Você, que está lendo este artigo no celular, conseguirá ir até o fim? Ou vai parar na quinta linha só para conferir se o político que você odeia foi devidamente xingado nas redes sociais? Vai assistir só mais uma vez àquele clipe musical sem o qual você não vive? Ou vai espiar só um pedacinho daquele vídeo ousadíssimo com sua atriz pornô favorita? Vai dar só uma passadinha no site da Amazon para comprar alguma coisa bem baratinha que, se tudo der certo, vai chegar amanhã mesmo? Ou vai abrir o Instagram para conferir quantos likes rendeu seu último story?
Bem, se chegou até a décima linha sem cair nessas tentações hoje irresistíveis, parabéns! Talvez você ainda não esteja tão viciado assim nas drogas digitais. Mas sempre fica a pergunta: conseguirá ir até o fim deste artigo?
O termo “droga digital” foi popularizado pela psiquiatra americana Anna Lembke, autora do best-seller Nação Dopamina: Por Que o Excesso de Prazer Está nos Deixando Infelizes. Lembke é professora na Universidade Stanford, onde se especializou nos mecanismos do vício.
Segundo ela, perdemos o equilíbrio na busca do prazer e na fuga da dor. Procuramos tanto a autossatisfação completa e constante que não damos espaço a qualquer forma de sofrimento. O que nos leva ao “paradoxo da fartura”: quanto mais prazer temos, mais queremos. E não nos satisfazemos com mais nada.
“Em algum mundo idealizado, estamos todos lendo Platão e ajudando uns aos outros”, declarou Lembke em recente entrevista ao New York Times. “Em vez disso, estamos usando drogas, bebendo, nos masturbando e olhando para as redes sociais.”
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Achar que a utopia da vida é “ler Platão” parece bastante deslocado da realidade do século 21. Anna Lembke não esconde que tem um tom regressista ao contar que, até 2014, ela não tinha internet em casa. E que só adotou o celular por obrigação profissional. Na entrevista, a psicóloga dá uma pista evidente do que a levou a ficar obcecada com a questão do vício: seu pai era alcoólatra. Alternava períodos de abstinência com outros em que era encontrado largado no chão dizendo coisas sem sentido. A busca por uma resposta para esse problema levou Lembke a se especializar no mecanismo que produz a dopamina.
Dopamina é vital
“Dopamina é uma substância química no cérebro com uma variedade de funções diferentes”, explica. “É um neurotransmissor, ou seja, uma molécula que permite que um neurônio se comunique com outro neurônio através de sinapses. Os neurônios são as principais células do cérebro, que enviam mensagens, permitindo que tenhamos pensamentos e emoções e todas as coisas que nosso cérebro faz. Os neurônios funcionam por meio de sinalização elétrica. Mas eles não se tocam de ponta a ponta. Há um pequeno espaço no meio, e esse espaço é chamado de sinapse.”
Vamos dizer que gostamos de um filme. A dopamina produz as sinapses que ligam os neurônios registrando na nossa memória que aquele filme sempre vai nos trazer prazer. E diminuir nosso sofrimento.
Quando a dopamina se transforma numa “droga” prejudicial? Quando nos sentamos no sofá em busca de um prazer imediato e procuramos freneticamente por dezenas de filmes em vários sistemas de streaming e não nos decidimos por nenhum. A busca pelo prazer sem uma solução nos leva a um estado de “déficit de dopamina”.
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O que nos leva ao lado da dor e do sofrimento. Experiências de laboratório mostraram que um cérebro que não produz dopamina tira de nós algumas funções básicas. Por exemplo, deixamos de sentir vontade de comer, mesmo que a comida esteja na nossa frente. Pois foi retirado o sentido de prazer que existe em saciar a fome.
O cérebro produz dopamina para que a gente resolva a necessidade de se alimentar por meio de uma boa refeição. Resolvida a fome, a produção de dopamina cai até que chegue o momento da próxima refeição. Esse fenômeno é chamado de “equilíbrio homeostático”.
O efeito gangorra
O fenômeno que Anna Lembke chama de “droga digital” pode ser comparado a uma pessoa que passa o dia pulando de restaurante em restaurante mas não se satisfaz. O cérebro produz a dopamina de uma maneira que ela chama de “mecanismo gangorra”. Quando passamos o dia inteiro procurando prazeres em redes sociais (ou tentando compulsivamente ganhar mais seguidores), a gangorra pende para um dos lados: o da dor.
“A ciência nos ensina que todo prazer tem um preço”, diz Lembke no seu livro, “e a dor que se segue é mais duradoura e intensa do que o prazer que a originou. Com a exposição prolongada e repetida a estímulos prazerosos, nossa capacidade de tolerar a dor diminui, e nossa distância para sentir prazer aumenta”.
Ela lembra que nosso cérebro não está preparado para viver num estado de prazer permanente. “É como um cacto vivendo numa floresta tropical”, compara seu colega Tom Finucane. “O efeito concreto é que agora precisamos de mais recompensas para sentir prazer e menos ferimentos para sentir dor.” Nosso cérebro precisa desse equilíbrio. Se nos damos uma quantidade exagerada de prazer, naturalmente o cérebro gera mais sofrimento para compensar.
Não é coincidência que as novas gerações sejam cada vez mais “nutellas”: sem ambição, infelizes, mimadas, grudadas na tela do celular, em busca de nada. Estão afogadas em dopamina.
Sua droga favorita
“Perceber as crianças como psicologicamente frágeis é um conceito essencialmente moderno”, lembra a doutora Lembke. “Nos tempos antigos, as crianças eram consideradas adultos em miniatura, totalmente formadas desde o nascimento. O trabalho dos pais e cuidadores era impor disciplina extrema para socializá-las a viver no mundo. Era totalmente aceitável usar punição corporal e táticas de medo para fazer uma criança se comportar. Não mais. Hoje, muitos pais que vejo têm medo de fazer ou dizer algo que deixará seus filhos com uma cicatriz emocional (…) e até mesmo doença mental na vida adulta.”
Anna Lembke não disfarça seu pessimismo: “Drogas, comida, notícias, apostas, compras, jogos, mensagens de texto, sexting, Facebook, Instagram, YouTube, tuítes… o aumento do número, variedade e potência de estímulos altamente recompensadores hoje em dia é impressionante. O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, sete dias por semana, para uma geração conectada. Se você ainda não conheceu sua droga preferida, ela chegará em breve a um site perto de você”.
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É o momento de lembrar que isso não tem nada a ver com a tecnologia em si. Estamos vivendo um momento único onde cada ser humano tem a chance e os recursos (digitais) para aprender, produzir e se comunicar como nunca aconteceu antes. A popularização da inteligência artificial só multiplicou essas capacidades.
O problema é a forma imatura como as pessoas estão lidando com esses novos recursos. Você pode passar muito tempo de olho em várias telas, mas criando obras, em qualquer campo. O prazer nesse caso não está na busca de prazeres imediatos, mas na criação de algo substancial, que dê um sentido à vida.
O tédio como um instrumento
Provavelmente vai demorar um tempo para que a maioria das pessoas entenda e aproveite esse momento de magia. Por enquanto, estamos andando como zumbis hipnotizados por telinhas brilhantes em busca de prazeres fúteis.
Não é necessário nem inteligente nos afastarmos dos celulares e computadores. Mas temos que nos disciplinar a alternar essa conexão com viagens, mesmo que rápidas, pelo bom e velho mundo analógico. Olhar a paisagem, prestar atenção no seu pet, brincar com as crianças, olhar para a lua, sentir os cheiros do parque. No meio desse redemoinho de estímulos isso pode parecer tedioso. E é.
“O tédio não é apenas chato”, lembra Anna Lembke. “Ele também pode ser assustador. Ele nos força a ficar cara a cara com questões maiores de significado e propósito. Mas o tédio também é uma oportunidade para descoberta e invenção. Ele cria o espaço necessário para que um novo pensamento se forme, sem o qual estamos reagindo infinitamente aos estímulos ao nosso redor, em vez de nos permitirmos estar dentro de nossa experiência vivida.”
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