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Edição 255

O racismo por outros meios

Assim é que eles querem compreender a 'branquitude' — não como um cientista contempla o seu objeto, mas como um soldado olha para o inimigo

Flávio Gordon
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“Não precisamos que governos ou grupos externos nos digam
quem somos ou falem em nosso nome. Estou cansado
de ser reduzido a ‘indígena’, ‘nativo’ ou membro das
Primeiras Nações. Sou, sim, Tsimshian [povo indígena do noroeste
canadense], mas minha identidade não se esgota nesse rótulo.”
(Chris Sankey, Como as Políticas Identitárias
Prolongam o Racismo, 2021.)

No livro O Estado no Pensamento Católico, o teórico social católico Heinrich Rommen faz observações muito perspicazes sobre as teorias racialistas da natureza humana, como a dos nazistas. Segundo Rommen, sua proposição central consiste em afirmar que “os méritos de razões objetivas” não importam para determinar o que um indivíduo pensa e faz, mas, sim, “a voz interna subconsciente do sangue, da raça etc.”. Para a antropologia racial nazista, diz o autor, o indivíduo “não pode se colocar acima desses elementos pela força da razão, mas está submerso na corrente inexorável”. 

Embora isso possa soar contraditório, é difícil distinguir essa visão da postura supostamente “antirracista” da Teoria Crítica da Raça (TCR), que começamos a apresentar no artigo anterior. Seus adeptos também negam a ideia de racionalidade humana universal, acreditando que o pensamento e o comportamento humanos são determinados pela “voz interna subconsciente” da “raça” ou da “etnia”. Como vimos, a ideia parte da premissa marxista da determinação material da consciência, substituindo a “classe” pela “raça” como o fator primordial da agência humana. 

Flávia Oliveira, por exemplo, personagem da coluna passada, certa vez teceu o seguinte comentário em relação ao pretenso “racismo estrutural” brasileiro: “Tocando no ponto da falta de diversidade racial no jornalismo. Acrescento, além da desigualdade estrutural, as redes de relacionamento. Os brancos se conhecem e se escolhem”. 

Nota-se que a ideologia TCR é eminentemente coletivista, não concebendo o homem como um indivíduo dotado de razão, mas como representante de uma “raça”, a qual, por assim dizer, fala e age através dele. Os militantes da TCR acreditam num Outro fictício, chamado “os brancos”, tanto quanto os nazistas acreditavam na existência da entidade fantasmagórica “os judeus”. E acreditam num Mesmo fictício, chamado “os negros”, tanto quanto os nazistas julgavam ser motivo de orgulho pertencer à coletividade racial mítica chamada “os arianos”.

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Como afirma categoricamente Robin DiAngelo, uma das ideólogas mais radicais, a TCR é contrária à ideologia do individualismo: “Representamos nossos grupos e aqueles que vieram antes de nós. Não vemos através de olhos claros ou objetivos — vemos através de lentes raciais”.

Com efeito, a premissa central da TCR é que o racismo adentra pelos poros de todas as instituições sociais, bem como na alma de cada indivíduo. Está entranhado não apenas na psique de cada pessoa “branca”, como também na dos “negros” (ou “não brancos”). Estes seriam vítimas de uma espécie de “falsa consciência” racial, ao internalizarem as avaliações racistas dos “brancos” e, consequentemente, aceitarem passivamente as políticas e as instituições racistas que os oprimem. De acordo com esse novo racialismo, o “sistema de ascendência branca sobre outras cores” é “ordinário, não excepcional”. É “o modo habitual como a sociedade opera”. Ou, como afirma DiAngelo: “Nenhum aspecto da sociedade escapa das forças do racismo”.

Segundo a TCR, toda pessoa “não branca” vive oprimida sob um regime de “poder racista”, “privilégio branco” e “supremacia branca”. Ao usarem essas expressões, os neorracialistas não estão se referindo aos exemplos reconhecidos de comportamento racista — a Ku Klux Klan, as leis Jim Crow, o apartheid na África do Sul etc. Para eles, também são racistas, ainda que de modo inconsciente, as sociedades em que essas manifestações ostensivas de preconceito racial jamais estiveram presentes, e até mesmo os “brancos” que rejeitam abertamente o racismo. Daí que, na ausência de violência racial identificável, as patrulhas da TCR andem por aí à cata de “microagressões” e “violências simbólicas”. Afinal, como diz DiAngelo: “O racismo permeia cada vestígio da nossa realidade”.

Para a ideologia TCR, o não racista é também racista. “A linguagem da neutralidade racial [color blindness], bem como a linguagem do ‘não racismo’, serve de máscara para esconder o racismo” — diz Ibram X. Kendi, outro extremista da ideologia TCR. De modo que, na visão desses autores, não há como escapar da pecha (que, no Brasil, por exemplo, dá cadeia). Os que negam serem racistas apenas confirmam o próprio racismo no ato mesmo de negá-lo. 

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Assim é que Robin DiAngelo criou o rótulo “fragilidade branca” para descrever a tendência das pessoas “brancas” de se ofenderem com a acusação de racismo. “A postura defensiva diante de toda sugestão de viés racial representa a fragilidade branca clássica, porque protege o viés e ao mesmo tempo afirma a nossa identidade de pessoas de mente aberta.” 

Configura “fragilidade branca”, por exemplo, toda tentativa de responder a acusações de racismo com argumentação. De acordo com DiAngelo, a mera tentativa de argumentar representa “um meio poderoso de controle racial branco e proteção da vantagem branca”. Portanto, ofender-se ao ser chamado de racista ou defender-se da acusação equivale, por si mesmo, à prática de “bullying”. Em vez de defender-se, o acusado deve demonstrar gratidão para com o acusador e, em seguida, penitenciar-se. “O coração do racismo é a negação e o coração do antirracismo é a confissão” — escreve Kendi. 

Dentro da TCR, há um subcampo dedicado aos estudos críticos sobre a “branquitude”. Os especialistas da área dedicam-se ao estudo da “raça” branca, buscando compreender como vivem, o que comem e o que pensam os “brancos”, na esperança de que a etiologia desses seres vivos possa explicar o racismo. “A identidade branca é inerentemente racista” — diz DiAngelo. “As pessoas brancas não existem fora do sistema de supremacia branca”. Eis por que, ao contrário de Demétrio Magnoli, Flávia Oliveira tenha enxergado “supremacia branca” no discurso de posse de Donald Trump. Ela enxergaria “supremacia branca” em qualquer coisa — num criado-mudo, num bolo nega-maluca, num copo de leite, quiçá na Branca de Neve…

De acordo com DiAngelo, todo “branco” tem a obrigação de “lutar contra a sua fragilidade branca” e, mais ainda, “esforçar-se para ser menos branco”. Todo “branco” deve sentir pesar sobre si a culpa pela brutalidade da “supremacia branca”. Quase repetindo o que, às vésperas da Revolução Francesa, teria dito o jacobino Antoine Barnave sobre o linchamento do intendente de finanças de Luís XVI — “Será esse sangue tão puro?” —, uma obra de introdução à TCR conclui: “Nenhum membro branco da sociedade parece inteiramente inocente”.

Ao acrescerem o adjetivo “críticos” aos seus estudos, os ideólogos da TCR querem dizer que eles devem ser politicamente instrumentalizáveis, convertidos em armas de combate. Assim é que eles querem compreender a “branquitude” — não como um cientista contempla o seu objeto, mas como um soldado olha para o inimigo. Daí a sua defesa intransigente, na esfera das políticas públicas, da discriminação racial “positiva” — ou seja, contra os “brancos”. Segundo Ibram X. Kendi, “a discriminação racial não é inerentemente racista”. Uma vez que gera equidade, ela seria, ao contrário, antirracista. “O único remédio para a discriminação racista é a discriminação antirracista. O único remédio para a discriminação passada é a discriminação presente. O único remédio para a discriminação presente é a discriminação futura” — escreve.

Felizmente, há quem aposte em outro remédio que não o do fortalecimento das identidades “raciais”. Há coisa de um ano e meio, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos proibiu as universidades de utilizar critérios raciais em suas admissões, no caso Students for Fair Admissions vs. Harvard (SFFA vs. Harvard), um dos votos mais bonitos foi dado pelo juiz negro Clarence Thomas — algo que, segundo a TCR, deveria ser impossível, uma vez que “negros” devem julgar como “negros” (leia-se: invariavelmente a favor da discriminação racial “positiva”).

Clarence votou não de acordo com a “voz interna” de sua “raça”, mas com a de sua consciência humana. Depois de afirmar que “o racialismo simplesmente não pode ser desfeito por um racialismo diferente ou maior”, e repudiar aqueles que, sob o pretexto de ajudá-los, tratam os negros como “uma casta perpetuamente inferior”, ele encerrou a sua manifestação com estas palavras:

“Embora eu esteja dolorosamente ciente das devastações sociais e econômicas que caíram sobre minha raça e todos aqueles que sofrem discriminação, mantenho a esperança duradoura de que este país honrará seus princípios tão claramente enunciados na Declaração de Independência e na Constituição dos Estados Unidos: que todos os homens são criados iguais, são cidadãos iguais e devem ser tratados igualmente perante a lei”.

Para um possesso pela ideologia da TCR, decerto essa também foi uma manifestação de “racismo internalizado” ou “supremacia branca”. Para as inteligências saudáveis, ao contrário, ela representa a única maneira sã e justa de combater o racismo.

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