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Foto: Revista Oeste/IA
Edição 254

Pragmatismo excessivo

O culto ao 'homem prático', com foco apenas no presente imediato, representa a renúncia à evolução

Rodrigo Constantino
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Até onde deve ir o pragmatismo? Será que para simplesmente sobrevivermos devemos abrir mão de praticamente todos os nossos ideais e nos tornar pessoas mais “práticas”? Se a política é a arte do possível, isso significa que devemos fazer tantas concessões a ponto de não mais identificarmos quaisquer resquícios de valores morais em nossas ações? Mas, se as concessões forem demasiadas, isso não é basicamente adesão, colaboracionismo?

Tais reflexões estão presentes em qualquer conservador mais atento ao quadro atual do Brasil. Afinal de contas, a direita teve uma chance, peitou o sistema com Bolsonaro, jogou dentro das quatro linhas, e o resultado é este aí: um regime autoritário que censura, persegue e praticamente criminalizou a direita na política. Muitos passam a acreditar que não há mais qualquer saída fora do “jogo de sempre”, e que compor com o centrão fisiológico é a única alternativa.

Em março de 2016, Bolsonaro declarou sua pré-candidatura à Presidência do Brasil | Foto: Reprodução/Agência Brasil
A direita teve uma chance, peitou o sistema com Bolsonaro | Foto: Reprodução/Agência Brasil

Seria o fenômeno da “direita permitida”, a volta do teatro das tesouras, uma “direita” um tanto tucana, que em essência desistiu de lutar por seus ideais em nome de um pragmatismo excessivo. Não quero jogar pedras em quem pensa assim, pois compreendo o momento difícil pelo qual passa nossa “democracia”, e por entender que há papéis diferentes para perfis e players diferentes. Mas gostaria de apresentar uma visão distinta, inspirada num livro que li há mais de uma década.

É praticamente impossível ler O Homem Medíocre, de José Ingenieros, e não pensar na situação caótica do nosso país. No livro, o autor descreve as características presentes numa mediocracia, contrapondo isso à visão de um ideal de perfeição por parte de alguns poucos indivíduos de destaque. Ingenieros sustenta que é fundamental manter acesa essa chama de um ideal, uma meta visionária que não sucumba às contingências da vida prática imediata. Esses visionários buscam alguma perfeição moral, emancipando-se do rebanho. São espíritos livres, adversários da mediocridade, são entusiastas contra a apatia. Sem ideais o progresso seria impossível. O culto ao “homem prático”, com foco apenas no presente imediato, representa a renúncia à evolução.

O idealista é um rebelde em relação ao sentimento coletivista típico dos rebanhos. Ingenieros diz: “Todo individualismo, como atitude, é uma revolta contra os dogmas e os valores falsos respeitados nas mediocracias; revela energias anelosas de expandir-se, contidas por mil obstáculos opostos pelo espírito gregário”. O caráter digno afirma seu ideal frente à mesmice comum, levanta sua voz quando os povos se domesticam e se calam. Um povo que tenta eliminar esses indivíduos independentes é um povo dominado por medíocres.

Capa do livro O Homem Medíocre, de José Ingenieros | Foto: Divulgação

De um lado, temos os poucos que pensam por conta própria, que usam o próprio juízo, que buscam sinceramente a verdade. Do outro, temos os seres passivos, que deixam a “sociedade” pensar por eles. São os medíocres, que não têm voz, mas eco, e vivem como sombras. De um lado, indivíduos com convicções que entram como parafusos, gradualmente, mas com firmeza. Do outro, adeptos fanáticos de crenças que entram como pregos, num golpe só. De um lado, os que vivem a própria vida. Do outro, aqueles para quem viver é ser arrastado pelas ideias alheias, feito gado.

“Nos povos domesticados chega um momento no qual a virtude parece um ultraje aos costumes.” Quem consegue ler isso e não refletir sobre a realidade brasileira? “Quando a dignidade parece absurda e é coberta de ridículo, a domesticação dos medíocres alcançou seus extremos.” No Brasil, não é visto como patética a defesa intransigente de ideais morais? O “jeitinho” não faz parte da cultura nacional? A corrupção política não passou a ser vista com naturalidade?

Quem tem alguma sensibilidade, olha para o presente com certo desdém, desejando mais. “Quando colocamos a proa visionária na direção de uma estrela qualquer e nos voltamos às magnitudes inalcançáveis, no afã de perfeição e rebeldes à mediocridade, levamos dentro de nós, nesta viagem, a força misteriosa de um ideal”, diz Ingenieros. Quem deixa essa força se apagar, ficando simplesmente inerte, não passa “da mais gelada bazófia humana”. O autor conclui: “O ideal é um gesto do espírito em direção a alguma perfeição”.

Tal perfeição pode nunca ser alcançada, e em política é mesmo perigoso buscar perfeições. Mas daí a aceitar com resignação um status quo medíocre vai uma longa distância, que separa o acomodado do eterno rebelde que luta por mais. A direita brasileira ainda é desorganizada e lhe falta mais base filosófica. A guerra contra a esquerda será longa, e o tempo urge, pois há presos políticos, jornalistas censurados, Estado aparelhado. Temos que lutar com as armas possíveis, sem vender falsas ilusões.

Mas isso não pode ser sinônimo de desistência ou adesão. E, saindo do abstrato para o concreto, apoiar uma figura como Alcolumbre ao comando do Senado soa como adesão. Não há o menor risco de dar certo! O custo moral é elevadíssimo. Destrói-se todo um discurso coerente em prol de nada. Oposição precisa se opor, e não compor com o regime. No limite, o argumento “pragmático” justificaria até aderir ao governo petista em troca de um ministério, e isso seria absurdo!

O maior impacto do deputado Nikolas Ferreira não foi em comissão alguma, mas gravando um vídeo como oposição ferrenha ao governo, revertendo assim uma medida nociva ao povo. A direita precisa fazer oposição, voltar a atrair o povo às ruas, pressionar os parlamentares “isentões”, mobilizar as redes sociais. Apoiar um nome como o de Alcolumbre impede tudo isso, sacrifica um ideal no altar da mediocridade. Eu me recuso a acreditar que só resta aos conservadores um jogo desses, a volta do teatro das tesouras, quando tucanos se vendiam como antipetistas. O Brasil pode mais!

Bolsonaro e Nikolas Ferreira
O ex-presidente Bolsonaro ao lado de Nikolas Ferreira, em manifestação na Avenida Paulista (25/02/2024) | Foto: Reprodução/Redes Sociais

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5 comentários
  1. Renato Perim
    Renato Perim

    Entendi perfeitamente a quem se endereça o texto e concordo 100%. Ainda estou esperando alguém me explicar o apoio do ex-presidente a um canalha como o Alcolumbre. Anos e anos de batalha pra terminar nisso aí? Como disse o Constantino, o tempo urge, há milhares de pessoas presas, a vida não espera. E o canalha já avisou que não vai pautar anistia a ninguém. Vai Bolsonaro, explica antes que o apoio a você chegue a zero.

  2. Marcos Heluey Molinari
    Marcos Heluey Molinari

    Certo, Consta, mas pensa comigo: o Bolsonaro aderiu ao Alcolumbre, em troca de algumas comissões e lugar na mesa. Segundo você, não vai dar em nada, não é? Onde está o “breakeven point ? Se não dá para aderir a essa quadrilha no poder, a meu ver, só vai ter um jeito: urnas confiáveis, com voto impresso e apuração pública dos votos. Mas ninguém fala mais nisso. Se, em 2026, com urnas confiáveis e auditáveis, essa esquerda ganhar, phoda-se. Vamos embora dessa m****. Só não pode repetir 2022 e passarmos mais quatro anos vendo o país virar uma Venezuela, com o Judiciário mandando em tudo e o Lula e a Globolixo mentindo na nossa cara o tempo todo. Haja saco !!!

  3. Vinicius Freitas
    Vinicius Freitas

    Brilhante dissertação Constantino! Só um contraponto: o “jogo já está jogado” e se você não consegue vencer o inimigo, junte-se a ele. Não somos políticos e muito menos conhecemos os segredos da alcova. O Não nós já temos. Vai que dá certo.

  4. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    E onde está um congresso majoritariamente conservador, incapaz de eleger um presidente decente? Onde está um líder de “direita” que apoia um sujeito já testado e aprovado como apoiador dos caras que desfiguraram a Democracia que existia aqui, não faz muito tempo? Concordo. Ser pragmático demais, é como ser covarde demais, é fugir desesperadamente no meio da batalha tentando salvar os seus fundilhos.

  5. Sergio Antonio Dias
    Sergio Antonio Dias

    Perfeito Constantino….não tem como dar certo um apoio destes……teria sim que se brigar por uma eleição ao senado com voto aberto, não que isso pudesse mudar o rumo imediato de quem irá vencer, mas expor pra quem vota, quem realmente esta a favor e quem está contra o ” Brasil”…..e aí o Eleitor iria decidir em quem votar para “Deputado e Senador”, nas próximas eleiçoes…..

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