um celular conectado ao mundo. Dormimos assistindo a só mais um episódio da série de ação, temos pesadelos com cobradores de impostos, acordamos com as marretadas na obra do apartamento vizinho.
O mecanismo do sono
Temos uma epidemia de insônia. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz de 2023 mostrou que os distúrbios do sono afetavam nada menos que 72% dos brasileiros.
Existe uma Classificação Internacional de Distúrbios do Sono que define o transtorno de insônia crônica com base em cinco sintomas que teoricamente afetam 155 milhões de brasileiros: 1) dificuldade em iniciar o sono; 2) dificuldade em manter o sono; 3) despertar antes do desejado; 4) resistência em ir para a cama no horário apropriado; 5) dificuldade para dormir sem a intervenção dos pais/cuidadores.
Nove sinais revelam as consequências desse transtorno :
- Fadiga
- Déficit de atenção, concentração ou memória
- Prejuízo do funcionamento social, familiar, ocupacional ou acadêmico
- Alteração do humor/irritabilidade
- Sonolência diurna
- Alterações comportamentais (como hiperatividade, impulsividade, agressividade)
- Perda de motivação
- Propensão para acidentes e erros
- Preocupação ou insatisfação com o sono
No centro de nosso cérebro está a glândula pineal. Essa glândula é regulada pela luz. No escuro ela produz a melatonina, que nos induz ao sono ao diminuir a temperatura do corpo e desacelerar nossa respiração. Debaixo de luz, essa produção fica suspensa.
A partir de uma certa idade a glândula pineal começa a se cristalizar. E o nível de produção desse hormônio começa a cair. Acredita-se que aos 70 anos uma pessoa produz cerca de 75% menos melatonina. O sono se torna ainda mais difícil.
Hoje a melatonina artificial é vendida em qualquer farmácia e não exige receita médica. Se tomada com moderação, pode compensar os distúrbios do sono. Mas não é uma solução milagrosa. O ato de dormir é bem mais complexo.
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Dormir ou respirar
Um adulto “normal” dorme de sete a nove horas por noite. Segundo artigo da britânica Melanie Wynne-Jones, outros acontecimentos da nossa noite de sono incluem: queda da pressão arterial, diminuição da produção de urina pelos rins e redução da produção de proteínas anti-inflamatórias (razão pela qual acordamos nos sentindo meio enrijecidos). A produção de hormônios aumenta para ajudar na reparação das células. Os metabolismos de glucose e de colesterol aumentam.
Mas os inimigos do sono são muitos. Um deles é a apneia. Representa uma situação difícil, em que ocorre incompatibilidade entre os atos de dormir e de respirar. No caso mais grave (conhecido como AOS), o sono é interrompido a cada minuto porque a pessoa para de respirar sempre que adormece. Soluções incluem medicamentos, cirurgia bariátrica ou pressão nas vias respiratórias.
Resolvida (ou pelo menos aliviada) a apneia, surge mais uma importante questão: o travesseiro.
Pílulas com funções paralelas
Nesta semana, o Washington Post publicou um artigo sobre o que eles chamam de “a cama da cabeça”. A reportagem lembra como essa escolha é difícil, por causa de tantas variáveis: o tamanho, a consistência, o tipo de recheio (algodão, poliéster, penas, espuma com memória, látex, cascas de trigo). Existem travesseiros para a cervical, para os joelhos, para grávidas, para facilitar a digestão etc. Quando acertar no travesseiro, não esqueça que ele precisa ser higienizado, e que tem vida útil. Isso sem falar do óbvio: a importância de escolher o colchão certo.
E se a escolha do travesseiro e do colchão certos não resolver seu sono? Temos a farmácia. Médicos costumam ser bem cautelosos ao receitar remédios. A pílula que faz uma pessoa dormir muito bem pode causar problemas sérios de dependência a outra.
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Uma possibilidade — que deve ter sempre a aprovação de um médico — é o uso de remédios com funções “paralelas”, mas que provoquem no usuário uma sensação de sono. É o caso dos relaxantes musculares. Eles geralmente proporcionam uma ótima noite de sono. Mas esse relaxamento pode se esticar durante o dia seguinte, quando o usuário permanece meio desligado da realidade.
Uma opção mais recente que anda fazendo sucesso é um remédio que funciona como relaxante e antidepressivo, e ainda ajuda no tratamento da enurese noturna — a condição que faz alguns urinarem durante o sono. O efeito paralelo é fazer o usuário dormir.
A bandana milagrosa
A artilharia anti-insônia ganhou mais munição com o desenvolvimento de tecnologia específica para a área. O Wall Street Journal revelou um invento que promete resolver a insônia de forma quase milagrosa.
Nosso cérebro vibra constantemente. Quando estamos acordados, essas ondas vibram de 8 a 12 vezes por segundo. Quando dormimos profundamente, essa vibração chega a cair a 0,5 vez por segundo.
A empresa americana Elemind desenvolveu uma bandana que, segundo o WSJ, manda pulsos de som para o cérebro cada vez que ameaça acelerar na hora do sono. Esses pulsos “têm como objetivo interromper o padrão de ondas cerebrais de vigília e movê-lo mais rapidamente para o padrão de ondas cerebrais de sono”.
Enquanto essa bandana milagrosa não chega ao mercado, as lojas de aplicativos estão cheias de opções oferecendo “sons relaxantes”: músicas acústicas, ruídos como chuvas, cascatas, praias, lareiras…
Outra opção é o chamado white noise, ou ruído branco: um som que captura nossa atenção sem variações, repetitivo e tedioso.
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‘Durma ou seja produtivo’
A epidemia de insônia enfrenta também uma questão cultural, especialmente no ambiente de trabalho. Existe uma imagem cultivada de heroísmo ligada à pessoa que aparece no escritório com olheiras e o olhar vazio, fruto da exaustão. “Esse cara trabalha duro!”, é o que se diz nos corredores da empresa. Bocejos no local de trabalho significam uma equipe que se sacrifica pelo bem da empresa e que passa as madrugadas pensando em soluções e novos negócios.
“Deixe seus funcionários dormir”, alertou o médico Jeffrey M. Ellenbogen no WSJ. Ele se referia ao falso dilema “durma ou seja produtivo”. “Essa configuração pode ter servido a sistemas industriais”, nota o médico, “onde bens eram criados por uma linha de trabalho manual repetitivo. Mas falha em nossa economia do conhecimento.” Segundo o doutor Ellenbogen, funções cerebrais positivas são reforçadas pelo sono: criatividade, inferência, memória, fortaleza emocional, flexibilidade. “Noites sem dormir, enriquecidas por estimulantes, produzem mentes medíocres.”
Jogando o lixo fora
Pesquisas ligam a insônia a doenças cardiovasculares, problemas metabólicos, pressão alta, risco de infecções. A saúde mental também é afetada, e pode gerar depressão e ansiedade.
Estudos recentes mostram também uma ligação entre a falta de sono e o risco de demência. “O sono age como um banho noturno para o cérebro, lavando os resíduos de células que se acumulam durante o dia”, escreveu Dana G. Smith para o New York Times. “Durante esse processo, o fluido que envolve as células cerebrais libera o lixo molecular e o transfere para a corrente sanguínea, onde é filtrado pelo fígado e pelos rins e expelido do corpo. Esse lixo inclui a proteína amiloide, que acredita-se ter um papel fundamental na doença de Alzheimer. Podem surgir problemas quando a proteína se acumula em aglomerados pegajosos, chamados placas. Quanto mais tempo alguém fica acordado, mais amiloide se acumula e menos tempo o cérebro tem para removê-lo.”
Quantas horas de sono são necessárias para manter a boa saúde? Segundo a doutora Michelle Drerup, especialista em desordem do sono da Cleveland Clinic, esse número depende muito da idade de cada um. Um bebê com menos de 3 meses dorme entre 14 e 17 horas diárias. Com 1 a 2 anos, entre 11 e 14 horas. Dos 6 aos 12 anos, essa necessidade cai para de 9 a 12 horas. A partir dos 19 anos, o número de horas necessárias para dormir se estabiliza entre 7 e 9 até os 64. A partir daí, cai para de 7 a 8 horas.
São números gerais. Alguns indivíduos não precisam de mais do que umas cinco horas para se sentirem revigorados e prontos para mais um dia. Napoleão Bonaparte se gabava de dormir pouco e recomendava “seis horas de sono para um homem, sete para uma mulher e oito para um tolo”.
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Regras para o sono
A célebre Clínica Mayo não concorda com Napoleão Bonaparte e recomenda de sete a oito horas seguindo algumas regras básicas. Entre elas, ir para a cama sempre no mesmo horário, evitar ir para a cama com fome ou com o estômago cheio e a criação de um ambiente propício para o repouso.
Um dos conselhos da Mayo é muito importante: tente ir para a cama consciente de que você não pode fazer nada para pagar suas contas ou resolver um problema familiar durante o sono. Organize o dia seguinte, estabeleça metas e faça o possível para se esquecer dos problemas por sete ou oito horas.
Afinal, é valiosa nossa estadia diária na caverna escura e mofada de Hypnos. Uma vez lá dentro, ganhamos o direito a algumas horas de paz à beira das águas do rio Letes, entregues ao abandono e ao esquecimento.
dagomirmarquezi.com
@dagomirmarquezi
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Não consigo ter um sono com horas seguidas há anos
Excelente! Seus artigos sempre muito completos e bem escritos; primam pelo capricho, dedicação e zelo pela boa informação . Parabéns, Dagomir!
Obrigado pelo carinho, Valesca! A gente capricha porque vocês merecem o melhor.
Interessante artigo, obrigado Dagomir.
Eu que agradeço, Candido.