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A trajetória dos EUA como potência global, a política de Trump e sua influência geopolítica | Foto: Shutterstock
Edição 254

O anjo salvador que não existe

A eleição de Donald Trump acendeu em muitos brasileiros a esperança de mudanças por aqui, mas nossa disfuncionalidade institucional não será resolvida por ele

Roberto Motta
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Qualquer pessoa com conhecimento de história entende o papel desempenhado pelos Estados Unidos nos últimos cem anos. Colocando de uma forma direta: é graças aos EUA que a língua oficial da Europa não é o alemão. É também graças aos americanos que não vivemos em uma ordem internacional ditada pelo partido comunista da União Soviética.

Os Estados Unidos são o resultado da independência de 13 colônias inglesas na América do Norte. Quando se libertaram da Inglaterra, elas quase se tornaram países separados; finalmente resolveram se unir (daí “Estados Unidos”), depois de tomar inúmeras precauções para que nunca mais ficassem submetidas a um poder central arbitrário (quem deseja entender os EUA precisa entender isso). Por causa de várias circunstâncias únicas — que deram origem à teoria do excepcionalismo americano —, esse pequeno país, originário da fusão das 13 colônias, se tornou a maior potência industrial, científica, econômica, militar e cultural do planeta.

Nada disso foi de graça. A história dos Estados Unidos, como a história de todos os países, é imperfeita e recheada de tragédias, iniquidades e momentos nos quais o poder do Estado foi controlado por grupos para proveito próprio e usado injustamente contra os povos de outras nações ou até contra o povo americano.

Os EUA já passaram por uma guerra civil na qual 700 mil americanos foram mortos pelas mãos de americanos. A expansão para o oeste se deu à custa da vida e dos territórios dos habitantes originais da América (impropriamente chamados de “índios”). O imperialismo americano, nascido da vitória na guerra contra a Espanha em 1898 — quando os Estados Unidos adquiriram os territórios de Guam, Porto Rico e Filipinas —, acabou levando a tantas intervenções na América Latina que é difícil achar um país latino-americano que não tenha sofrido algum tipo de interferência americana, direta ou indireta.

Os EUA enfrentaram uma guerra civil com 700 mil mortes, marcando uma divisão interna profunda. A ilustração representa a Batalha de Spotsylvania Court House, com mais de 30 mil baixas | Ilustração: Reprodução/Flickr

Ainda assim o balanço é inteiramente positivo. Os Estados Unidos participaram decisivamente da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, derrotando o nazismo alemão, o fascismo italiano e o militarismo imperialista japonês, e depois — o mais impressionante de tudo — financiaram a reconstrução e a transformação dessas nações em democracias. A liberdade da Europa Ocidental foi, e ainda é, protegida pelo guarda-chuva nuclear americano. Foi a disposição do presidente Ronald Reagan de avançar com a Iniciativa Estratégica de Defesa — um programa também conhecido como Guerra nas Estrelas, que criaria um escudo contra mísseis soviéticos — que forçou a União Soviética a entrar em uma corrida armamentista que a levou à ruína e à extinção.

Apesar dos (muitos) pesares, os americanos usufruem de um dos melhores padrões de vida. A maioria dos cidadãos de outros países aceitaria alegremente a oportunidade de viver nos Estados Unidos. Tecnologias fundamentais como internet, inteligência artificial, robótica e exploração espacial foram criadas e avançam graças ao pioneirismo americano.

A política externa americana sempre oscilou entre os isolacionistas, que acreditam que o país deve concentrar recursos internamente, e os expansionistas, que acreditam que os Estados Unidos têm a missão de servir como polícia do mundo, corrigindo erros e injustiças e espalhando a boa-nova da democracia para outros povos, e precisam de territórios e bases espalhados pelo planeta para sua segurança e proteção.

A marca do governo de Joe Biden foi a incorporação nas políticas públicas e na estrutura do Estado de pautas da extrema esquerda identitária. A política externa de Biden retomou o tradicional sistema de alianças subordinado a uma abordagem majoritariamente progressista de temas como meio ambiente, liberdade de expressão, imigração, saúde e terrorismo, submetendo a soberania americana às decisões de organismos internacionais muitas vezes controlados por tradicionais adversários dos EUA.

Ordem judicial no Texas suspende programa de imigração nos EUA
O governo Biden adotou pautas progressistas e retomou alianças externas, subordinando a soberania americana a decisões internacionais, mesmo sob influência de adversários | Foto: Reprodução/X

Os eleitores americanos rejeitaram essas e outras políticas da era Biden e deram a Donald Trump uma vitória excepcional, cujo aspecto mais marcante é o patriotismo (ou nacionalismo; só o tempo dirá), resumido no slogan Make America Great Again. As ideias de Trump são claras: ele defende o uso do poder econômico como arma geopolítica (via ameaça de aumento de tarifas sobre importações); o retorno a um estado de lei e ordem (com o combate aos cartéis e a proteção das fronteiras); a remoção de estruturas e políticas de extrema esquerda de dentro do Estado (como as práticas de discriminação “positiva” denominadas eufemisticamente de “diversidade, equidade e inclusão”, que substituíram o critério do mérito pela necessidade de uma subjetiva “representatividade”); o aumento da eficiência do Estado e da competitividade da economia americana; e a reafirmação da soberania e do protagonismo dos EUA no mundo (por exemplo, denunciando a tentativa chinesa de controlar o Canal do Panamá). A defesa da liberdade de expressão será uma bandeira importante do governo Trump 2, principalmente dentro dos Estados Unidos. No exterior essa bandeira estará subordinada, naturalmente, aos outros interesses americanos.

A eleição de Donald Trump acendeu em muitos brasileiros a esperança de mudanças por aqui. Mas a disfuncionalidade institucional brasileira não será resolvida por Trump. A nova política americana só afetará a realidade brasileira na medida em que isso promover, ou proteger, os interesses americanos. Os casos da rede social X e da Starlink mostram que um cenário assim é possível, mas nada indica que seja provável.

A energia com a qual Trump se dedicou a cumprir suas promessas de campanha já no primeiro dia assustou muita gente que desconhece a história americana, principalmente a recente. Não há motivo para receio. O pêndulo geopolítico tinha se movido muito longe para o lado esquerdo. É inevitável — embora não necessariamente desejável ou bom — que a mesma coisa agora aconteça para o lado oposto. Mas nada livra os brasileiros da tarefa de assumir responsabilidade por seu próprio destino, e de ter a coragem e a maturidade de buscar caminhos e saídas para a situação do país, livres de ideologias tóxicas e do domínio de interesses ocultos.

Leia também “O maior arrependimento”

11 comentários
  1. MB
    MB

    O pêndulo está voltando e vai ultrapassar os limites à direita. O que fazer? É da física.

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Motta, sua análise é incontestável.
    Não adianta eu esperar que meu vizinho resolva os problemas da minha casa.
    No caso brasileiro, internamente o povo perdeu o medo e externamente a atuação de Donald Trump pela liberdade de expressão terá reflexos sendo os USA sede das gigantes do setor de tecnologia.
    Só isso assusta e muito a esquerda radial.

  3. Jorge Fernandes
    Jorge Fernandes

    Levante-te povo brasileiro !

  4. Dinarte Francisco Pereira Nunes de Andrade
    Dinarte Francisco Pereira Nunes de Andrade

    Análise sucinta e completa. O Super Homem existe, mas seu interesse está em Metrópoles. Se não aparecerem super-heróis por aqui, o mal continuará no poder.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A disfuncionalidade institucional começa com a possibilidade de uma criatura como Lula se candidatar a presidente quantas vezes quiser. Coisa que não pode nos EUA.

  6. José Pedro Scatena
    José Pedro Scatena

    O Deus-ExMachina que surge no momento em que tudo parece perdido só existe em enredos de novelas. A realidade dolorosa gestada pela administração incompetente e nefasta do desgoverno petista irá perdurar até que o povo se levante e recoloque a Nação no caminho certo.

  7. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Excelente esclsrecedora

  8. Ana Cláudia Chaves da Silva
    Ana Cláudia Chaves da Silva

    Concordo plenamente. Nossos problemas terão que ser resolvidos por nós, brasileiros. E por esse bando de congressistas omissos sem caráter.

  9. Fernando Anthero
    Fernando Anthero

    Motta, mais claro é impossível

  10. Kayck jordan luz farias
    Kayck jordan luz farias

    Perfeito!

  11. Kayck jordan luz farias
    Kayck jordan luz farias

    Perfeito!

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