Qualquer pessoa com conhecimento de história entende o papel desempenhado pelos Estados Unidos nos últimos cem anos. Colocando de uma forma direta: é graças aos EUA que a língua oficial da Europa não é o alemão. É também graças aos americanos que não vivemos em uma ordem internacional ditada pelo partido comunista da União Soviética.
Os Estados Unidos são o resultado da independência de 13 colônias inglesas na América do Norte. Quando se libertaram da Inglaterra, elas quase se tornaram países separados; finalmente resolveram se unir (daí “Estados Unidos”), depois de tomar inúmeras precauções para que nunca mais ficassem submetidas a um poder central arbitrário (quem deseja entender os EUA precisa entender isso). Por causa de várias circunstâncias únicas — que deram origem à teoria do excepcionalismo americano —, esse pequeno país, originário da fusão das 13 colônias, se tornou a maior potência industrial, científica, econômica, militar e cultural do planeta.
Nada disso foi de graça. A história dos Estados Unidos, como a história de todos os países, é imperfeita e recheada de tragédias, iniquidades e momentos nos quais o poder do Estado foi controlado por grupos para proveito próprio e usado injustamente contra os povos de outras nações ou até contra o povo americano.
Os EUA já passaram por uma guerra civil na qual 700 mil americanos foram mortos pelas mãos de americanos. A expansão para o oeste se deu à custa da vida e dos territórios dos habitantes originais da América (impropriamente chamados de “índios”). O imperialismo americano, nascido da vitória na guerra contra a Espanha em 1898 — quando os Estados Unidos adquiriram os territórios de Guam, Porto Rico e Filipinas —, acabou levando a tantas intervenções na América Latina que é difícil achar um país latino-americano que não tenha sofrido algum tipo de interferência americana, direta ou indireta.
Ainda assim o balanço é inteiramente positivo. Os Estados Unidos participaram decisivamente da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, derrotando o nazismo alemão, o fascismo italiano e o militarismo imperialista japonês, e depois — o mais impressionante de tudo — financiaram a reconstrução e a transformação dessas nações em democracias. A liberdade da Europa Ocidental foi, e ainda é, protegida pelo guarda-chuva nuclear americano. Foi a disposição do presidente Ronald Reagan de avançar com a Iniciativa Estratégica de Defesa — um programa também conhecido como Guerra nas Estrelas, que criaria um escudo contra mísseis soviéticos — que forçou a União Soviética a entrar em uma corrida armamentista que a levou à ruína e à extinção.
Apesar dos (muitos) pesares, os americanos usufruem de um dos melhores padrões de vida. A maioria dos cidadãos de outros países aceitaria alegremente a oportunidade de viver nos Estados Unidos. Tecnologias fundamentais como internet, inteligência artificial, robótica e exploração espacial foram criadas e avançam graças ao pioneirismo americano.
A política externa americana sempre oscilou entre os isolacionistas, que acreditam que o país deve concentrar recursos internamente, e os expansionistas, que acreditam que os Estados Unidos têm a missão de servir como polícia do mundo, corrigindo erros e injustiças e espalhando a boa-nova da democracia para outros povos, e precisam de territórios e bases espalhados pelo planeta para sua segurança e proteção.
A marca do governo de Joe Biden foi a incorporação nas políticas públicas e na estrutura do Estado de pautas da extrema esquerda identitária. A política externa de Biden retomou o tradicional sistema de alianças subordinado a uma abordagem majoritariamente progressista de temas como meio ambiente, liberdade de expressão, imigração, saúde e terrorismo, submetendo a soberania americana às decisões de organismos internacionais muitas vezes controlados por tradicionais adversários dos EUA.
Os eleitores americanos rejeitaram essas e outras políticas da era Biden e deram a Donald Trump uma vitória excepcional, cujo aspecto mais marcante é o patriotismo (ou nacionalismo; só o tempo dirá), resumido no slogan Make America Great Again. As ideias de Trump são claras: ele defende o uso do poder econômico como arma geopolítica (via ameaça de aumento de tarifas sobre importações); o retorno a um estado de lei e ordem (com o combate aos cartéis e a proteção das fronteiras); a remoção de estruturas e políticas de extrema esquerda de dentro do Estado (como as práticas de discriminação “positiva” denominadas eufemisticamente de “diversidade, equidade e inclusão”, que substituíram o critério do mérito pela necessidade de uma subjetiva “representatividade”); o aumento da eficiência do Estado e da competitividade da economia americana; e a reafirmação da soberania e do protagonismo dos EUA no mundo (por exemplo, denunciando a tentativa chinesa de controlar o Canal do Panamá). A defesa da liberdade de expressão será uma bandeira importante do governo Trump 2, principalmente dentro dos Estados Unidos. No exterior essa bandeira estará subordinada, naturalmente, aos outros interesses americanos.
A eleição de Donald Trump acendeu em muitos brasileiros a esperança de mudanças por aqui. Mas a disfuncionalidade institucional brasileira não será resolvida por Trump. A nova política americana só afetará a realidade brasileira na medida em que isso promover, ou proteger, os interesses americanos. Os casos da rede social X e da Starlink mostram que um cenário assim é possível, mas nada indica que seja provável.
A energia com a qual Trump se dedicou a cumprir suas promessas de campanha já no primeiro dia assustou muita gente que desconhece a história americana, principalmente a recente. Não há motivo para receio. O pêndulo geopolítico tinha se movido muito longe para o lado esquerdo. É inevitável — embora não necessariamente desejável ou bom — que a mesma coisa agora aconteça para o lado oposto. Mas nada livra os brasileiros da tarefa de assumir responsabilidade por seu próprio destino, e de ter a coragem e a maturidade de buscar caminhos e saídas para a situação do país, livres de ideologias tóxicas e do domínio de interesses ocultos.
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