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Foto: Maxim Ibragimov/Shutterstock
Edição 252

O maior arrependimento

A caminhada mais solene de um homem é aquela que ele faz da sala de parto até o berçário

Roberto Motta
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Saímos, meu filho e eu, para comprar os ingredientes do acarajé. É tradição de família: todo final de ano meu irmão Paulo faz acarajé. Foi ele quem começou a tradição. A anterior era pato no tucupi, que minha mãe preparava para os almoços de domingo. Essa tradição morreu com ela. Tentamos fazer o pato algumas vezes, mas é um ritual complicado, que exige longa preparação e escolha cuidadosa de ingredientes difíceis de encontrar. Mudamos para o acarajé, que também dá muito trabalho, exige longa preparação e ingredientes difíceis de encontrar, porém é mais divertido de fazer e todos amam da mesma forma que amavam o pato no tucupi. E nenhum acarajé do mundo — nem o da baiana Cira, do Rio Vermelho — é melhor que o acarajé do meu irmão.

Precisávamos de feijão-fradinho, azeite de dendê, leite de coco, camarão seco, cebola, castanha-de-caju e amendoim — porque haveria também vatapá, claro.

Meu filho é mais alto que eu. Vamos conversando e caminhando pela calçada cheia. Digo que gostaria que ele experimentasse jiu-jítsu. Uma vez, quando eu tinha 23 anos, comecei a treinar em uma academia ao lado da estação do metrô do Flamengo. Gostei. Mas resolvi parar, não sei bem por quê.

“É um dos meus maiores arrependimentos”, eu digo ao meu filho.

Andamos um pouco. Ele olha para mim e pergunta: “Qual é o seu maior arrependimento?”

Estamos chegando ao mercado. Um mendigo espalhou na calçada livros velhos que está vendendo. As capas brilham no sol. É quase meio-dia. A pergunta do meu filho me provoca: qual seria meu maior arrependimento nesta vida?

“Tenho que pensar”, respondo.

“Isso é uma coisa boa, não é?”, ele diz. “Quer dizer, o fato de você não ter uma resposta pronta para essa pergunta.”

Realmente, é uma coisa boa. Tenho muitos arrependimentos, claro. Quem não tem? Eu poderia ter sido menos insolente aos 30 anos de idade e evitado aquele conflito com meu chefe. Acabei demitido. Poderia ter concluído o MBA na George Washington University antes de retornar para o Brasil, em vez de abandonar o curso no meio. Eu poderia ter comprado ações do Facebook no dia do lançamento, mas achei que o preço estava alto. Os arrependimentos são muitos. Mas qual seria o maior de todos?

“Meu maior arrependimento”, respondo ao meu filho, já entrando no supermercado, “foi não ter tido mais filhos”.

Ilustração: Shutterstock

Essa é minha conclusão. Definitivamente. Esse é meu maior arrependimento.

Acontece que eu comprei a narrativa de que o mundo estava superpovoado. Minha geração foi ensinada a planejar com cuidado excessivo o tamanho de nossa família. Tivemos cuidado demais. Vários amigos não se casaram, ou casaram e não tiveram filhos, ou tiveram um único filho. As mulheres da minha geração aprenderam que deveriam ser muito mais do que mães e, por isso, muitas não foram nem mães.

Lembro da condescendência que eu reservava para quem se casava e tinha filhos ainda jovem. O mundo era tão vasto e cheio de aventuras; como alguém podia se deixar ancorar em família e boletos? Eu queria viajar, completar grandes conquistas, deixar meu nome na história. Filhos eram um projeto medíocre de quem não tinha capacidade para o extraordinário.

Como fui tolo. Filhos são prodígios. Formar e manter uma família é uma das conquistas mais complexas e recompensadoras da experiência humana. “A coisa mais extraordinária do mundo é um homem comum, uma mulher comum e seus filhos comuns”, disse Chesterton.

Hoje tenho inveja de quem teve filhos ainda jovem. Talvez esse seja meu segundo maior arrependimento.

Foto: Shutterstock

Mentiram para mim. Disseram-me — e eu acreditei — que filhos significavam dor de cabeça, despesas e dificuldades. Nunca me falaram da satisfação da paternidade, do milagre da concepção ou da experiência de ver uma criança crescendo diante de nós. Disseram-me que filhos eram dispendiosos, que crianças estragavam oportunidades, e que suas necessidades produziam estresse, frustração e sustos. “Ter filhos é ser refém do acaso”, li em algum lugar. “Nunca mais você vai dormir bem”, disse a avó da minha mulher quando meu filho nasceu.

Tudo isso eu aprendi muito bem. Mas era apenas uma parte da verdade. A parte menos importante.

Nunca me contaram que a caminhada mais solene de um homem é aquela que ele faz da sala de parto até o berçário. Na minha experiência — particular, única e imperfeita — não conheci nada que substituísse a paternidade.

A verdade é que eu deveria ter tido, no mínimo, seis filhos. O que me impediu foi a lavagem cerebral à qual fui submetido desde que me entendo por gente, e da qual só me libertei há relativamente pouco tempo. Filhos não são um estorvo. A chance de conceber, alimentar, proteger e educar crianças é uma dádiva assombrosa. Filhos são uma carta que mandamos ao futuro.

Acordai, vós que ainda sois jovens.

Crescei e multiplicai-vos.

Ilustração: Christian Horz/Shutterstock

Leia também “A novilíngua do crime”

18 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Roberto Motta, seu artigo me levou a uma viagem que somente aqueles que mantém seus laços familiares conseguem caminhar por esta jornada emocionante.

  2. Fábio Rogério Rocha
    Fábio Rogério Rocha

    Parabéns Motta, sempre me emociono com seus artigos.

  3. Aluízio Rodrigues Menho
    Aluízio Rodrigues Menho

    Roberto Motta : Uma beleza de texto. Tocante.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Mais importante hoje no Brasil é se livrar dessa ditadura de ladrões

  5. Fabio Almeida
    Fabio Almeida

    Sensacional. Texto lindo e uma excelente reflexão. Filho é uma dádiva de Deus. Hoje também penso que deveria ter tido mais filhos. Parabéns pela sensibilidade do texto.

  6. Carlos Alberto Carravetta
    Carlos Alberto Carravetta

    Motta, sou teu fã! Receba aquele abraço!

  7. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Realmente é o ápice da vida. Tenho 36 anos, 1 filha, e quero mais…

  8. José Alberto Galvão Cruz
    José Alberto Galvão Cruz

    Nada é mais gratificante do que aquela mesma grande, com muitos cadeiras e aquela bagunça gostosa e a confraternização de uma família numerosa. Sinto falta desse tempo.

  9. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Simplesmente lindo

  10. Jonas Ferreira do Nascimento
    Jonas Ferreira do Nascimento

    Lindo artigo, Motta.
    Tenho dois filhos e duas netas, uma filha de cada um. Não me arrependo nenhum pouco!

  11. Jonas Ferreira do Nascimento
    Jonas Ferreira do Nascimento

    Lindo artigo, Motta.
    Tenho dois filhos e duas netas, uma filha de cada um. Não me arrependo nenhum pouco!

  12. SUZANE SILVA MATOS
    SUZANE SILVA MATOS

    Seu texto me emocionou. Concordo plenamente com suas palavras, e, digo isso com 47 anos e 03 filhos lindos e abençoados.

  13. Carlos Zank
    Carlos Zank

    Parabéns, este texto também reflete a minha experiência.

  14. Marcus Borelli
    Marcus Borelli

    Prezado Motta, gostei do seu artigo mas é a sua visão de mundo, compreensível. Na minha visão de mundo ter filhos hoje em dia é muito arriscado e caro como você disse não concordar. Não me casei e nem tive filhos, não me arrependo pois pude cuidar de centenas de animais. Você poderá discordar pois vivemos ou vivíamos numa democracia. Hoje o velho pensamento passou a ser Que filhos deixaremos para o mundo? O mundo está complicado e vejo nos meus sobrinhos da geração Y um total desleixo em relação às questões de nosso país. Eles não se interessam. Um abraço e parabéns pelos ótimos textos.

  15. Elias José de Souza
    Elias José de Souza

    Motta, parabéns pelo artigo. Muitas vezes o obvio precisa ser dito, a vida é como um filme sem intervalo e sem repetição, feliz é aquele que tem uma vida plena e longa com arrependimento, principalmente quando você os reconhece.

  16. Oldair Dorigon Bianco
    Oldair Dorigon Bianco

    Lindo, um artigo para se guardar para todas as gerações!

  17. Celso Ricardo Kfouri Caetano
    Celso Ricardo Kfouri Caetano

    Grande Roberto Motta, um dos melhores artigos que li até hoje, situação que passa despercebida no marasmo que vivemos de inflação, corrupção, pix etc etc, não se fala de outra coisa……..excelente mesmo. Concordo plenamente com você.

  18. Denis R.
    Denis R.

    Excelente texto Motta. Pena que muitos jovens de hoje só se darão conta disso quando for tarde demais…

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