“Se não tem pão, que comam brioches” é uma das frases mais infames da história, atribuída a Maria Antonieta, rainha da França, ao saber que os súditos não tinham o que comer, em 1774. Provavelmente a rainha nunca pronunciou essas palavras, fruto das más línguas dos opositores. Mas em tempos de escassez de alimentos ninguém questionou sua veracidade. A expressão pegou, acabou com sua imagem e lhe custou o trono. Além da cabeça.
Mais de 250 anos depois, outra frase está tendo um efeito explosivo na popularidade de um governante. “A laranja está cara, que comam outra fruta”, disse o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, respondendo a perguntas de jornalistas sobre a inflação dos alimentos, que não para de subir. Pena que os preços de todas as frutas tenham subido quase 13% nos últimos 12 meses. A resposta do ex-governador baiano viralizou rapidamente nas redes sociais. Se tornou meme.
“O preço internacional está tão caro quanto aqui. O que se pode fazer? Mudar a fruta que a gente vai consumir. Em vez da laranja, outra fruta” https://t.co/z7AgtUmN9f pic.twitter.com/gTfx3THjOO
— Allan dos Panos (@allandospanos) January 24, 2025
Costa não foi o único ministro do governo Lula a decidir incorporar o espírito de Maria Antonieta. Em outubro de 2024, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, declarou que os brasileiros deveriam “substituir alface por chicória” para driblar a alta dos custos da comida. Ignorou que a chicória era, e continua sendo, mais cara do que a alface. Sintoma da longa ausência do ministro em feiras e supermercados. A fala de Marinho também se tornou meme, sepultando de vez a pouca credibilidade que ele ainda detinha.
A picanha virou pé de galinha e a alface virou chicória. pic.twitter.com/dPNOxrrKWF
— Nikolas Ferreira (@nikolas_dm) October 31, 2024
Já no começo de seu terceiro mandato, em março de 2023, Lula sugeriu em vídeo que seria possível acabar com a fome no Brasil plantando abóbora. Desconsiderou sua própria promessa eleitoral de garantir picanha e cerveja aos brasileiros. Virou imediatamente meme, eternizando o deboche.
Todas essas declarações mostram a incapacidade do governo do PT de enfrentar o maior carrasco de sua popularidade: o aumento dos preços nas prateleiras.
Em 2024, a inflação dos alimentos no Brasil chegou a 8,23%. Quase o dobro do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a inflação oficial do Brasil, que deve terminar o ano em 4,83%.
Em algumas cidades o carrinho do supermercado está ainda mais caro. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em São Paulo a alimentação nos domicílios aumentou 10%; em Goiânia, 10,6%; e em Campo Grande, 11,3%.
O Brasil registrou a quarta maior inflação dos alimentos da América Latina e a quinta maior do G20. Ficou atrás apenas de países em guerra, como a Rússia, ou assolados por graves crises econômicas, como a Venezuela.
Os preços de vários itens subiram dois dígitos. O café moído aumentou quase 40% no ano. As carnes inflacionaram cerca de 21%. O leite longa vida sofreu alta de 19%.
É uma inflação que flagela principalmente os brasileiros mais pobres. Que viram seu poder de compra alijado, sua geladeira mais vazia e sua família mais faminta. E começaram a responsabilizar o Planalto.
Não por acaso, a popularidade do governo teve uma queda vertical entre o eleitorado menos abastado e nas Regiões Norte e Nordeste. As únicas regiões onde Lula ganhou de Jair Bolsonaro em 2022. Em poucos dias, a aprovação do Executivo despencou 10 pontos, enquanto a rejeição aumentou 5.
“A popularidade no Nordeste não sobe com obra”, explica Murilo Hidalgo, diretor do Paraná Pesquisas. “Sobe com renda, com mais acesso a comida e consumo. O eleitor nessa região quer um ganho na vida realw. Esse é o grande desafio para Lula em 2025 e 2026. Pois esses foram seus grandes eleitores. Se ele não conseguir entregar, o cenário fica difícil.”
Receita para o Brasil crescer e acabar com a fome!
— Lula (@LulaOficial) March 22, 2023
🎥: @ricardostuckert pic.twitter.com/CTUHsDDSrt
O Leão na feira
Contra a inflação dos alimentos não há marqueteiro que resolva. A opinião do povo sobre o governo derrete de forma inversamente proporcional ao aquecimento dos preços nas prateleiras.
O governo Dilma Rousseff enfrentou o mesmo problema. No primeiro trimestre de 2013, o tomate foi o símbolo da escalada dos preços, aumentando 122% em 12 meses. Poucas semanas depois, em junho de 2013, o Brasil foi tumultuado por manifestações de massa. Não foi apenas pelos 20 centavos de aumento das passagens de ônibus. A insatisfação generalizada tinha muito a ver com o custo da comida.
O PT não se esqueceu desse trauma. Por isso, na semana passada Lula foi obrigado a convocar uma reunião ministerial emergencial cuja pauta única foi tentar desarmar essa bomba política.
As propostas apresentadas se dividiram entre inúteis e nocivas. Rui Costa chegou a falar em um “conjunto de intervenções” para baratear os alimentos. Sua assessoria foi forçada a corrigir o ministro, após temores de que o governo pudesse adotar medidas populistas para atenuar o problema, provocando um impacto nas contas públicas.
Acabar com o imposto de importação dos alimentos, por exemplo, teria um efeito mínimo sobre o preço final. O Brasil é um dos maiores exportadores de produtos agrícolas do mundo, alimentando mais de 1 bilhão de pessoas. O efeito de uma eliminação de tarifas alfandegárias não traria resultados para a mesa do consumidor interno. Mas aumentaria o rombo nas contas públicas, que já é enorme, e provocaria uma desvalorização ainda maior do real frente ao dólar. E, portanto, mais inflação.
Outra ideia foi alterar as regras do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), com foco no vale-alimentação, para reduzir os ganhos das empresas intermediárias. Uma operação que não forçaria os supermercados a baixar os preços. Além disso, poderia quebrar muitas operadoras de cartões e gerar problemas ainda mais graves para os consumidores.
Até mesmo a Caixa Econômica Federal foi incluída nessa negociação, com a possibilidade de criar um novo cartão de débito do banco público que funcionaria como vale-alimentação, com controle das transações via Receita Federal. Dificilmente os brasileiros aceitarão ser bisbilhotados pelo Leão até na feira.
Chegou-se até a cogitar a alteração do vencimento de alguns alimentos. Outra intuição catastrófica para a popularidade do governo, embora a sugestão tenha vindo da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). A legalização da “xepa” nem sequer foi apresentada formalmente. Foram suficientes poucas horas de bombardeio retórico nas redes sociais por parte de cidadãos enfurecidos para que o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, viesse a público para negar essa possibilidade. Mesmo assim, arranhou ainda mais a imagem do Planalto.
“O povo votou no Lula acreditando que ia comer picanha, trocar de carro, trocar de TV, mas nada aconteceu”, explica Hidalgo. “Isso gera insatisfação”.
O grande latifúndio imaginário
O desespero do Executivo fica claro quando palpites populistas aparecem no radar. Entre eles a criação de empórios populares, que relembram experiências fracassadas do regime de Caracas, e o congelamento de preços, um saudosismo da época do governo Sarney. Pensaram até mesmo em taxar a exportação do agronegócio, para forçar os produtores rurais a vender no mercado interno.
Filiado ao Psol, Guilherme Boulos já prepara sua justificativa retórica para intervenções dessa natureza: “Em 2024, o agro exportou R$ 75 bilhões em café. No mesmo ano, o preço do café aqui dentro aumentou quase 40%. Isso porque o agro vende pra fora o que se planta aqui dentro. 1º vem o lucro; se sobrar algo, vendem no mercado interno. Resultado: riqueza para meia dúzia de exportadores, e comida mais cara no prato de milhões de brasileiros”, escreveu o ex-candidato à Prefeitura de São Paulo em suas redes sociais.
Detalhe: segundo o Censo Agropecuário do IBGE, a agricultura familiar responde por 48% da produção de café no Brasil. Na Cooxupé, maior exportadora de café do mundo, entre os 20 mil cooperados, 97% são da agricultura familiar. A mesma defendida ferinamente pela esquerda brasileira contra o “grande latifúndio”.
O problema é que esses devaneios não se limitam à oratória. Em 2022, o próprio ministro Teixeira, então deputado federal, chegou a apresentar com outros 21 colegas o Projeto de Lei nº 1.586, que estabelecia a taxação das exportações de grãos e carnes: “Este projeto de lei visa corrigir uma contradição que afronta o interesse público no Brasil, a saber: a abusividade dos volumes de alimentos exportados pelo país num contexto de situações sistemáticas de volatilidade dos preços e insuficiência do abastecimento interno desses produtos.”
Não vingou. O PL foi rejeitado em três comissões da Câmara. Mas continua em tramitação e aguarda análise de uma quarta.
De quem é a culpa?
As causas da alta dos alimentos são várias. Algumas independem da vontade do inquilino do Planalto. É o caso do aumento das cotações internacionais das commodities e da maior demanda por alimentos em vários países. Esses fatores influenciaram os preços no mercado doméstico.
“O caso do café é emblemático”, afirma Xico Graziano, ex-deputado federal e ex-secretário de Agricultura de São Paulo. “O consumo mundial está em alta há muitos anos. A China hoje tem mais cafeterias do que os Estados Unidos. O Vietnã teve chuvas excessivas. Com isso, o preço acaba subindo internacionalmente. E fica mais caro por aqui também”.
Outro exemplo é o da carne. A produção de bovinos na Europa e nos Estados Unidos vem diminuindo nos últimos anos, enquanto o consumo se mantém. “Sem contar o ciclo pecuário brasileiro, que neste momento está na fase de alta dos preços”, observa Graziano. “Com isso, o preço da arroba sobe”.
Mas o governo Lula também tem uma parcela relevante de responsabilidade. O aumento dos gastos com o Bolsa Família e outros programas assistenciais elevou subitamente a renda per capita de mais de 56 milhões de brasileiros. A primeira coisa que essa parcela da população fez foi comprar mais alimentos. Mas uma demanda tão repentina não deu tempo para as empresas se organizarem para aumentar a oferta. E os preços aumentaram.
Além disso, o rombo nas contas públicas e as incertezas sobre a economia brasileira provocaram uma desvalorização de quase 30% do real frente ao dólar em 2024. Com efeito imediato na inflação dos alimentos, uma vez que os produtos importados, como o trigo para produzir pão, são cotados em dólar. E acabaram ficando mais caros em real.
“O governo não tem muito o que fazer”, afirma Graziano. “Mas o que não deveria ter feito é gastar sem parar. A desconfiança que se criou em relação à política econômica provocou a desvalorização do real frente ao dólar.”
Em uma entrevista recente, o ministro da Fazenda Fernando Haddad afirmou que podemos chegar bem a 202: “Espero que comendo até filé-mignon”. Assim, ele mostrou para a opinião pública que os decisores políticos parecem não ter noção do que estão falando. Ou do que está ocorrendo nas ruas do país.
A inflação é o imposto mais perverso que existe. Ela onera os mais pobres, que não conseguem se defender. E aumenta a desigualdade e a miséria. Os brasileiros sentem isso diretamente em sua mesa. E começam a culpar o governo.
Irritados não apenas pelas privações alimentares, mas também pela insolência de um Executivo que, no passado, já comprou carnes nobres, bacalhau, uísque de luxo e cachaça premium. Tudo pago com o cartão corporativo da Presidência da República. E tudo posto sob sigilo. Maria Antonieta não teve essa chance.
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