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Foto: Shutterstock
Edição 254

O câncer vai perder

Já conhecemos o caminho para prevenir e curar o câncer. Agora é uma questão de tempo

Dagomir Marquezi
-

Uma célula do estômago leva mais ou menos três
meses para começar a envelhecer. Quando ela envelhece,
em vez de morrer, se divide em duas novas células.
Essas células vão crescer e ocupar o lugar da célula-mãe.
O câncer é uma mutação. Em vez de produzir duas células
iguais, produz uma célula diferente dessa outra que é
normal. Então a normal vai trabalhar. A outra, além de não
trabalhar, não vai parar de se multiplicar. É isso que é o câncer.”
(Dr. Paulo Grimaldi, Viagem ao Centro da Vida
— Memórias de um Patologista)

Uma matéria da revista Newsweek contou a história do pianista de jazz Michael Wolff. Em 2015, ele descobriu que estava com um raro caso de câncer no sangue chamado sarcoma histiocítico. Wolff entrou na rotina do de quimioterapia, sem muita esperança. Seu oncologista, o doutor Mrinal Gounder, lhe deu dois meses de vida.

Decidiram então tentar um caminho que na época ainda parecia ficção científica: o whole genome sequencing (WGS), ou sequenciamento total do genoma. O WGS conta a história de um organismo por meio de seus genes. Esse histórico mostra os detalhes ocultos da formação do câncer. E assim possibilita que o tratamento não seja genérico, mas muito específico para aquele caso.

Com base nesses novos dados, o doutor Mrinal Gounder resolveu arriscar um tratamento à base de uma pílula chamada Mekinist. Wolff não entendeu nada. Depois de tanta quimioterapia e uma condenação de curto prazo, ele ia se curar com um comprimido?!

Sem nada mais a perder, o músico engoliu a Mekinist. Em dois dias, os sintomas sumiram. Em dez dias, os tumores em estágio final foram reduzidos a 20%. Hoje, em 2025, quase uma década depois do primeiro diagnóstico, o câncer de Michael Wolff desapareceu. 

A nova luta contra o câncer não é mais um bombardeio generalizado, como a tradicional quimioterapia. Que pode curar, mas provoca um grande estrago no organismo do paciente. A nova guerra ao câncer se faz com um sniper executando o inimigo com um tiro certeiro.

Representação do sequenciamento genético | Ilustração: Pan Andrii/Shutterstock

20 milhões por ano

A vida começa numa divisão de células. O óvulo fertilizado se divide em duas células, que viram quatro, depois oito, e assim por diante. Até o momento em que aquele óvulo se torna um ser humano adulto com cerca de 40 trilhões de células. 

Com esse universo de células, é grande a possibilidade de algumas delas irem pelo caminho errado. Segundo dados citados pela Enciclopédia Britânica, cerca de 20 milhões de pessoas são diagnosticadas com câncer a cada ano no mundo, e 9,7 milhões morrem por causa da doença. Dessas mortes, 70% acontecem em países mais pobres.

O caminho até agora para combater o câncer passa pela detecção, pela confirmação, pela biópsia e pelo combate por meio de químio e radioterapias. Esse método tradicional tem início a partir do momento em que a doença já se instalou no organismo. Se ela chega à corrente sanguínea ou ao sistema linfático, temos a metástase. Os tumores se espalham por outros órgãos. E quando se chega a esse ponto geralmente não há muito o que fazer.

Células são programadas

A mudança de paradigma hoje trata o câncer não como uma doença “do coração”, “do pulmão”, “da próstata”, “do ovário”, e assim por diante. Segundo a oncologista computacional (sim, já existe essa profissão) Elli Papaemmanuil, “o câncer é uma doença do genoma”. E o genoma é todo o material genético em um organismo. 

Pense no corpo como um aparelho. Cada uma de nossas 40 trilhões de células carrega no DNA as instruções de como deve funcionar. Um pouco como um aplicativo no celular ou um programa no computador. Essa programação visa ao crescimento e ao bom funcionamento de um organismo, como o nosso corpo. 

Com a idade, algumas células começam a não funcionar mais como deveriam. A programação do DNA está lá, mas a célula não consegue manter a integridade. Às vezes não é a idade que conta, mas, por exemplo, o excesso de álcool e nicotina. Quando essas células desreguladas se proliferam, temos o câncer.

Ilustração de uma célula do corpo humano | Ilustração: Shutterstock

500 mutações

Imagine um episódio da série CSI. Ocorre um crime, não se sabe a identidade do assassino. Então, a equipe do doutor Gil Grissom recolhe pistas na cena do crime. Com essas pistas, remonta a história do assassinato. E, com base nessa história, chega ao criminoso.

O sequenciamento genético levanta o histórico das mutações das células. Ao descobrir a raiz do problema, é possível ter uma solução exata e específica para ele. “Para muitos tipos de câncer, os resultados mudaram completamente”, declarou a doutora Elli Papaemmanuil à Newsweek. “Vimos tipos de tumores que eram incuráveis ​​agora serem curados sem nem mesmo receber quimioterapia.”

O Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York (onde o músico Michael Wolff se tratou), se especializou nesse processo com o projeto MSK-IMPACT. Eles já identificaram, por meio de testes, mais de 500 mutações de câncer. E é apenas uma entre várias empresas no mercado seguindo esse rumo.

O preço desabou

Não se trata de um procedimento para meia dúzia de pacientes servindo de cobaias. Até agora, mais de 100 mil pessoas já tiveram seu genoma sequenciado apenas dentro do projeto MSK-IMPACT. Já se sabe até o espaço ocupado pelo genoma de um indivíduo — 200 gigabytes de dados. 

Por enquanto, o WGS tem mais sucesso em tipos de cânceres como leucemias, sarcomas e tumores no sistema nervoso central. Outro campo promissor é o da oncologia pediátrica. Pela própria idade do paciente, fica menos difícil saber onde o problema começou.

O WGS tende a ser o procedimento-padrão nas próximas décadas. Seu custo está desabando. O sequenciamento do genoma de uma pessoa em 2002 custava aproximadamente US$ 100 milhões. Vinte anos depois, o preço caiu para menos de US$ 1 mil. Algumas máquinas mais poderosas, como a Illumina, hoje fazem o procedimento de amostras por algumas centenas de dólares. 

Os biógrafos de nossas células

Essa busca pela história de nossas células está ganhando novos “biógrafos” — as próprias células. A doutora Tanja Stadler, do laboratório ETH, de Zurique, revelou ao New York Times que uma rede de pesquisadores está desenvolvendo uma tecnologia que permite que células “sentinelas” registrem o que acontece ao seu redor. 

Esses vigias estão sendo chamados de DNA typewriters, ou máquinas de escrever DNA. “Estou me sentindo meio doente agora”, exemplifica um dos pesquisadores, o doutor Alex Schier, da universidade suíça de Basel. “Tive uma infecção há três meses? Tive envenenamento por mercúrio há sete meses?”

Não é mais um chute do médico, baseado em uma biópsia genérica. É o registro do que está acontecendo célula por célula, como a caixa preta de um avião. Quando nossas células contam a própria história, chegamos a um nível de avanço que permite prever — sim — o fim do câncer.

Representação do sequenciamento genético | Ilustração: Shutterstock

O senso de humildade

Não custa lembrar que todos esses processos de ponta não vão chegar amanhã ao SUS. Seu aperfeiçoamento e generalização pode demorar gerações. Mas uma solução definitiva para esse pesadelo parece estar a caminho.

“A biologia do câncer é extraordinariamente complicada, e acho que estamos apenas começando a arranhar a superfície”, afirmou Mrinal Gounder, o médico que cuidou com sucesso do pianista Michael Wolff e que hoje frequenta seus shows. “Seja um câncer comum, seja um câncer ultrarraro, você tem que abordar tudo isso com um senso de humildade.” 

Michael Wolff se tornou símbolo de uma utopia: o tempo em que a palavra “câncer” não vai mais nos deixar em pânico, e a doença poderá ser curada em poucos dias com a pílula certa. Seus dois meses de vida já duraram dez anos, e Wolff continua saudável tocando seu jazz. Um dia, quem sabe, esse talento também poderá ser localizado em alguma parte do seu mapa genético.

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