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Foto: Montagem Revista Oeste/Roman Samborskyi/Shutterstock
Edição 254

As mães presas do 8 de janeiro

O STF se recusa a conceder às detidas no protesto de Brasília o benefício que não nega a mulheres traficantes

Cristyan Costa
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Em 10 de janeiro, o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, concedeu prisão domiciliar a uma traficante de drogas presa com 5 gramas de crack (aproximadamente 20 pedras). O motivo: ser mãe de um menino de 4 anos. No despacho, ao mencionar jurisprudência do STF, o magistrado observou que a criança precisa ter seus direitos resguardados. Além disso, Mendes determinou ao Conselho Nacional de Justiça que organize “mutirões carcerários” a fim de revisar casos parecidos. Quase dois meses antes, o vice-presidente do tribunal, Edson Fachin, proferiu uma decisão semelhante com base no mesmo entendimento de Mendes. Fachin garantiu o benefício a uma presa que foi parar na cadeia por tráfico de drogas e porte ilegal de armas de fogo. Em virtude de ter uma criança em fase de amamentação, teve o seu pedido atendido pelo STF.

O mesmo direito, contudo, tem sido negado a mães presas em decorrência das depredações que ocorreram em 8 de janeiro de 2023 em Brasília. O caso mais emblemático é o da cabeleireira Débora dos Santos, de 39 anos, que escreveu com batom a frase “perdeu, mané” na Estátua da Justiça, em frente à sede do STF. Enjaulada desde março de 2023, a paulista de Paulínia (SP) tem dois filhos pequenos, um menino de 6 e outro de 8 anos, que fazem terapia para ajudar a conter os danos emocionais. A defesa dela, composta dos advogados Hélio Júnior e Taniéli Telles, pediu prisão domiciliar com base em entendimentos anteriores tanto do STF como do Superior Tribunal de Justiça. Relator dos processos do 8 de janeiro no tribunal, Alexandre de Moraes rejeitou as petições. Um dos argumentos do magistrado sustenta que Débora representa “periculosidade social” ao país, além da “gravidade das condutas atribuídas à ré” durante o protesto.

A cabeleireira Débora dos Santos, com os dois filhos menores, durante um culto evangélico | Foto: Reprodução

Maternidade violada

Débora não é a única a viver privada da companhia da família, dos filhos e do devido processo legal. Desde junho do ano passado, a faxineira de Americana (SP) Edinéia Paes da Silva dos Santos, de 39 anos, está longe da filha de 10 anos. Assim como muitos envolvidos no 8 de janeiro, Edinéia dirigiu-se a Brasília a fim de se manifestar pacificamente contra o recém-empossado governo Lula. Acabou detida no interior do Palácio do Planalto, onde se abrigou das bombas de gás lacrimogêneo. Ela passou oito meses enjaulada na Colmeia, em uma cela superlotada, se alimentando mal, tendo de tomar banhos frios e fazer as necessidades fisiológicas na frente dos outros. Ao sair, em agosto de 2023, passou a ser atormentada por uma tornozeleira eletrônica e outras medidas restritivas. Dez meses depois, a esperança de voltar a ter uma vida normal morreu ao receber da defesa a notícia de sua condenação a 16 anos de cadeia.

A faxineira Edinéia, com os dois filhos e o marido | Foto: Arquivo Pessoal

Atualmente, ela cumpre pena na Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu, no interior de São Paulo, onde acabou no meio de detentas comuns, mesmo nunca tendo cometido qualquer crime. Edinéia recebe a visita do marido, José dos Santos, a cada 15 dias. Hoje, o homem é quem cuida de tudo praticamente sozinho, do trabalho no ramo da indústria aos afazeres domésticos e, principalmente, da filha do casal. Ele recebe apoio emocional e financeiro de parentes, pela ausência da mulher e em virtude de as contas bancárias de Edinéia estarem bloqueadas, assim como outros bens, por ordem de Moraes. O filho de 21 anos do casal ajuda o pai com o ordenado que ganha em um posto de gasolina. A irmã de Edinéia, Simone, contribui com algum dinheiro. “Trabalho na roça para ajudar minha irmã no presídio”, contou Simone. “Edinéia é uma mulher guerreira que sempre trabalhou para ajudar sua família.” O advogado da faxineira, Hélio Júnior, usou o mesmo argumento aplicado no caso de Débora, na tentativa de conseguir para Edinéia o benefício domiciliar assegurado às mães. Moraes, no entanto, também rejeitou essa solicitação sem dar muitos detalhes.

Jaqueline Freitas Gimenez, de 42 anos, é outra mãe do 8 de janeiro que tem tido a sua maternidade violada pelo STF. O tribunal vem rejeitando petições que requerem a prisão domiciliar à mineira de Juiz de Fora, presa em uma cadeia na cidade, também misturada a criminosas comuns. Ela se encontra no cárcere desde maio de 2024, seis meses depois de ter sido condenada a 16 anos de cadeia. Jaqueline é mãe de duas crianças, uma de 7 e outra de 10 anos. Moraes desconsiderou esse fato. Assim como Débora e Edinéia, Jaqueline saiu de casa para protestar na capital federal, por acreditar que a manifestação seria tranquila. Enganou-se ao chegar à Praça dos Três Poderes e testemunhar uma cena de guerra. A mulher correu para o Planalto e de lá saiu algemada para a Colmeia.

Caminhoneiro, o marido de Jaqueline, conhecido como Wandinho, passou a se revezar nas estradas e nos cômodos de sua casa, por ter assumido a chefia completa do lar. Além de prover o sustento da família, Wandinho tem de lidar com as crises de ansiedade dos filhos sempre que se lembram da ausência da mãe. “Ela é uma mãe dedicada e está arrasada longe das crianças”, disse. “O tempo passa depressa e, infelizmente, eles estão crescendo longe dos cuidados dela.” “Essas crianças longe da mãe desenvolveram problemas emocionais significativos”, complementou o advogado Hélio Júnior. “Apresentam sintomas de ansiedade, depressão, dificuldades de apego e problemas comportamentais. A separação abrupta da figura materna e o estigma social associado ao encarceramento são fatores que impactam diretamente seu desenvolvimento emocional e psicológico.”

Jaqueline Freitas Gimenez é mãe de duas crianças, de 7 e 10 anos, e foi condenada a 17 anos de prisão pelos atos do 8 de janeiro | Foto: Arquivo Pessoal/Wanderson Freitas da Silva

O brusco rompimento do convívio familiar afetou também a empresária Camila Mendonça Marques, de 36 anos, moradora de Tubarão (SC), que vive uma rotina que não difere muito daquela vivida por outras famílias do 8 de janeiro. Mãe de duas crianças, uma com 5 e outra com 9 anos, ela foi condenada a 17 anos de cadeia, em 11 de março de 2024. Assim como Edinéia e Jaqueline, acabou presa no Planalto por ter se abrigado de balas de borracha disparadas pela polícia na Praça dos Três Poderes. Antes mesmo do trânsito em julgado, a polícia a levou para a Penitenciária Sul de Criciúma, por suposto “risco de fuga”. A Polícia Federal (PF) chegou a afirmar, sem provas, que a empresária estaria “dilapidando” o próprio patrimônio com a finalidade de fugir do Brasil rapidamente.

À época desse ato da PF, a defesa preparava recursos a fim de tentar reverter a situação da mulher, visto que era o momento próprio para apresentar essas ações. “Quando os documentos chegarem, faremos todos os pedidos cabíveis, como progressão de regime em um oitavo e prisão domiciliar”, disse Pedro de Almeida Neto, um dos advogados de Camila, em alusão aos filhos pequenos da empresária. “Estamos aguardando ainda o processo de execução penal da nossa cliente chegar do STF para a vara criminal de Criciúma.” As chances de essas medidas serem atendidas pelos ministros do STF são praticamente nulas.

A empresária Camila Marques | Foto: Arquivo Pessoal

Justiça parcial

Em agosto deste ano, o livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell, vai completar 80 anos. Na distopia, um grupo revolucionário consegue uma série de privilégios e execuções de opositores do regime, e divide a sociedade em classes. Com o tempo, a ditadura estabelecida, que antes prometia direitos iguais e bradava contra os seus opressores, passa a seguir a cartilha de que “todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. No Brasil do STF, cujos ministros negam a mães presas do 8 de janeiro um benefício que não têm negado a mulheres traficantes, qualquer semelhança não é mera coincidência.

Leia também “O avanço da direita na guerra ideológica”

14 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O arbítrio ditatorial instalou-se no país e seu principal algoz, o ministro Xandão precisa ser parado.
    Os brasileiros não podem mais continuar convivendo em um país onde 11 advogados togados definem os caminhos da nação à revelia de um Congresso inepto.

  2. Julio José Pinto Eira Velha
    Julio José Pinto Eira Velha

    Debora dos Santos esta pesa não por ter usado batom na estatua, mas sim por ter feito chacota com o pavão do do STF, essa é a interpretação desses miseráveis.

  3. Lucia Knihs Stiehler
    Lucia Knihs Stiehler

    Como não se revoltar contra essas arbitrariedades?

  4. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    É de cortar o coração.
    Parabéns por mais uma bela reportagem.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Revoltante.
    Esta corja atualmente instalada em Brasília, na PF, no STF, na PGR, e outros órgãos, não podem ficar impunes quando a justiça chegar a estes injustiçados.

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O mais revoltante é saber que foi tudo armado por esses marginais

  7. Gabriel
    Gabriel

    Isso é triste e revoltante. Meu Deus!

  8. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Mais um excelente artigo de Cristyan Costa. As leis não existem para as mães do oito de janeiro, estão privadas da convivência com os filhos.A justiça não existe mais,é punição e tortura para quem nada fez.Essas crianças sofreram a interrupção de um vínculo difícil de ser resgatado, a ausência abrupta da figura materna é um fator determinante para as dificuldadesdes de um bom desenvolvimento emocional.A sensação de perda em suas vidas estará sempre presente.Vidas foram destruídas, existe reparação para tamanha tortura?absolutamente não.

  9. Eduardo Augusto Locks
    Eduardo Augusto Locks

    só mulas pra votar em Socialistas

    1. Antonio Saggese Netto
      Antonio Saggese Netto

      Onde está o general G. Dias ?
      Ele sabe exatamente quem planejou essa farça toda.
      Desapareceram com o cara!
      Mas, não tenham dúvidas, eles pagarão, mais cedo ou mais tarde, muito caro por esses atos.

  10. Evandro Amaral Cabral
    Evandro Amaral Cabral

    Na semana em que fazemos memória dos 80 anos do holocausto, percebemos que auschwitz é bem aqui

  11. Josemir Dias Pereira
    Josemir Dias Pereira

    Único comentário que posso fazer é: REVOLTANTE!

  12. Mara Jacob
    Mara Jacob

    Lamentável essa situação. Todos os dias me imagino vivendo nessas condições tentando me solidarizar com essas mães e sinto indignação misturada com revolta. Não é possível isso tudo estar acontecendo. Quero elogiar o trabalho desse jornalista. Ele tem sido muito importante para mostrar o que realmente está acontecendo.

  13. Mara Jacob
    Mara Jacob

    Lamentável essa situação. Todos os dias me imagino vivendo nessas condições tentando me solidarizar com essas mães e sinto indignação misturada com revolta. Não é possível isso tudo estar acontecendo. Quero elogiar o trabalho desse jornalista. Ele tem sido muito importante para mostrar o que realmente está acontecendo.

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