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Manifestantes seguram um cartaz e recortes de imagens de reféns durante um protesto em frente à sede do partido Likud, exigindo a libertação imediata dos sequestrados durante o ataque mortal de 7 de outubro, em Tel Aviv, Israel (8/1/2025) | Foto: Reuters/Kai Pfaffenbach
Edição 252

Quinze meses num túnel

Os prisioneiros do Hamas não são apenas os reféns, mas toda a sociedade israelense

Miriam Sanger
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Na manhã de 7 de outubro de 2023, Naamá Levy, assim como quase todos os habitantes de Israel, foi despertada pelo som do alarme antiaéreo. O relógio marcava precisamente 6h29. Naamá mal conhecia a base militar de Nahal Oz. Havia chegado ali havia apenas dois dias para ocupar o posto de observadora de fronteira — cargo que desempenharia nos dois anos seguintes de serviço militar obrigatório (para os homens, são três). A função, exercida exclusivamente por mulheres, exige enorme concentração e responsabilidade, uma vez que elas são os “olhos” do exército em todas as fronteiras do país. Durante as duas horas seguintes, a jovem manteve comunicação com seus pais por mensagens no WhatsApp. Depois disso, deixou de responder.

Localizada a menos de 1 quilômetro de Gaza, Nahal Oz foi invadida por mais de 100 terroristas, os quais mataram ou sequestraram todos os soldados e destruíram completamente as instalações.

Governo e exército, pegos de surpresa por razões que ainda estão sendo investigadas, não conseguiram oferecer informações confiáveis naquele dia. Coube à família de Naamá entender, por conta própria, às 11 da manhã, que ela estava em poder do Hamas. “Um familiar nos enviou um vídeo com cenas da invasão de Nahal Oz que circulava pelo Telegram. Depois de passar o dia no telefone, às 20 horas consegui contatar um militar de alto escalão, que confirmou que os terroristas haviam sequestrado soldados. Às 6h30 da manhã seguinte, representantes do Exército bateram à nossa porta confirmando o que já sabíamos”, descreve Amnon Shahar, avô materno de Naamá.

A sequência em que ela e outras quatro observadoras de fronteira — até hoje prisioneiras do Hamas — aparecem com o rosto esbofeteado, os braços amarrados atrás das costas e tentando inutilmente dialogar com homens armados com metralhadoras, sob efeito de drogas, foi amplamente divulgada em Israel. As cenas são aterrorizantes. Segundo Yoni, pai de Naamá, “mostram apenas alguns minutos do que ela está vivendo desde o dia 7 de outubro de 2023”.

Vivos ou mortos?

Naquele dia, 251 pessoas foram capturadas pelo Hamas. Todos os israelenses conhecem cada um dos 98 reféns ainda mantidos prisioneiros, entre eles estrangeiros, civis e soldados, mulheres, homens, idosos e duas crianças — os irmãos ruivinhos Kfir (então com 8 meses de idade) e Ariel (com 4 anos). Deles, 94 foram levados no trágico 7 de outubro de 2023. Outros quatro são mantidos em Gaza há uma década.

Pôsteres com seus rostos estão espalhados por todo o território de Israel. Em uma das principais praças de Tel Aviv, foi erguido um acampamento permanente em que as famílias e a população se reúnem, realizam encontros, manifestações e exposições para que a luta por seu resgate não se perca entre a montanha-russa de eventos que cercam essa guerra. O local tornou-se conhecido como kikar hachatufim — a praça dos reféns.

A kikar hachatufim, em Tel Aviv, é uma praça simbólica usada para homenagens e protestos relacionados a reféns e questões humanitárias | Foto: Reprodução/X

Não há consenso em relação a quantos ainda podem estar vivos. Em Israel, acredita-se que cerca de 30 deles. Já uma fonte do governo dos Estados Unidos afirmou que trabalha com a hipótese de 20.

Mesmo com a proximidade de um acordo (frágil) de cessar-fogo, o Hamas não divulgou uma lista com nomes ou condições dos reféns — ou seja, as famílias não sabem quem está vivo ou morto. Em nenhum momento a Cruz Vermelha, a ONU, a Unicef ou qualquer outra entidade internacional realizou campanhas ou iniciativas de pressão sobre o Hamas exigindo essas informações.

Nos depoimentos dos que foram libertados ao longo da guerra, fica claro que nenhum deles, nem mesmo idosos ou feridos graves durante o ataque do Hamas, receberam cuidados médicos adequados. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu divulgou, em 12 de janeiro do ano passado, que havia selado um acordo com o Hamas para atender reféns que sofrem de doenças crônicas — os medicamentos foram enviados por Israel. Em 18 de fevereiro, contudo, soldados israelenses encontraram as caixas, lacradas e etiquetadas, no hospital Nasser, em Khan Younis, cidade no sul de Gaza. Os suprimentos nunca chegaram aos seus destinatários.

Cronologia surreal

A cronologia que há 15 meses marca o destino dos prisioneiros faz com que também a sociedade israelense viva entre a incerteza e a surpresa. Israel levou meses para consolidar uma lista confiável de nomes em razão da dificuldade de identificação de todas as 1,2 mil pessoas assassinadas pelo Hamas durante a invasão. A demora foi resultado das terríveis condições nas quais os corpos, ou partes deles, foram encontrados.

Cada pessoa sequestrada teve um destino diferente. Algumas foram assassinadas em solo israelense e levadas como futura moeda de troca, uma vez que, para os judeus, o corpo humano é considerado sagrado e precisa ser resgatado. Alguns capturados foram mantidos em grupo, e outros, isolados. Alguns imediatamente submergiram nos mais de 500 quilômetros de túneis escavados sob Gaza pelo Hamas. Outros permaneceram em casas de civis.

Comum a todos é a tortura psicológica e física diária, a fome, a falta de movimento e de luz do sol, o isolamento e o abuso moral e sexual. Isso inclui a experiência relatada pelas crianças libertadas na única negociação bem-sucedida, há mais de um ano. Quase todas, ainda hoje, não conseguem permanecer sozinhas ou não completam uma refeição sem antes guardar parte dela nos bolsos.

No dia 20 de outubro de 2023, o Hamas libertou duas reféns americanas. Três dias depois, dois idosos. No dia 30, o exército conseguiu resgatar uma das observadoras de fronteira que havia sido levada por um “civil” palestino como “sua nova esposa” — ela aproveitou um momento de descuido para enviar à mãe sua localização por meio do celular dele. Em novembro, 107 reféns foram libertados em troca de 240 terroristas palestinos julgados e presos em Israel.

O dia 15 de dezembro foi especialmente chocante: três prisioneiros, que juntos conseguiram escapar do cativeiro e se esconder em Gaza por cinco dias, foram mortos por soldados israelenses ao serem confundidos com terroristas. Esse incidente provocou uma onda de fúria, parcialmente amenizada por Íris Chaim, mãe de uma das vítimas, Yotam. “Quando soube que os soldados disseram que perderam a legitimidade para continuar lutando, enviei imediatamente uma mensagem para os envolvidos no incidente dizendo que nossa família queria abraçá-los e os convidei para vir à nossa casa. Foi um erro, um erro terrível, mas o culpado pela morte deles é o Hamas, não nossos soldados”, ela afirmou em entrevistas.

Íris Chaim, mãe de uma das vítimas mortas por engano em Gaza, Yotam, confortou os soldados envolvidos, culpando o Hamas pelo trágico incidente | Foto: Reprodução/X

A carnificina do Hamas

As mobilizações populares em Israel exigindo o fim da guerra cresceram mês a mês. Foram coordenadas pelo mesmo grupo que conduziu, ao longo de quase um ano, as manifestações contra a reforma judicial proposta pelo governo de Netanyahu. Manifestações que, hoje é claro, enfraqueceram e dividiram a sociedade israelense, deixando-a internamente distraída e suscetível às ações de seus inimigos. Tornaram-se muito mais do que um símbolo da divisão ideológica da população: elas também influenciaram a maneira como o grupo terrorista conduziu as negociações. Ou seja, as exigências do Hamas aumentaram na mesma medida em que crescia a adesão aos protestos.

Em 12 de fevereiro e em 8 de junho de 2024, seis reféns foram resgatados em duas operações espetaculares. Entre eles estava Noa Argamani, cuja foto numa motocicleta entre dois terroristas, com os braços estendidos implorando ajuda, tornou-se símbolo da tragédia. Noa foi mantida em cativeiro por 246 dias, e hoje representa outro aspecto importante dessa guerra: a dificuldade de recuperação do imenso trauma vivido por toda a sociedade israelense.

Noa Argamani, quando foi sequestrada pelo Hamas (7/10/2023) | Foto: Reprodução/X

“Não temos como começar a nos recuperar enquanto os nossos entes queridos ainda estiverem lá”, ela repete a cada entrevista, referindo-se também a seu namorado, Avinatan Or. Ambos foram capturados no Festival Nova, uma festa realizada a poucos quilômetros da fronteira de Gaza, que reuniu 5 mil pessoas e terminou numa carnificina sem precedentes — 364 jovens assassinados, 40 sequestrados e milhares de feridos. Ao longo da guerra, o exército localizou os corpos de 37 deles. Os dois últimos foram os dos árabes-israelenses Youssef Ziyadne e seu filho, Hamza, os quais, segundo a perícia, morreram meses antes nos túneis.

Memorial com fotos de israelenses e de pessoas de todo o mundo mortas durante o ataque ao Festival Nova, que ocorreu em 7 de outubro de 2023, próximo a Gaza | Foto: Shutterstock

Outro prisioneiro beduíno, Farhan Elkadi, foi encontrado com vida em um dos túneis em 27 de agosto. Mas as intensas celebrações que se seguiram duraram pouco. Cinco dias depois, em outro túnel próximo dali, foram localizados os corpos de seis jovens fuzilados dois dias antes por seus captores, provavelmente ao notarem a proximidade de soldados israelenses. O país, novamente tomado pela dor, foi incendiado por manifestações pelo fim do confronto e súplicas por um acordo de libertação.

Desde o início da guerra, Netanyahu afirmou buscar a “vitória total”, a qual incluiria o resgate dos reféns como resultado da pressão militar. Ele encontrou suporte, mesmo que com altos e baixos, em parte considerável da sociedade israelense. Contudo, após 15 meses de conflito, a população está dividida e esgotada não apenas pela falta de perspectiva de resgate, como também pelo alto número de combatentes caídos: 840 soldados israelenses foram mortos, e 5,5 mil, feridos. A atual situação em Gaza pode estender-se por anos, e a equação entre o salvamento de inocentes e a pressão militar é duvidosa: embora o exército conheça a localização de vários deles, evita atuar nessas áreas para não ameaçar sua segurança.

O efeito Trump

Duas vezes desde sua eleição, o presidente americano eleito Donald Trump afirmou que “causaria o inferno” em Gaza caso um acordo entre Israel e o Hamas não fosse consolidado até o dia 20 de janeiro, data de sua posse. Tudo indica que ele foi ouvido. O acordo saiu na quarta-feira, 15, e será feito em etapas.

Notícia publicada em Oeste (15/1/2025) | Foto: Reprodução/Oeste

O acordo, o mesmo que está em pauta desde maio de 2024, prevê, em linhas gerais, que todos os prisioneiros serão devolvidos ao longo de três fases, sendo que apenas a primeira foi delimitada claramente: 33 reféns, vivos ou mortos, serão libertados ao longo de 42 dias. Em contrapartida, Israel se compromete primeiramente a um cessar-fogo e, depois, ao fim da guerra sem ter atingido um de seus principais objetivos: erradicar o poder do Hamas na Faixa de Gaza.

A negociação também prevê a libertação de 3 mil terroristas palestinos presos em Israel. Boa parte são pessoas que têm as “mãos sujas de sangue” — participaram do planejamento e da execução de atentados. Cerca de 200 cumprem uma ou mais penas de prisão perpétua. “Desde o início soubemos que pagaríamos um alto preço por nossos reféns”, afirmou o líder da oposição Yair Lapid. “Mas ele é necessário, pois não há outra forma de curar a sociedade israelense que não passe por tê-los todos em casa, a salvo. Como sociedade, como povo e como democracia, estamos dispostos a pagá-lo.”

Lapid se refere, nas entrelinhas, a dois conceitos intrínsecos do ethos judaico e israelense: a responsabilidade mútua e a obrigação religiosa de resgatar prisioneiros (em hebraico, pidion shvuím). Segundo Melanie Garson, professora de segurança e resolução de conflitos internacionais na Universidade de Londres, “o Hamas sabe do valor atribuído em Israel a cada vida e do explícito compromisso entre o governo e o seu povo de nunca deixar ninguém para trás das linhas inimigas”.

Tudo indica que finalmente Naamá, os demais sequestrados, os soldados e toda a sociedade israelense conseguirão finalmente se libertar dos túneis de Gaza. Apesar do preço amargo a ser pago por isso.

Leia também “O que será da Síria?”

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