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Donald Trump, presidente dos EUA, e Xi Jinping, presidente da China, no início de sua reunião bilateral na cúpula dos líderes do G20 em Osaka, no Japão (29/6/2019) | Foto: Reuters/Kevin Lamarque
Edição 255

Não é guerra fria. É só a hora dos adultos na sala

Hoje os interesses são mais diversos e pragmáticos, movidos a negociações comerciais e atração de investimento externo

Adalberto Piotto
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A eleição de Donald Trump colocou tudo o que respira no mundo no mesmo espaço de discussão e decisão. Logo no primeiro dia de governo, após a posse, o planeta inteiro viu que o novo presidente norte-americano não estava blefando ao assinar ordens executivas com tudo o que havia prometido na campanha. O que importa aos americanos e ao mundo ficou tudo junto e misturado. E será assim pelos próximos quatro anos. Aos que colocam a China como destino dos incomodados com a nova gestão da Casa Branca, um pouco de prudência faz bem. Mais ainda, que levem em conta os números, os fatos e o século em que estamos vivendo. Se puderem trocar um pouco do ranço ideológico que trazem dos anos 1970 por pragmatismo e realismo, tanto melhor.

O jornalista Paulo Francis gostava de dizer que Nova York era o centro do mundo. Com o índice Dow Jones da Bolsa nova-iorquina tendo as empresas mais ricas e poderosas do planeta, a pujança americana era resumida numa cidade plural, intensa e talvez o maior símbolo de riqueza e diversidade global. Só a Ilha de Manhattan, o universo de Francis, era suficiente para se ouvirem todas as línguas faladas pela espécie humana.

A famosa Wall Street e o prédio da Bolsa de Valores de Nova York, em Manhattan | Foto: Shutterstock

O poderio econômico e militar dos Estados Unidos de influenciar o mundo só fez aumentar desde então. A história contemporânea mostra que, até a Segunda Guerra Mundial, a eleição americana só importava ao povo americano. Depois disso, passou a interessar ao mundo. Um dos primeiros atos de Trump na volta ao poder evidencia isso de forma avassaladora, como foi sua eleição. Ao decidir enfrentar a imigração ilegal nas fronteiras para combater o crime, causou o maior rebuliço diplomático já visto em um começo de gestão. As deportações de ilegais e de criminosos condenados, que já ocorriam, ganharam um novo status de política externa: ou o país do deportado aceita, ou é taxado em suas exportações aos Estados Unidos, com cancelamento de vistos para autoridades governamentais. Mais que isso, é preciso aumentar a vigilância nas fronteiras para coibir a entrada de novos imigrantes ilegais e o tráfico internacional em território americano. Como em um efeito dominó, cederam rapidamente o México, a Colômbia e o Canadá. O governo Lula rugiu, mas só internamente.

A canetada presidencial de Donald Trump para proteção de fronteiras e segurança interna gerou no mundo um debate comercial, diplomático, de área de influência e da defesa do rule of law americano, o que poderíamos chamar em português de Estado Democrático de Direito. Digo ‘democrático’ porque o alvo seguinte foi a atuação da USAID, a agência criada por John F. Kennedy, nos anos 1960, para ajuda humanitária. Embora financie 42% de toda assistência humanitária, segundo a ONU, a agência foi levada ao escrutínio do DOGE, o Departamento de Eficiência Governamental liderado pelo empresário Elon Musk, por suspeita de mau uso do dinheiro público. Exposta na sua atuação além-humanitária, não tardaram denúncias de atuação ideológica da agência financiada com o dinheiro do pagador de impostos americano. Desde apoio a agendas progressistas, passando por interferência política e financeira em eleições e em guerras, até o financiamento de grupos estrangeiros de crítica ao governo americano, tudo passou a ser escrutinado. O que era para ser um freio de arrumação, como o congelamento dos repasses de dinheiro por três meses, evoluiu rapidamente para o anúncio do fechamento da “agência de lunáticos”, como o próprio Trump a definiu.

Site da USAID | Foto: Shutterstock

Vale lembrar que a USAID foi criada justamente como um órgão para fortalecer o soft power americano, ao aumentar a influência de Washington em tempos de guerra fria com a União Soviética. Para a Casa Branca atual, de agenda fortemente anti-woke, porque o mundo se perdeu em pautas que jamais admitiria até pouco tempo atrás — como justificar o terrorismo do Hamas dentro de universidades americanas —, a agência até financiava ajuda humanitária, mas operações pouco transparentes guardavam semelhança perigosa de um Estado paralelo sob o gabinete presidencial trabalhando contra os valores americanos e ocidentais.

O mundo está mudando. Só o simplismo ideológico, a cabeça no século passado e uma razoável dose de desonestidade intelectual na compreensão da história seriam capazes de dizer que estamos sob uma nova guerra fria. Não, não estamos. A guerra fria se justificava com cada uma das partes divididas do mundo sustentada e influenciada por Estados Unidos ou União Soviética. O único resquício daqueles tempos é o arsenal nuclear que ainda assombra a humanidade. No mais, os interesses são mais diversos e pragmáticos, até mais imediatistas e movidos a negociações comerciais, atração de investimento externo e, depois da pandemia, domínio de pesquisa científica médica e autossustentabilidade de insumos. Daí que a tese de que os países que Donald Trump confronta hoje poderiam automaticamente cair no colo da influência chinesa amanhã é precária, desprovida de conceitos sólidos e muito distante dos fatos.

E a própria China, mesmo tendo o poder da segunda maior economia do mundo, ajuda a entender que os tempos são outros. Com PIB de quase US$ 18 trilhões, a diferença para o PIB dos Estados Unidos é de US$ 10 trilhões. E o ponto em que os fatos atropelam a ideologia é que a democracia americana permite aferir os US$ 28 trilhões da riqueza gerada anualmente pelas empresas e cidadãos norte-americanos.

Cédulas de yuan chinês, dólar americano e outras moedas internacionais | Foto: Shutterstock

Outro ponto relevante nessa discussão é que, em janeiro do ano passado, a Evergrande, até então um gigante do mercado imobiliário chinês e mundial, teve a falência decretada, depois de anos de prejuízos bilionários que nem o governo chinês conseguiu evitar. Nem o híbrido criado por Pequim, de ditadura política com economia de mercado, conseguiu evitar as dores inerentes do capitalismo. A China já não é mais o país que cresce 15% ao ano com forte poder de atração de empresas e mão de obra barata. Com o modelo de controle estatal se exaurindo, convive ainda com os anseios de uma população que evoluiu de renda e quer mais, mesmo sob a mão pesada do Estado. Anos atrás, um empresário chinês me disse que, diferentemente dos americanos que enviavam seus fuzileiros para intervir em alguma parte do planeta, a China mandava seus empresários. Uma tese de propaganda demasiado simplista. Mas foi justamente com esse desejo de se tornarem influentes no mundo, muito além de seu arco de atuação comercial, que os chineses acumularam passivos de imagem internacional. Ao garantir a economia de Moscou, sob fortes sanções ocidentais, a China defendeu a Rússia invasora diante de uma Ucrânia invadida. Ao ameaçar Taiwan, numa pretensão de guerra expansionista do século passado, não está enviando seus empresários, mas navios de guerra para ocupar o Mar da China. No mundo sob Trump e a Europa querendo se libertar de seus medos e erros recentes de prostração ao identitarismo radical que lhe tirou a identidade europeia, a história mudou.

Por isso que, antes de acreditar que os países confrontados pelos Estados Unidos cairiam no colo dos chineses, é preciso perguntar se a China, movida a estratégia e pragmatismo, estaria interessada em embalar toda essa gente que, agora sob um governo republicano, chama os americanos de “ianques” e “estadunidenses”. Qual é a vantagem de criar uma China Aid? E quantos realmente aceitariam estar sob influência de Pequim? Ainda sobre o embate comercial recente, um detalhe insofismável: a China anunciou tarifas retaliatórias contra os produtos americanos, mas já avisou que quer negociar.

Foto: Shutterstock

O Panamá, que tinha parceria com a China no canal pelo qual passam trilhões de dólares, já avisou que não renovará o acordo, atendendo à Casa Branca.

Relações externas com boas chances de dar certo são normalmente baseadas em acenos públicos amistosos e defesa intransigente dos interesses nacionais a portas fechadas. É assim que funciona desde que o mundo é mundo. E é por isso que, no caso do Brasil — que precisa continuar a vender commodities para a China e vive no Ocidente diplomático e comercial americano, atualmente preponderante —, é preciso de novo perguntar: o Itamaraty sob Lula tem a exata compreensão disso tudo?

Leia também “O governo da galhofa”

9 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A turma do Lula compreende somente uma coisa, que é assaltar os cofres públicos!

  2. Ana Cláudia Chaves da Silva
    Ana Cláudia Chaves da Silva

    Este governo não tem compreensão de absolutamente nada, é um bando de sanguessugas com mentalidade retrógrada.

  3. Francisco de Assis
    Francisco de Assis

    O molusco é sua turma, de alienados ideológicos, nunca irão se adaptar às transformações do século XXI. Essa gente, bem como classifica a Ana Paula, cheira a naftalina e não tem visão além da revolução bolchevique.

  4. Aeduardo
    Aeduardo

    Piotto em uma análise consistente apresentando o atual momento político mundial. Leitura leve de facílima interpretação pelo leitor. Meus sinceros aplausos e deixo a você a incumbência de sussurrar ao ouvido do Augusto Nunes uma constatação:
    Um Sabino uma vez ao mês é até por boa vontade à Oeste tolerável, mas Cláudio Dantas beira certamente a uma temeridade! Faltando só agora o Mainard como correspondente internacional !
    Parabéns pelo artigo e forte abraço.

  5. Ernando Nogueira Barros
    Ernando Nogueira Barros

    Gostei do excelente artigo!

  6. Ernando Nogueira Barros
    Ernando Nogueira Barros

    O rato pelado é insignificante!

  7. João Antônio Dohms
    João Antônio Dohms

    O molusco não tem a noção de nada !
    Está igual o cachorro que caiu do caminhão da mudança !
    Com relação ao STF quer nos tratar como se fossemos seu feudo !
    Logo acaba como bem disse a Heloísa Campos esposa de Eduardo Campos num texto recente !

  8. Poesias Vladiando Versos
    Poesias Vladiando Versos

    Excelente explicação! Grande Oeste sem filtro!

  9. Andrea Chaguri
    Andrea Chaguri

    Excelente conteúdo! Muito obrigada!

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